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Roteiro_de_Filme_ou_Novela-->Contos Contados Contato -- 10/12/2006 - 17:14 (Sereno Hopefaith) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Número do Registro de Direito Autoral:130952499624475800
O PRÊMIO

"Esta cidade sem poesia de vida se fecha.
Se prende, se tranca/em mil unidades de desespero.
Esta cidade/desolada isolada/ilha de poeira morta
Subverte o silêncio/submerge os soluços."

H. Dobal ("Os Signos e as Siglas")



O casal Antron Hoiden habita em São Paulo, no Jardim América. Gosta de ficar assistindo programas de tv, alguns dos quais não vê em comum. O sr. Hoiden mantém uma tv com programações multicanal, 81 polegadas, no quarto, outra na sala, outra na área de serviço.


Quando o tédio incomoda, sai para alugar dvdmovies.


Numa dessas incursões em busca de emoção enlatada, preenche um cupom com direito a sorteio mensal. O casal está interessado em ganhar passagens para uma série de viagens tendo SoulPlanet por limite. É a moda do momento: fazer turismo em SoulPlanet, ou mudar-se para lá definitivamente, via sorteios de passagens num programa de tv.


As duas condições básicas para a participação no sorteio: o casal deve alugar, de uma só vez, dez vídeomovies e precisa, somadas as idades, ter cem anos, ou mais de cem. Não importa a idade cronológica de cada casal participante, a soma deve totalizar um mínimo de cem. Ele pode estar com 65 e ela com 35, ou vice-versa, ou 70 e 45, ou 40 e 70, ou 44 e 66. A soma, insiste o regulamento do concurso, deve ser 100 ou mais de cem.


Não sabem ao certo o motivo desta exigência, talvez porque promoção do Canal100. Quem sabe tenha alguma relação com as Centúrias de Nostradamus em bookmovie, que uma editora lançou no mercado de cdvídeo, através campanha de publicidade detonante, em vídeoclips.


Os vídeoclips dramatizam a descoberta de um lugar sem dialética, SoulPlanet, no texto do Profeta de St. Rémy, a partir de uma interpretação muita discutida das Profecias, feita por um cientista que fala e escreve em dezessete idiomas, entre eles, grego, latim, hebreu, e sabe tudo acerca de teologia. O cara é conhecido por alguns críticos, enquanto intérprete sensacionalista da parte das Centúrias recém-descoberta.


As diversões tvvisivas de 2015 estão cada vez mais competitivas, estranhas, inusitadas, ousadas. Os canais de tv, empenhados num vale tudo, para ver quem atualiza mais depressa as tendências de entretenimento do mercado. Atualizar as programações é a paranóia dos gabinetes da produção tvvisiva. A ansiedade pelo lusco-fusco, a estrela da bunda mais detonante do momento, a xoxota mais nova que fuma, fala e joga facas. O bum-bum mais cheio de graça, as mágicas das Três Marias, que segundo o showmen da hora do Canal100, são provenientes de um planeta da Constelação homônima.


Cada retransmissora, via satélite, busca o inusitado com maior avidez que as demais. A Guerra nas Estrelas das programações atinge piques de audiência, com baixarias tipo um programa kafkiano denominado Baratinha Livre, dirigido a idosos com mais de 80 anos. O limite de média de idade aumentou nessas duas décadas do século vinte e um. Os tvespectadores migram, canal a canal, em busca do embuste tvvisivo mais dramático, do mais lustroso personagem virtual, do lusco-fusco de maior ibope.


As viagens psivirtuais das pessoas da sala de jantar são receitas aviadas pelos produtores de “shows”, inspirados pelos resultados das pesquisas de campo. Elas originam os mapas de atrações dos programas que os tvespectradores vão assistir. O ponto básico é a satisfação da exigência dos produtores por comoção barata, supostamente dotada de inovações. Inovações que, na realidade, não passam de prestidigitações da publicidade e propaganda do Canal100. Alguns comentaristas definem tal agenda de programação das emissoras de tv como sendo “peixe podre para videotas”. O profissional mais cotado da praça chama-se “detonador visual virtual”.


O departamento de produção do Canal100 criou alguns sucessos de audiência: Além do “Baratinha Livre”, são também líderes: Ratinho Preso, Papagaio Brega; Bacalhau do Lalau, Adriana Tudoteu; Guabiru “Black-tie”, Xuxa Keka, Tudo Pelo Doleiro e Rebideré. Mas o quente mesmo, o sucesso incontestável, a labareda mais ardente a queimar nas mentes dos tvespectadores, são os quatro sorteios mensais do espetacular quadro “Portais da Esperança” do programa DomingãoDo100zão.


A casal Antron Hoiden está realmente surpreso por ter sido um dos vinte e quatro casais do último sorteio mensal. Por cada segundo de publicidade neste quadro do programa, o departamento de propaganda do Canal100 fatura U$ 3.000 (três mil dólares). Trinta segundos representam 90 mil verdinhas em caixa. E o programa desdobra-se por seis horas.


As empresas disputam o mercado via comerciais para seus produtos com uma agressividade inaudita. A megaviolência que transborda de alguns “clips”, promete mais conforto, divertimento e lazer, se o tvespectador adquirir esse ou aquele produto globalizado, ao mesmo tempo que participar do sorteio de seis casas e outro tanto de automóveis importados.


Aos carecas, esses produtos milagrosos asseguram vastas cabeleiras em três semanas. Os que querem camuflar as cãs, podem conseguir com Fofim 2025, “a naturalidade da cor dos cabelos de quando você tinha quinze anos”. As gordinhas e gordinhos podem comer de tudo na quantidade que quiser, se, depois das refeições, ingerirem uma cápsula de Magrecil, corpo a mil, e você será um supergourmet, com uma aparência de atleta olímpico, pra ninguém botar defeito.


O sr. Hoiden, contempla emocionado os comerciais projetados em tela múltipla, no intervalo do programa em que está sendo entrevistado. Maravilhado, ele olha em volta para o auditório repleto: As opções são muitas. Ele não sabe para que palco olhar, tantas as tentações visuais tecnologicamente produzidas. Elas maravilham a ingênua sede de plumas e paetês dos tvespectadores. Os doze grupos de garotas que dançam sensualmente nos palcos, vestem doze diversas grifes concorrentes no mercado da alta moda , e da moda mais popular. Elas completam o visual dançante e delirante do circo “high-tech”, via satélite, com seus pentelhos coloridos por cabeleireiros especiais, com cursos de mestrado em lacinhos púbicos, nas donzelas dançarinas dos programas nobres do “showbiz”.


Um dos mais badalados comerciais do momento, mostra o vinco da bunda de uma mocinha abrindo-se aos poucos para os lados, a partir da gradativa pressão da ponta dos dedos das mãos, saindo do buraquinho, em direção à cara, não mais pasmada, do tvespectador, a bela plumagem proveniente de quatro tipos de aves em franca extinção na Amazônia. Somente têm direito a tal privilégio, as garotas do carnaval 100zãobeleza. Seguidas às plumas, da fresta baqueana das mocinhas, saem amostras da nova embalagem com que será lançada a mais recente marca de cerveja diet do grupo de bebidas cartelisado pouco depois de 20l0.


Outra garota, representando o quarto grupo de dançarinas no palco monumental central do DomingãoDo100zão, aparece no comercial curvada para a frente, o sorriso magnífico, mostra os dentes grandes e branquíssimos. Ela olha para trás, por sobre o ombro esquerdo dobrado em arco ângulo, o suficiente para observar o zipe sendo pego pela ponta dos dedos indicador e polegar. Ela divulga verbalmente o slogan do produto: 100limite: “Cem centímetros de kama-sutra. Venha sentir as delícias de vestir este jeans”. A grife apresenta um modelo de bermudas e calças, sociais e esportes, com um zipe que abre para cima, subindo em direção à nuca pela espinha dorsal, a linha de costura curvando-se na altura do ombro esquerdo.


Uma vez aberto o modelito, a nudez da beleza morena da mulher brasileira, feita de amor, mostra-se tropicalientemente. Os grupos de dança no palco costumam representar encenações criadas para a venda de produtos e serviços. O casal Hoiden sempre teve curiosidade de poder apreciar bem de pertinho esse truque virtual: as projeções a laser de garotas seminuas que nadam no espaço do palco principal do programa, como se fossem peixes num aquário límpido. De perto assim, o visual consegue ser ainda mais surpreendente.


Suspense, ansiedade, expectativa e confiança, transbordam dos rostos dos participantes da platéia. Uma dose extra de oxigênio é fornecida a cada hora e meia, de uma central que o distribui por todas as dependências onde são realizadas as filmagens do DomingãoDo100zão. Seu animador é considerado a Besta do Apocalipse dos programas líderes de audiência das tvs.


Uma garota muito parecida com a Gletez, par com outra, clone da Xuxanca, tira de dentro de uma imensa urna ventilada, o envelope com os dados do casal ganhador. Telões repetem as imagens da premiação do último domingo do mês, quando duas séries de doze passagens completam a cota mensal de sessenta felizardos com embarque garantido para SoulPlanet.


O sorteio funciona assim: uma dúzia de passagens são sorteadas em cada um dos três primeiros domingos do mês. No quarto e último domingo, duas dúzias de passaportes especiais são expedidos. Eles garantem aos portadores, poltronas na 1ª classe da nave. A emissão garantida pela Política Federal, autoriza aos que obtiveram a concessão legal, o esperado embarque em direção a PlanetSoul (ou SoulPlanet), devidamente autorizados pelas instituições competentes. São distribuídos aos ganhadores das vinte e quatro passagens sorteadas na apresentação dominical mensal do DomingãoDo100zão.


A propaganda do programa alardeia, após muita fanfarra comercial: "São sessenta premiações mensais, de um total de 720 passagens para Soulplanet distribuídas a cada doze meses. Seja você também um privilegiado explorador de PlanetSoul". Não faltam casais de Indiana Jones candidatos à premiação da hora.


Muita gente alimenta grande ansiedade por ganhar. A coisa funcionou para o casal Hoiden. Inacreditável, a senhora Hoiden olha a cartinha, amassadinha, miudinha, na mão do apresentador e exclama de si para consigo: Mal posso crer em meus olhos virtuais.


O DomingãoDo100zão confirma: ela e o marido foram contemplados com uma série de viagens, marítimas,rodoviárias e aéreas, tendo SoulPlanet por limite. O casal Hoiden festeja com amigos e parentes, próximos e distantes.


— Que sorte, comenta alguém na festa, com uma taça de champanha a afastar-se dos lábios. A voz sensual de uma socialite, estudante de comunicação, insatisfeita pelas férias tediosas, reclama em tom lamurioso:


— Daria tudo para estar no lugar deles, pena que não possam vender as passagens, eu pagaria trezentos mil dólares por elas. A convicção do senhor Martins Flambert, de que ele também pagaria tal quantia à vista, cede lugar ao comentário da senhora Fonseca Dijon: “Infelizmente a produção do programa proíbe os ganhadores de vendê-las, eu faria um lance de seiscentos mil dólares”.


Conhecer PlanetSoul está valendo uma grana preta.


O casal Hoiden sente-se privilegiado e feliz pela oportunidade de visualizar novos horizontes e paisagens: “Haaahhah, exclama entusiasmado o senhor Hoiden: “Viajar”. A palavra “Viajar” traduz a saciedade de uma ansiedade por conhecimento de novos espaços e paisagens até então interditas.


“Woohalll, finalmente terminou”. Quase não conseguem acreditar que estão mesmo seguindo em direção a esse lugar cobiçado. Conhecer essa nova terra prometida, prerrogativa exclusiva dos ganhadores do sorteio, tal como promete o slogan: Venha Conhecer Do Que É Feita A Alma. Ganhe Sua Passagem Para SoulPlanet.


Sim, finalmente a aflição pela exploração turística do lugar terminou para o casal Hoiden. Afinal, as abençoadas promessas foram ouvidas, pisar o solo desse local sagrado, dessa região mágica que todos, mesmo os tvespectadores não casados, ou os que não somam cem anos, nem ultrapassam esse limite de idade, tanto desejam conhecer. Sentem-se, a princípio, perfeitamente à vontade. Mas viver não é apenas chegar, cicia o senhor Hoiden, há de se chegar, adaptar-se e permanecer.


Uma vez em PlanetSoul, a senhora Hoiden comenta: “Esse sítio tem uma geografia incrível. Em nenhum dos países que conheci na Terra (sim, porque essa localidade não pode ser a Terra), há mais estranho visual, natural ou urbano.”


Nesse momento, sem saber porquê, uma inusitada nostalgia invade cada poro do corpo. O casal lembra-se, com imensa saudade, da poluída São Paulo, como se jamais fosse voltar a vê-la. A nítida sensação de que muitas memórias remanescentes permanecem mais vivas agora, trazidas à consciência por algum misterioso nicho propício da mente. Memórias que se manifestam através de signos estranhos, paisagens inauditas, prenúncio de revelações sobre algum inferno ou paraíso antiquado a explorar, interna e exteriormente.


O senhor Hoiden extasia-se com seus botões, enquanto uma imensa estrutura, cor ocre, resplandece acima de suas cabeças: "Que bela inutilidade, pasma-se". Misterioso êxito emana da vã intensidade luminescente do falso muro. Não consegue atinar como essa parede mostra-se capaz de "mastigar" a quarta dimensão. Juntando todas as impressões, essa paisagem é o próprio Tempo ou seu Criador? Pergunta-se:


— Quem teria financiado esse colossal cenário que intensifica sobremodo essa angústia? Por que não permitiram que continuasse interdita, a olhos humanos, se seu efeito é tão devastador? A física relutividade causa surpresas perceptivas.


A sensação de que o muro suspenso funciona como uma espécie de módulo mental de indução magnética inconsciente. O poder que emana desse lugar só pode ter sido criado e gerido pela força superior de um Deus. A senhora Hoiden treme, por intuir que o mais humilde dos deuses, que mesmo um Deus sem dentes, é capaz de mastigar a quarta dimensão, com a facilidade com que ela ou o marido teriam para saborear uma tangerina.


Pensando na magnitude dessa força, o casal, perplexo, contempla as paredes internas da edificação, através da qual está sendo conduzido. A constante estética de proporcionalidade: imponente, magistral e imponderável arquitetura.


Outra indagação do sr. Hoiden não se faz esperar: A paisagem desse lugar simboliza que inaudita e desarticulada mensagem inanimada? A vivacidade imponente desse muro, doze metros acima de suas cabeças, transmite uma extenuada e impulsiva inanição, imune a qualquer interferência, simplesmente onipotente, como se a condicionar estranhas percepções.


O casal Hoiden contempla boquiaberto o suntuoso portal ilógico, ao mesmo tempo barroco e gótico, como se tivesse sido construído por arquitetos fanaticamente profanos e fastidiosamente sacros. Seus olhos deslocam-se para o alto, onde, parecendo desenhadas sobre vitrais, as pinturas da alta parede do muro suspenso, brilham, como se afirmações ilusórias, aleatórias, de um tempo outro. "Será ele uma construção de metal"? Pergunta-se o casal.


Estas considerações contraditórias passam pela cabeça obscurecida dos Hoiden. O senhor Hoiden estranha lembrar nitidamente de um parágrafo do livro de Léu Vaz, Páginas Vazias: “Porque a tal nível (estão num plano horizontal ou vertical?)de perfeição haviam chegado os artífices de outrora na reprodução manual de vistas, cenas e figuras, que o prestígio de sua arte obscureceu o juízo e o critério dos homens.”


Ambos se fixam nas pupilas como se estivessem admirados com a propriedade de suas mentes fundirem-se numa única percepção. Já não são duas almas separadas, seus intuitos moram no interior de uma única tensão. Ambos não conseguem sair desse mesmo lugar interior, como se prisioneiros dele. Experimentam um deslumbramento inaudito, ao contemplar o nível de perfeição a que chegaram os artífices desconhecidos das cenas e figuras de significados indefiníveis, para o juízo e critérios desses turistas, habituados à cultura da civilização Terra.


Vêem agora um portal interligar-se com outros portais a cada cem metros, através desse muro. Ele mais parece uma fita marrom, um largo fio, quatro e meio metros de altura, largura equivalente e comprimento interminável: uma espécie de grande muralha da China a doze metros do solo, alta tensão, plugado a níveis profundos da inconsciência, sem nada, aparentemente, a sustentá-lo.


Esquivo e estupefato o senhor Antron admira o muro que separa nada de coisa nenhuma. A senhora Hoiden rói os dentes, contraindo com força os maxilares para os lados, a pressionar o inferior a todo o momento, certificando-se de que não está no transe de nenhum sonho esquisito. Sente-se, não sabe porquê, vertiginosamente culpada por não estar dormindo e sonhando.


As inquietações do senhor Antron parecem fundir-se morbidamente com a perplexidade da senhora Hoiden: estão, há horas, ouvindo estranha linguagem rítmica, será um “mantra” gregoriano? Os sons são como uma fórmula encantatória, com o poder de materializar a divindade invocada. Que divindade? Esses instrumentos sonoros mágicos, fascinantes, conduzem com facilidade seus pensamentos. Buscam atinar. Não, mais parece uma música “new age”, talvez uma ressonância dodecafônica indefinível, tipo as composições atonais do austríaco Arnold Schöenberg, experiências sonoras efetuadas a partir do emprego dos doze semitons da escala temperada. Os sons parecem brotar do mais ermo cantão do Cosmo. Sentem-na trespassar todos os espaços do corpo com essas reverberações intangíveis.


A impressão de que, pelo menos 8/9 dessas novas sensações permanecem na mente, nas células do corpo, absorvendo-as em direção a um depósito inconsciente de inclusões psi inusitadas. Não sabem de onde vêm, nem o que significam esses timbres musicais. Sentem-se transformados em meras projeções dessa maquiavélica, benevolente e implacável intencionalidade.


No distante horizonte, parecem mesmo muito longínquo, dois corpos celestes, seriam dois sóis ou duas luas? Brilham suspensos no espaço, irradiando resplandecentes colorações astrais: magenta e ametista. A toada, remota, trazia-lhes à memória, acontecimentos memoráveis há muito esquecidos.


O casal, como que obedecendo à mesma e subliminar sugestão, olha para trás, na tentativa de visualizar uma paisagem que, dariam a vida, se preciso, para que ela fosse, pelo menos remotamente, familiar. Desejam, desesperadamente, sentirem-se parte de uma cidade poluída, descer a rua Augusta até a avenida Europa, caminhar aos domingos no Ibirapuera, fazer exercícios físicos nas dependências do Sesc Campestre, apesar do insuportável odor de podre que exala da lagoa próxima. "Sou personagem virtual de um filme"? Pergunta-se o casal.


O lugar e os sons ensejam, de alguma maneira não trivial, que eles sejam muitas coisas que desejaram, mas não conseguiram ser. Coisas que cobiçaram, e, apesar dos esforços, julgaram fora de seu alcance conseguir, agora prometem ser suas. Não há limites para a satisfação de suas antigas vaidades, para a usura e a ambição desmedida.


Ainda assim, ambicionam a todo custo fazer parte de algum larbirinto, doce larbirinto, brega e decadente, mas situado na boa e velha Terra.


Intensifica-se, no casal Hoiden, uma saudade indescritível de estar fazendo parte da multidão de almas queimando no fogo da sobrevivência virtualizada, nas calçadas da sociedade mercadológica, no dia a dia da Terceira Guerra Fria Mundial. A Guerra-Fria que se trava nas ruas da quase megalópole São Paulo, com todas as dependências implícitas de uma vida tencionada por exigências urbanas, às quais não mais podem ser diferenciadas, desde que o real e o virtual são, agora, a única e mesma coisa.


Sabem eles que todos os nove e meio bilhões de habitantes do planeta de origem deles, a Terra, parecem conformados a aceitar a ditadura da comunicação tvvisiva, sem traumas. Como se fosse a coisa mais normal do mundo, a deterioração de todas as mentalidades, pelo poder econômico subterrâneo, por detrás dos interesses dos comerciais tvvisivos.


O senhor Hoiden gostaria de sentir-se, outra vez, a realizar desejos, vontades e ansiedades virtuais, que se confirmavam apenas no plano das personagens animadas da telinha. O casal Hoiden sabe que na Terra, na boa, saudosa e velha Terra, eram seres humanos vivendo uma vida de virtualidades. Porém podiam senti-la real, quando caminhantes do calçadão da avenida Paulista.


As lembranças de experiências distantes chegam até ele. O casal sente uma esquisita certeza de que as percepções triviais não mais seriam vivenciadas. A espinha dorsal dói, experimenta uma sensação incômoda, uma saudade profunda de caminhar pela alameda Lorena, entrar numa agência bancária, passar horas numa fila para fazer um simples depósito ou pagamentos bancários rotineiros numa agência da Oscar Freire.


Afinal, a informática não solucionou os problemas das filas, exceto indiretamente. Passam horas nelas, como caminhantes em fileira indiana, arrastando-se lentamente em direção ao caixa da agência bancária. A diferença são os glasseslaser (iPhones), em sintonia de canal fechado, que permitem aos peregrinos das filas visualizarem os novos lançamentos de produtos, e a agenda animada de noticiários e entretenimentos, online, via satélite. Neles as lentes dos óculos funcionam como se fossem micros monitores, e ninguém paga nada, basta sintonizar os aparelhinhos de vídeo do século XXI.


O casal Hoiden mentaliza: "Nem sei mais há quanto tempo estou aqui. Um semestre, um milênio? Que importa? Ninguém perguntou se desejo voltar. Ninguém perguntará. Estou prisioneiro desse maldito sadismo de SoulPlanet".


“Hahhhaahhh”, murmura a senhora Hoiden, ardendo no que lhe resta de melancolia: "São Paulo dos raros pássaros nos parques cercados de almas e habitações de cimento armado. Sampa das áreas verdes como se fossem oásis em meio ao asfalto... Das aves que parecem artifícios mecânicos, como aquelas fabricadas por uma empresa que produz andróides em Blade Runner Five".


— São Paulo, pronuncia nostálgico o sr. Hoiden, como se tivesse abandonado num lugar magnífico, mas execrado, das sinagogas de hambúrgueres, dos templos dos sanduíches de salsicha dupla com batata palha, maionese, catchup e tortas de banana e maçã.


— Meu Deus, exclama saudosista a senhora Hoiden, ou ambos, simultaneamente, daria tudo que tenho para sentir outra vez o sabor do BigBladeMac, nem que para isto tivesse de enfrentar 200 km de congestionamento.


Estupefato, o senhor dirige-se à senhora Hoiden, mencionando mais uma vez suas impressões sobre SoulPlanet. Ambos desconfiam que nem precisam abrir a boca. Para expressar pensamentos, basta a simples menção de uma idéia, ela ressoa imediatamente na mente deles , sem precisar de vocábulos.


— Pintores e paisagistas sentir-se-iam, em meio a tanta magnitude e estranheza, inspirados a reproduzir em seus quadros, imagens incomunicáveis, dessa imensa e anômala edificação de dramática beleza, da qual fazemos parte agora, como se meros bibelôs, apáticos e obsoletos, arcaicos como artigos de loja de antiquário.


Por que se sentem tão desconfortáveis? Jamais poderiam imaginar que pudessem vir a mendigar que coisas lhes fossem familiares: um objeto, um inseto, um som, uma música. Desistiram de seus patéticos apelos pelo surgimento de qualquer ser que pudessem identificar, a partir do uso de suas antigas memórias. Essas memórias estão tão distantes, parecem não pertencerem mais a eles, talvez pertençam agora, a outras pessoas que viveram em épocas passadas, há centenas, milhares de anos.


A ansiedade terminal por alguma lembrança do planeta Terra, pelo lar original, estranhamente persiste. Persiste fragmentada em vã expectativa, em mil pedaços de ilusões. Notam, mais uma vez, que esse muro que separa o ontem, o hoje e o amanhã (ou os une, como saber ao certo?) prolonga-se longitudinalmente por sobre suas cabeças, até onde o olhar alcança.


Agora, pensa o sr. Hoiden, a impressão de que a estrutura é de mármore em cores cambiantes. Uma Medusa insaciável. Não mais se apresenta como uma alucinação de vitrais, aquelas pinturas animadas desenhadas no muro. O efeito em perspectiva estende-se longe, muito longe, como se penetrasse nas profundezas imperecíveis do infinito.


— Pode ser, se não for realmente apenas uma seqüência de alucinações, uma construção de titãs. Somente gigantes ousariam investir num colosso arquitetônico de egrégia solenidade, sem nenhuma serventia a qual pudessem atinar. Por mais que se estimulem, sentem-se desalentados, não conseguem acertar o porquê da complexidade sem função do conjunto arquitetônico. Esse ermo desconhecido produz uma angústia ímpar: quânticas quantidades de desamparo.


De que se alimenta? Qual sua fonte de energia? Talvez os conflitos, as neuras, a inquieta frustração emocional e econômica das pessoas, atraídas para essa espécie de "black hole" anímico. O maquiavélico desafio de estar em PlanetSoul: isto sim é pesadelo. Faz (o casal) um grande esforço no sentido de rememorizar-se. Como se permitiram capturar pela teia da aranha negra de SoulPlanet? Lembram ter bebido meia garrafa de vinho branco antes de chegar ao palco do quadro Os Portais da Esperança, do programa dominical da emissora de tv do DomingãoDo100zão, para receberem os carnês de crédito e as passagens.


Evitavam excesso etílico ou outro qualquer. Afinal, tinham ambos, somadas, cento e quatro primaveras. A estrada da redundância não os tinha conduzido ao templo da sabedoria, mas ao mais tenebroso e indescritível tédio. Daí terem ganhado com grande satisfação as passagens para esse lugar mítico que a propaganda desafiava: “Venha conhecer do que é feita a alma. Ganhe sua passagem para SoulPlanet.”


A senhora Hoiden começou a memorizar, passo a passo, como haviam chegado a esse lugar extravagante, de paisagem enigmática. Como podem ainda estar aqui, sob efeito de que química alucinante? Que espécie de perversão virtual poderia mantê-los nessa perplexidade, com que objetivo inconfessável? Arrebatados pela irreprimível exaltação da sensibilidade, redescobrem, como se pela primeira vez, que estão envolvidos num diálogo sem sons. Pensam juntas as mesmas perguntas e respostas, como se só pudessem ser, quando muito, a imitação do outro:


— Lugar estranho. Um vasto descampado sem fronteira física visível.


— Estou com medo.


— Não, estou apenas muito só. Nunca passei por uma sensação de tamanha expectativa e inquietação. Nem quero, se tiver escolha, estar neste lugar outra vez. !Ah! Essa esperança baseada em supostos direitos. Probabilidades. Promessas.


— Para não ter de voltar, preciso primeiro sair dele. Não sei como fazer isso acontecer.


As ideoplasmas flutuam, ao mesmo tempo, na mente do casal, como se ambos tivessem uma só cabeça: uma espécie de diálogo sem interlocutor:


— Vamos lembrar como e por que chegamos aqui. Então, talvez possamos conseguir imaginar um jeito de sair (como se fosse possível essa felicidade indescritível): Dar o fora daqui, sair fora. Não voltar, nem na memória, a esse maldito lugar.


— Lembro, preenchemos um questionário na locadora de dvd3D. Como poderíamos imaginar que estavam falando sério quando prometiam uma passagem, com ou sem volta, para uma visita, provisória ou definitiva, à desolada magia de PlanetSoul?


— Hesitamos em preencher o quadradinho da opção sem retorno. Sorrimos com a possibilidade de ganhar a ambicionada passagem para este ermo cósmico.


— Aqueles filhos da mãe do DomingãoDo100zão. Zombaram de nossa ignorância. Como éramos ingênuos. As lamentações não abonam o arrependimento. Muita idade e toda essa ingenuidade.


— Eles sabiam. Quando ganhamos as passagens de entrada para Os Portais da Esperança, tinham conhecimento desta desolação tecnológica desértica. Estavam querendo livrarem-se de nós, por algum motivo que não atino.


— Sabe por quê? Queriam nos distanciar de nosso lar, de nosso modo de vida. De nosso planeta de origem.


— Os produtores do programa líder em tvaudiência, o DomingãoDo100zão, talvez não soubessem ao certo o que acontece aqui. Esse lugar passa a sensação de que dele é negado sair para sempre. Sinto como se estivesse em estado de coma, numa espécie de pós-mortem, sentindo o que sentem milhares de pacientes nos centros de tratamento tanatológico, que narram experiências visuais, após terem clinicamente morrido. Depois de terem sido considerados mortos pelos médicos, conseguem, milagrosa e inexplicavelmente, voltar a pulsar. O coração. O pulso voltar a pulsar: é tudo que querem.


— Sim, o coração ainda pulsa. Sei que não posso mais usá-lo no sentido estimativo. Mas ainda pulsa, posso senti-lo daqui.


O coração de Antron outra vez começa a latejar, como que reanimado por uma força estranha, uma vontade vinda dela. Tal força não deseja nem permite que voltem a fazer parte de outra dimensão, do outro lado da vida que tinham na Terra.


— Esse lugar então é o outro lado? A quarta dimensão, portal para outras dimensões inusitadas?


— Sem que se tenha morrido? Não sei, talvez sim, talvez não seja. De qualquer forma não gostaria de está outro dia aqui. Nesta sala de estar da desolação.


O casal Hoiden sente-se conduzido, intencional e gradativamente, a um estado de imponderabilidade. Aumenta sadicamente o volume do monólogo e do "diálogo" interior. Ampliam-se os caracteres de suas personalidades, até fazer deles pessoas insuportáveis para si mesmos. São abandonados por seus egos. A intolerância, a repetitividade enfadonha com que se manifestavam, exige deles uma mais alta intensidade, uma pressão sangüínea insuportável.


O casal sente-se culpado, terrivelmente culpado, por ter sido como era antes da viagem ao mundo de SoulPlanet. Pensava, com a viagem, burlar o tédio virtual do quotidiano, apesar de ver muitos dvdmovies. Riam-se da arenga supersticiosa de algumas pessoas conhecidas. Na Terra suas opiniões eram francamente desfavoráveis a uma explicação metafísica da vida. Tinham tais explicações na conta das compensações para os impulsos mais primitivos e reprimidos da psique.


O casal Hoiden lembra vagamente dos versos de uma canção de 2021. A letra mais ou menos esta:


Nada tão natural


nada tão trivial


uma flor num jardim


Todo amor vai ficando


que nem sinal


o outro interpreta mal


A banalidade vira estopim


detona o caos


Nosso amor, enfim, tão normal...


Somos mesmo um casal


Um começo de mundo


Ou seu fim?


Agora se sente induzido a aceitar que existem forças ancestrais poderosas. Elas estão submetendo casais incautos à benevolente violência insuportável dessas sensações tenebrosas: coléricas e nocivas. Não têm liberdade de sair delas. Precisa organização contra elas. O racionalismo do casal Hoiden se diluiu nessas sensações, nas quais mergulhou de cabeça ao chegar a esse lugar.


Antes do evento PlanetSoul a senhora Hoiden acreditava que as cenas terríveis e sanguinárias, que seduziam diariamente bilhões de espectadores dos jornais tvvisivos em todo o mundo globalizado, eram um fenômeno de má gerência, econômica e social, dos recursos da sociedade, administrados pelos políticos. Aceitava tudo com passividade porquê, afinal, essa conspiração, chamada civilização, é parte do desenvolvimento da cultura no planeta Terra. As coisas são dessa forma, e pronto. Queria-se pragmático.


Agora nem tanto. Sentia-se à mercê das contradições e inconsistências do que existe e inexiste, de uma paralógica muitíssimo mais intensa do que a lógica normal ou paranormal. O casal Hoiden sente-se parte de uma realidade fractal, da química de uma geometria de todos os tempos do Tempo manifestando-se simultaneamente.


Cada uma memória fragmenta-se em segmentações ancestrais que parecem não ter fim. Então agora sabem ser parte do “Aleph” borgeano, lugar onde convivem, sem conflito, todas as visões do mundo, sob todos os ângulos. O pássaro que é todos os pássaros alça vôo nos limites mágicos de um círculo cujo centro está em todas as partes. O anjo de múltiplas asas parece desejar voar simultaneamente em várias direções. Cada coisa ao mesmo tempo uma infinidades de outras. Daqui, todos os pontos do universo são visíveis.


O casal Hoiden sente-se agora sob controle de outros seres mais fortes e mais poderosos, como as Fúrias ou as Eríneas. Possuído pela exaltação cega e irresistível, paradoxalmente tediosa eles os dirige e controla, coletivamente, impondo condutas pessoais e sociais destrutivas, criando uma sociedade na velha e distante Terra, onde a dor e o horror de seres programados para falhar e sofrer, alimentam os avanços da tecnologia, assim como alimentam a malignidade da paisagem desse lugar maldito, criado por arquitetos coniventes, construído por engenheiros da maldade, da cupidez e da corrupção. Nitidamente, o casal reproduz trechos de um parágrafo do livro Cinco Réis de Gente, de Aquilino Ribeiro: “Decerto que me formigava na polpa dos dedos, com uma cobiça atávica, encadeada desde os tetravôs romanos, sôfregos pelo vil metal.”


PlanetSoul é isso: estranheza (da paisagem) e morbidez (psi).


Sentem-se inadequados e destrutivos. Revelam-se as engrenagens cósmicas medonhas que, desde o nascimento, motivam a raça humana em direção ao abismo, aos muros imperceptíveis, invisíveis, que separam as pessoas e os países em interesses inconciliáveis.


O casal Hoiden sente-se parte de uma mesma alegoria, desconhecida e ao mesmo tempo estranhamente familiar. Uma terceira voz, que era também a deles, ressoa compassiva no âmago de suas mentes, vinda dos confins desses espaços, reproduzindo-se em intermináveis reverberações:


"Somos parte da mesma misericórdia. Do mesmo sono. Aqui não são cobrados horário e rigor. Estamos no tempo e na compassividade do tempo. Somos o sono e o sonhar, as simples realidades da alma universal."


Afirma-se:


— Sei quando estou sonhando, com outra sensação qualquer. Isto é uma espécie de supranormalidade. Por que estão fazendo isso comigo?


— Como é estranho falar sem frases. Passa algum tempo, a voz ressoa dentro da mente, confundindo-se com a tonalidade de voz da terceira margem:


— Não acha mesmo muito estranho?


— Falar sem palavras, incrível. Pensou se não estaria sem identidade.


— Antron, indaga afirmativamente a voz, em franco processo de despersonalização:


— Você lembra? Saímos do palco do DomingãoDo100zão com as passagens aéreas e os carnês de crédito internacionais.


— Pensamos ser tudo uma grande brincadeira esse negócio de passagem sem volta para SoulPlanet. A aflição de uma última memória do evento premiação.


— O motorista, ao sair para o pátio interno da emissora, conduziu-me atenciosamente numa limusine até o aeroporto.


— A seguir, o embarque no avião da Transworld-United Airlines rumo à Base Internacional do Caribe.


— Usei os carnês de crédito para comprar roupas novas. Eles poderiam comprar tudo. Qualquer mercadoria. Fiquei três dias no hotel Passagem da Esperança, depois seguimos no iate Hope para uma das ilhas no limite sudeste do arquipélago.


— Tudo pago pela produção do programa, enfatiza a percepção comum.


— A única condição para usufruir do ambicionado prêmio: seguir imediatamente, do palco do programa para o aeroporto internacional, com todas as despesas pagas, para os locais de transição rumo à estação final. E aqui estamos nesse lugar maldito.


— Uma armadilha perfeita para ingênuos e ambiciosos turistas.


O casal permanece tentando manter ativa a memória. Consegue o exercício de alguma vaga individualidade. Sente que a avassaladora força da ressonância natural do lugar, por momentos deles se afasta, como se fosse um poderoso e ameaçador cão de guarda, abandonando-o provisoriamente à mercê desses estranhamentos despersonalizantes, dessa memória fragmentada do que sobrou da individualidade dele.


Está a reforçar condicionamentos antigos, como se fossem meras engrenagens de um parque de diversões universais, de uma roda gigante girando numa espécie de lei do eterno retorno à mesmice e ao tédio. Essa roda viva da memória do casal vai-se ampliando, percorre agora todos os níveis de vida orgânica em direção ao passado, ou estará direcionada ao futuro?


Não, sem chance. Há muito tempo, nem sabe quanto, o casal regrediu da condição uterina, para a vida de antes de seus pais terem-se conhecido. Vidas passadas, então é isso, já existiram muitas, muitas vezes, anteriormente a esta. Aquela coisa de vidas passadas não era apenas oportunismo de terapeutas “new age”. O casal sente que pertence a esse “vírus imemorial” do qual são hospedeiros. A percepção persistente dessa realidade transitória de vidas antigas. Elas parecem não ter fim: quantas infâncias e adolescências, quantas vezes foram crianças, jovens, adultos e idosos.


A sensação de que aproveitou tão pouco das experiências pelos milênios afora, a ponto da vida estar nesse beco sem saída, nessa encruzilhada dos horrores, nesse planeta sem alma, ou melhor, com uma alma única e cósmica, pertencente a todos e a cada um, onde a individualidade é impossível.


Sentem-se produtos de espermatozóides quimicamente condicionados pela virtualidade da tv, regredindo a condição cromagnon, desde as mais remotas eras da civilização terrena, quando os humanos não passavam de seres lovecraftianos, à mercê da gerência sensitiva dos hormônios. Seres esses que, milênios depois, seriam subjulgados pela mentalidade neo-pós-moderna dos executivos cromagnon, administradores dos conglomerados tvvisivos, que têm por único objetivo, globalizar as mentalidades das gerações sintonizadas na telinha, transformando-as em jogadores de cassinos, de futebol, em viciados, toxicomaníacos pornográficos, seres, quando não de sexualidade indefinida, criminosos sádicos, “respeitáveis” funcionários da política institucional dos "pra lamentos".


Miríades de sensações, sentimentos, pensamentos, desejos e explosões de raiva, por milhares de motivos diferentes, todos eles banais, apoderaram-se do casal Hoiden, deixando à mostra a ambigüidade da ambição, pessoal e coletiva, de sua raça.


Hoiden passa por esses estímulos, como se a espécie humana da qual fazem parte, se caracterizasse pela pleniconsciência de uma maldade congênita, heterônoma. Como se o homem tivesse sido criado à imagem e semelhança de um deus da iniqüidade, e flutuasse, por puro cansaço, entre um e outro estado dessas polaridades: de uma alomaldade para uma alobondade, e vice-versa. O que geraria essa situação em que se encontram de aloperdição alomórfica: do pária ao astronauta, do mendigo ao cientista.


Nunca puderam escolher nada. O medo foi sempre maior que tudo o mais. Aprenderam a desprezar tudo e todas as coisas que tivessem algum valor e perenidade. Venderam a alma para o trivial variado, o prato feito rato, o café com leite da rotina urbanizada, o salário e o entretenimento faustianos.


Ele inventa diálogos, respostas lógicas, comentários, para explicar o que está acontecendo. Mas, de que adianta estar logicamente convencido do que quer que seja, se isto não modifica em nada a condição alógica, alucinada, das sensações de despersonalização em que vegeta ?


A parelha Hoiden comenta com certa afetação:


— Comprei roupas nativas. Os créditos dos carnês permitiam adquirir tudo.


— Passei uma semana na boa vida cinco estrelas do Hotel Portal.


— Segui, em grande estilo, no iate Hope, até uma das ilhas no limite noroeste do arquipélago.


— Uma viagem formidável pelo encantado mar do Caribe.


— Todas as despesas pagas.


— Aceitei as regras sem saber que tipo de jogo estava jogando.


— É como ter feito pacto com o folclórico demônio: ele atende às expectativas, porém, em troca, exige nada menos que a alma do adepto.


— SoulPlanet, murmura simultâneo o casal Hoiden com indisfarçável amargura. Compreendo o que significa ter vindo para este lugar.


— A Terra está superpovoada. Esta é uma das maneiras que encontraram para diminuir a superpopulação, e o governo economizar no pagamento da previdência.


Havia imaginado que a nave com comando informatizado, na qual embarcou com deliciosa expectativa, depois de divertidas férias nas ilhas do Caribe, não passava de uma simulação de nave interplanetária? A seqüência dos eventos mostrou: a aeronave que conduziu o casal Hoiden a SoulPlanet, era realmente uma nave interplanetária.


— Eles nos enganaram direitinho, exclamaram telepática e simultâneamente.


"Venha Conhecer Do Que É Feita A Alma. Ganhe Sua Passagem Para SoulPlanet.”


— O objetivo turístico está alcançado, mas daria tudo e todas as coisas para voltar outra vez à rotineira vida na velha mãe Terra. Nem que fosse como árvore.


O casal Hoiden convive com paradoxos inesgotáveis que se sucedem sucessivamente sem cessar, como aquele personagem do conto de Borges, O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam: Em todas as ficções, cada vez que se vê diante de diferentes alternativas, ele opta por uma e elimina as outras. Ts’ui Pên opta simultaneamente por todas.


Agora o par sente que virou personagem de ficção. Seus caminhos são os caminhos, bifurcam-se em direção aos vários futuros. Ele está no centro de um problema exata e infinitamente oposto: todos os segmentos de caminhos que se separam o fazem em direção pretérita. Realizam-se em direção à intensidade direcional das chamas do inferno ancestral. O futuro, enquanto dimensão através da qual toda vida deveria desdobrar-se, inexiste.


Sabem que tudo e todas as coisas que possam pensar são inúteis, insuficientes, fúteis, para tirá-los dessa situação de surrealidade. Não há ninguém para ouvi-lo, com quem possa negociar alguma condescendência. Alguém ou alguma coisa se apropriou da vida dele, e ele não pode fazer nada.


Sente-se absolutamente à mercê de uma opressão tão forte e definitiva, que consente em abandonar-se ao claustro desse tedioso horror, censurando-se por haver confiado demasiado nas propagandas de programas tvvisivos. Censura-se por ter aceitado, enquanto membro da sociedade globalizada, ser virtual. Real e virtualmente condicionado pela supostamente inofensiva telinha da sala de jantar.


— Uma vida virtual, irracional, dopada pela droga da propaganda.


— Domesticados e delirantes. O sistema apenas usa e descarta a gente. Não reajo, sou membro de carteirinha de um rebanho bovino, amedrontado e passivo. Como os carneiros do filme de Buñuel.


O casal pensa-se: tinha mesmo de ser substituído por carne nova. O sistema quer sangue novo, gente com pouca idade, sem “know-how” emocional, sem experiência existencial, isento de formação intelectual. O sistema quer conviver com a força de trabalho que não exerça nenhum tipo de crítica, que tenha aprendido rotinas mecanizadas, que aceitem ser uma engrenagem da megamecanização.


Para o "establishment", é preciso substituir por gado novo, as velhas gerações. As novas são facilmente compradas pela necessidade de sobrevivência. Os jovens vendem facilmente suas almas, sua força de trabalho, para as engrenagens do Mercado, sem nem desconfiarem disso, sem questionamentos. Ao contrário. Sentem-se eternamente agradecidos devedores subalternos dos senhores que lhes pagam o salário. Não questionam nada. Livram a própria cara, o resto do mundo que se dane. No mais, está tudo bem. “SoulPlanet, não passa de uma lixeira planetária”. Nela o casal Hoiden pode delirar à vontade. Ele e todos os outros milhares de casais que ganharam a premiação para conhecer este lugar, e aqui ficaram, trazidos pelo quadro Os Portais da Esperança do programa DomingãoDo100zão.


Na Terra, um jornal clandestino, editado por um grupo auto-intitulado "Eco Guerreiros da Liberdade", promove a distribuição de um hebdomadário com tiragem de dez milhões de exemplares, em vários países, denunciando como funciona o esquema globalizado, através do qual centenas de pessoas em vários locais do planeta, dividem entre si o espólio dos casais que ganham, através dos sorteios, o direito de viajar e ficar em SoulPlanet.


A Edição Extra do hebdomadário "Eco Guerreiros da Liberdade" denuncia que os casais premiados, antes de embarcarem na suposta nave interplanetária, assinam a transferência cartorial de seus bens móveis e imóveis, para testas de ferro da cadeia de tv que promove o evento Venha Conhecer Do Que É Feita A Alma.


Todo o processo de premiação está legal e juridicamente justificado. O governo federal de cada país fica com parte substancial dos lucros, a título de recolhimento de impostos. A parte do leão dos ativos financeiros dos políticos que recebem propinas para permanecerem silenciosos, está depositada em contas nos paraísos fiscais situados nas ilhas Cayman e nas Bahamas. Momentos antes de se instalarem nas confortáveis poltronas da astronave para embarcarem rumo a SoulPlanet, os "Eco Guerreiros da Liberdade" reproduzem no jornal, fotogramas gravados através de microcâmeras, por alguns canais clandestinos de tv, que mostram executivos do DomingãoDo100zão, muito solícitos bem vestidos e cordiais, a convidarem os casais a assinar os últimos papéis da burocracia do sorteio do programa.


Diz o editorial na primeira página: “Sob efeito de doses gradativas de hipnógenos, ingeridos nos vinhos de paladar deliciosos, nos pratos típicos especialmente condimentados, nas sobremesas irrecusáveis, os casais premiados subscrevem, risonhos e complacentes, os papéis, ignorando que esses executivos, educados e aparentemente serviçais, das emissoras de tv, em 117 países, estão se apossando de todo o patrimônio dos casais premiados, inclusive de seus ativos financeiros.”


O editorial dos "Eco Guerreiros da Liberdade" denuncia: “Quem poderia neste momento limite, defender seus direitos, zelar por sua cidadania? O processo de posse de seus corpos, de suas almas e de seus bens materiais é absolutamente legal, do ponto de vista jurídico. Se causar posteriormente litígio da parte de parentes, insatisfeitos com os acordos jurídicos subscritos (subliminarmente) pelos premiados, os advogados da corporação que defende os interesses do Canal100, nas Américas, Europa e Ásia, têm recursos e estratégias jurídicas, para superar tais impasses.”


O jornal dos Eco Guerreiros desmascara o esquemão oficializado dos advogados de defesa do DomingãoDo100zão. Os Eco Guerreiros divulgaram entrevistas tvvisivas, nas quais, supostos casais que teriam ido e voltado de PlanetSoul, de "livre e espontânea vontade", na realidade não passavam de clones das pessoas premiadas. Após as denúncias, houve muitas passeatas de protesto, com milhões de pessoas nas ruas, em dezenas de países, exigindo providências governamentais. Elas não gostaram de saber que mais de doze milhões de seus semelhantes (parentes, conhecidos), foram jogados numa lixeira cósmica, considerados anacrônicos.


Essas milhões de pessoas saíram as ruas porque desconfiaram de que, possivelmente, seriam elas as próximas vítimas dessa política. Por trás do programa DomingãoDo100zão, havia um verdadeiro exército de tecnocratas. O grande complô do funcionalismo público (municipal, estadual e federal) envolvido, representando a burocracia do terceiro ao primeiro escalão, nos Três Poderes.


A impressão geral de que os mortos tinham conseguido se levantar de seus túmulos, como nas profecias. Conseguiram desgrudar as bundas dos sofás das salas de jantar. A sensação de que a passividade coletiva virtual em que se mantinham as pessoas da sala de jantar, foi suspensa. Elas, afinal, se moviam de dentro de seus nichos apartamentos, confinadas que estavam, há décadas, pelos padrões de realidade virtual, para exigirem providências contra os esquemas oficiais que mantinham funcionando a principal premiação do Canal100.


Uma clínica administrada por famosos cirurgiões plásticos, foi invadida por policiais federais, no centro da Grande Maçã: Nova Iorque. Na batida policial foram recolhidos documentos falsificados de pessoas, funcionários públicos e da iniciativa privada, desempregados e ex-presidiários, que, através de operações plásticas substituíam, nas entrevistas, os supostos ganhadores das passagens para SoulPlanet, motivando milhões de pessoas à concorrência pelos carnês da premiação, incitando-as a conhecer a essência, a imanência, do que seria feita a alma. Pessoal e coletiva.


As investigações ocorreram por pressões inéditas da opinião pública, como se as pessoas estivessem a despertar de um longo e profundo sono virtual, e começassem a reagir contra as imposições subliminares dos filmes, programas ao vivo, jornais tvvisivos, e da propaganda direcionada no sentido de fazê-las participar da sociedade, apenas e exclusivamente, enquanto peças virtuais do enorme mercado consumidor globalizado. Nesse momento, parece que conseguiram despertar de um sonho virtual imposto pelas programações da tv. Saíam das salas de jantar aos milhões, em passeatas, como se estivessem despertando de um longo sono, recusando-se a serem mercadorias passivas, sombras da nova "Caverna de Platão" neo-pós-moderna: a sala de jantar.


O entusiasmo pela participação dos casais na competição pelo privilégio da premiação, antes tão intenso, diminuiu vertiginosamente. O detonador visual virtual do DomingãoDo100zão perdeu o emprego para outro profissional da área, pertencente a outro segmento do mesmo conglomerado tvvisivo, situado na Espanha. O conglomerado apenas reciclou internacionalmente alguns de seus funcionários, para simular que tinham sido substituídos.


Após as investigações federais supostamente efetuadas, foram feitas algumas prisões de profissionais detonadores virtuais, que apenas mudaram de país, mas continuaram a fazer parte do conglomerado tvvisivo, com programação globalizada, denunciada pelos Eco Guerreiros da Liberdade.


Enquanto isso, o casal Hoiden, após séculos, milênios, anos-luz talvez (quem poderia saber melhor que ele ?) ainda migra entre dois portais, sem se importar com os milênios de tempo terrestre necessários para ultrapassar cada um desses infindáveis cem metros de eternidade.











CRIPTOANÁLISE





Dona Cecília cai ao sair do coletivo. O filho da mãe do motorista parece que queria ver a velhinha derrubada. Mal pisou o degrau de baixo para o chão do asfalto, ele acelera. Ela perde o equilíbrio, cai.


— Maldito paraíba. Não fosse essa praga de imigração nordestina, Sampa seria uma cidade mais pacata.


Nem de longe lhe ocorreu que o motorista era filho da Capital. Para ela, toda espécie de facínora e marginal só poderia ser proveniente do Nordeste. Ensinaram-na a estigmatizar negativamente os nordestinos. Ela aprendeu bem a lição.


A megacidade continua a despejar seus dejetos traumáticos sobre maiorias indefesas. No fundo, no fundo, ela adora ver os policiais descendo o malho em trabalhadores sem-terra ou em greve, nos jornais tvvisivos da noite. Indefesa e simpática, a velhinha se exime de qualquer culpa.


Os culpados são os outros, como diria aquele existencialista: “O inferno são os outros”. Detestou os vereadores que votaram a favor da CPI da Máfia dos Fiscais. A boa “velhinha de Taubaté” tem especial admiração pelo “chefe dos chefes” da corrupção, em quem vota religiosamente em todas as eleições, quer ele se candidate a prefeito, governador ou a presidente da República.


Fica horrorizada que os detratores de seu ídolo tenham tanto espaço nos programas comentados de jornalismo na tv. “É o fim do mundo”. Acha que todos os fiscais, vereadores e os barões aproveitadores, que sugam o sangue aguado dos marreteiros, cobrando-lhes propinas para que vendam suas bugigangas nas ruas, prevaricaram, ao acusar seu político favorito de nomear funcionários intocáveis nas administrações regionais da prefeitura.


A velhinha, apesar de velhinha, sabe ser covarde. Não tem força física, mas seus preconceitos têm muita força, ainda. O motorista era crioulo, e como dizia sua bendita mãezinha, “crioulo quando não suja na entrada suja na saída”. Ela, como boa vovózinha, está passando para sua descendência todos os conceitos moribundos que aprendeu dos ancestrais.


Apesar da idade, confia que ainda mantém influência sobre os filhos e netos. No tempo dela as coisas não eram assim. Até a Marta, ex-Suplicy parece ter perdido a noção das coisas. Veja só, ruminou:


— Não se fazem mais políticas como antigamente.





O NOME DO TEU SÓCIO


(Brasil do B.)





Joãozinho Trinta e Oito, 19, tá numa maré baixa. Entraram dois PM no ônibus antes dele resolver meter o cano do trabuco na morimga do cobrador. Desce apressado e tropeça no meio-fio, a correr. Os hôme, alertados pelo motorista, saem na captura, mas já não dá pra pegar as pernas compridas no pinote de fugir da polícia.


Injuriado, ofegante, jura que não vai dá mole pra mulher grávida, idosos, estudantes, ou quem quer que lhe pareça suficientemente fraco para não reagir a assalto a mão armada, numa dessas calçadas aonde perambula com carteira profissional sem registro há nove meses. Reagiu, dançou. Cansou de catar registro profissional do salário mínimo.


Agora vai cobrar de todo mundo que cruzar seu caminho, e parecer suficientemente indefeso. Meses e meses de busca e frustração: das firmas só conseguiu um monte de nãos. De alguma forma tem de se defender. Tá ficando escolado com a malandragem. Não caiu em cana nem uma vez. Tá limpo com os hôme.


Chega dessa comédia de pedinte. Afinal, tem de defender o leite das criança. No sufoco, se tiver de apertar, aperta. Por enquanto ele, o apertado. Esse tênis importado que ganhou ontem, após o homicídio daquele grunge bundão, tá ardendo no calcanhar. Dando no saco. Pega o metrô República, baldeação na Sé, direção Corintians.


Em uma hora está na sinuca do Joaquinzão. Acerta um trampo: cheirar essa paranga de galo, sabe lá quanta mistura: sal de fruta, veneno de rato, pó de giz, o diabo. Paciência, enfim, desistiu de achar lugar para ganhar o sustento dos filhos, um salário. Assalariado, outro nome pra escravo. Caiu na real.


As autoridades empurraram ele pra danação social. Tá ruim, até pra quem quer sobrevida no mínimo. Ser honesto, nem por malandragem. Depois de mil vezes rejeitado, sabe ao certo que nasceu pra estar por conta do capeta. Crack jura: nessa não embarca. Pára no ponto vazio. Esmaga com a pressão dos dedos as pelotas do papelote.


— Essa coisa é quente.


Da nota de dez, faz canudinho. Encosta no muro, olhar paranóico e ameaçador. As pupilas saltam, ora para o canto direito, ora para o esquerdo ocular. Enfia as fuças, cafunga com entusiasmo, de uma vez, a metade do bagulho. Tá doidão, vamos nessa, pronto pra aprontar. Aí está o “bus”, meia dúzia de passageiros. Já mudou de jurisdição. Pode sujar que tá limpo.


Vai sobrar pru cuzão do trocador e do motorista. Esses ganhos merrecas já minchou: migalhas. Daqui pra frente vai aprender a ser gente. Fazer a feira nos posto de gasolina, nas lojas de conveniência, nos caixas 24 horas. Pra frente é que se anda. Precisa segurar o pique do progresso: ganhos de carro nacional tipo carroça. Depois passa prus importado.


Tá aprendendo a ser gente, passou a freqüentar as bocas quentes dos Jardins. É lá que está a grana, na conta bancária desses merrecas gays. Eles adoram uma sacanagem. A maioria tudo frouxos. Precisa aproveitar a idade e a suposta boa aparência para agilizar o pé de meia.


Fazer com que, um pedacinho que seja, do bolo da riqueza desse país venha pra seu bolso. Em breve vai abrir uma conta bancária, investir em CDR. O que cair na rede é peixe, mano. Modernizar os arroxos. Cartão de crédito clonado, clonar celular é a onda de todo corrupto graúdo.


Ouve dizer que todo mafioso alto escalão está fazendo isso, transação da hora. Um dia vai chegar lá. Não quer sentir-se isolado da modernização por que passa a nação. O próprio presidente diz que o país está a modernizar-se. Ele também. Aquele flozô, a sexta vez que olha delicado pra ele. Por hoje já tem por onde se safar. Depois é depois. Amanhã vai vê como é que fica.





A DÚVIDA





Quem desta vez se terá jogado ? De que andar ? Por que terá feito isso ? Solidão, talvez ? Poderia ter feito algo para que não acontecesse? As interrogações soavam como instigantes pílulas de culpa na mente de Marcos. Ele conhecia os sintomas: muita gente amontoada em torno de um corpo exangue. Alguém se atirou do alto, por motivo ignorado, alguma angústia insuportável. De qualquer forma, sabe bem a quantas andam próximas as pessoas de desistirem da lida. Como se mantêm afastadas, uma das outras. Talvez por medo de tornarem públicas suas inquietações e intimidades. Quiçá por estarem excessivamente viciadas em se guardar para si mesmas, negando-se compartilhar até as mais banais complexidades. Quem desta vez estará estendido no pátio do prédio, sem palavras, sem gestos animados de partilha ? Partiu para a melhor ou tudo se acabou ? Quem se terá negado a si, e aos demais, de modo tão drástico e definitivo ? Não quer nem saber. Tem medo de olhar e reconhecer-se.








SORRISOS





O índio desce do ônibus na Praça da República, tropeça num coco próximo à calçada. Uma senhora ri com excessiva afetação. Ele olha para a mulher, a princípio sem compreender porque tanto divertimento a partir do tropeço.


Vê a profundidade de suas frustrações, de seus sofrimentos em suas rugas precoces, em suas cãs fartas, no sorriso sem graça, forçado. E matutou: o homem branco vive caindo de edifícios, se mulher e filhos de homem branco morrem aos milhares em desastres de carros e na queda de pássaros de metal, homem branco vive se matando com armas de fogo, não passam um dia sem mentir e enganar uns aos outros.


Por que será que mulher branca riu tanto do tropeço do índio? Aqueles sorrisos eram tristes e mostravam uma certa demência. Por que sorrir, se hoje mesmo, pessoas estão sendo assassinadas em nome dos que têm poder de fazer as leis que protegem a concentração de riqueza. E os chefes brancos dizem, mesmo sabendo que ninguém acredita, que matam em defesa da democracia e da civilização.


Violência em tudo que é lugar. Dentro e fora das casas, dos apartamentos. E os responsáveis pela matança estão cada dia que passa mais ricos e impunes. E as leis vão ficando cada vez mais favoráveis aos da bandidagem que se uniu à supremacia dos colarinhos brancos.


Sou índio, xamã. Xamã da tribo dos Xavantes do Xingu. Fazíamos guerra uns contra outros, mas os motivos não se justificavam. Mesmo em nome de nossa coragem e heroísmo. Ele, um índio, sabe disso. Compreendo isso. E o branco, com tanto estudo, não ? Matar é mal de muito longe no tempo.


Ararapã ficou matutanto alguns momentos. Pensou que branco sorrir forçado e quer forçar os outros a sorrir. Já viu em muitas lojas, muitos lugares uma cara imitando um sorriso com os dizeres: “Sorria, você está sendo filmado”. Ruminou com seus botões que aquele convite de branco era como presente de grego. Fazia parte da cultura da ameaça que tumultua a vida de toda gente na cidade grande. Quer dizer que branco está sendo vigiado todo tempo, que nenhum confia uns nos outros.


Brancos, pretos, cafuzos, mestiços, amarelos, caburés, todas pessoas. Já não é sem tempo de parar a matança. E os sorrisos para os que querem sempre te fazer de bobo, dizendo que, de uma maneira ou de outra você é um suspeito. Não merece a menor confiança.











EU SOU BOY





Mal diminuiu a velocidade do coletivo, salta. Para não se esborrachar na calçada, saiu catando cavaco, rezando para não trombar com nada pelo caminho, esborrachar-se. Uma carrocinha de pipoqueiro foi atropelada pelas mãos defensivas, pelo corpo projétil. Felizmente não havia vidro para quebrar.


Chegou a sentir a quentura do panelão, o milho a pipocar. O pipoqueiro pragueja. A pressa, a maldita pressa, precisa chegar na fila e não ser um dos últimos dos cinco mil pretendentes ao emprego. Se perder essa boca dessa oportunidade de trabalho, boy motoqueiro, vai escancarar, partir pra fazer ganhos nas ruas, onde os carros param nos faróis das avenidas. Já escolheu o ponto, um cruzamento da avenida Nossa Senhora do Brasil com uma rua de muito movimento, não lembra o nome, mas sabe onde fica. Sem essa aranha, tem de livrar a cara e se defender.


O leite das crianças não pode faltar. São Jorge ajude nessa parada. É corintiano e lê a Bíblia. A mulher faz programas para ajudar nas despesas da casa. Ele tem de aceitar. Tem santo de cabeça, protetor. Pode ficar mais tempo nessa de desempregado não.


Se o destino for esse, que o divino guerreiro dê moral pra defender o pão da família e fazer uns ganhos na moral, na responsa, sem vacilo. Passar fome não é pra homem de vergonha não. Preciso desentocar o trinteoitão, encarar na cara dura, bater de frente nos hôme pra defender a grana básica, a cesta básica, o sacolão das crianças. Eu também sou gente. Gente precisa sobreviver como manda as condições.


Votei no presidente dos cinco dedão aberto dizendo que o mundo todo ia melhorar. Ainda não sei pra que votar. Eles não cumprem nada do que falam. E se governam não é pra gente como eu. Se nasceram sem necessidade, como podem se lembrar de gente como a gente, que não tem onde cair morto? Eles que nunca se vestiram igual a nóis? Nem sabem nunca o que é viver com cesta básica e salário mínimo. A gente não tem direito àquela vida que eles mostram nas propaganda de tv. O mundo foi feito pra gente como eles enganar o resto do mundo. Eu faço parte do resto do mundo. Não sei não.





MADAME ENTREFERAS





Dona Ruth pega o ônibus para fazer um programa diferente. Deseja sair da rotina, mostrar a si mesma seu alto senso social. Ela precisa estar mais e mais atualizada.


Na realidade ficou entediada à espera do carro. O motorista deveria chegar em meia-hora. Saíra da consulta mais cedo. Não custava nada fazer uma incursão rápida pelas calçadas. Observar a careta sofrida e aflita do povaréu ao redor. Uma aventura. Depois, rapidamente voltar para a segurança do automóvel.


“Sim, pegar um ônibus, por que não? Uma oportunidade de chegar perto e esnobar essa cambata de filhos da mãe que aceitam salários medíocres para se estressarem a vida toda no transe das ruas e avenidas de Sampaulo. A vida deles é como um metrô que nunca chega à estação final. Sempre girando em volta da mesma roda-viva.”


Foi entrar no coletivo e logo murmurar de si para consigo: “Nossa! Quanta cara de frustração e ansiedade. Esses passageiros mais parecem habitantes de um manicômio deserdado pelas verbas do Fernandinho. Credo, a coisa está mesmo feia.”


As expressões passam ameaça, raiva, ira ou enfado, parecem prontas para revidar a qualquer tentativa de aproximação, com um chute, um malefício brusco, intimidativo. Ainda dizem que brasileiro é povo hospitaleiro. Esse folclore é pragmático, turístico. Ainda bem que ela não tem saco, o mesmo pode dizer do marido, senão poderia levar um pontapé neles. “Rodar de coletivo por necessidade, nem morta”. Não se sentiu bem no interior do veículo, próxima ao odor desses desodorantes de sovacos baratos, “gente que, Deus me livre Karl Marx, chega em casa vai ver Ratinho Livre, a novela das sete, ou o José Luís Datena”.


Começa a sentir-se mal, entre essas caretas de eleitores, frustradas, em parte, pelas promessas de palanque do marido. Muitas parecem estar usando máscaras de desempregados, doentes, malamados. Céus, não deveria ter saído sem a companhia de seus seguranças.


A aparência de necessidade ampla, total e irrestrita dos passageiros. “Que náusea sartreana”. Mal tinham passado dois pontos de ônibus, estava quase arrependida. Um trombada esbarrou nela, enquanto uma mulher tratava de puxar seu colar amarelo, no que foi impedida, por seus gestos de defesa. A estocada do canivete do marginal, de menor, feriu-lhe a testa.


O motorista pára o coletivo para ela descer. Madame dá meia volta e desce pela porta da frente, sem pagar a passagem, não se aventura a chegar até a roleta em meio a tantas intenções hostis.


O moleque abre o canivete e olha para a mulher que está no comando dos roubos dentro de coletivo. Ela faz uma leve movimentação no canto do olho, ele entende que não é para descer atrás, e cortar a garganta daquela dona não. A mulher que controla o trombadinha sonda-se: Nem sabe aonde, mas já tinha visto ela em algum lugar, talvez até já tivesse assaltado ela, consolando-se, diz de si para consigo que ela deve estar usando bijuterias, jóis de aparência, sem valor.


A malamada mulher ainda hesitou: “Deixava ou não aquela mulherzinha “chic”, apavorada, pelada das bugigangas? Mas ela se acha prestes a reconhecer a primeira dama. “Esse colar é ouro de tolo, esse relógio quem sabe vale alguma merreca. Não, shiishii, será ela mesmo? Vou livrar a cara da madame, senão vai sobrar pra mim, vai dá manchete, o pau vai quebrar no meu terreiro.”


Não quer forçar a barra. O marido dela é capaz de tudo contra o povo, daqui um ano ele vai dar outro aumento de cinco ou dez reais para os assalariados do mínimo como se tivesse fazendo um grande favor. Prefiro acreditar que a madame vai se dá por agradecida, ao sair dessa ilesa.


Dona Ruth agradece ao motorista por ter parado. Ao descer, esbarra no meio-fio e dá de cara nos joelhos de um negão. As pernas dobram e encostam no chão imundo, escarrado e urinado da calçada. “Que trauma”. Riram dela. “Esse povim é um nojo”. O negão ajudou-a a levantar-se.


“Que gentinha mais mal educada”. Dona Ruth avia-se, esquece por um momento seu background ateu e clama para vir um táxi pelo amor de Deus. Quer voltar logo à porta do consultório do ginecologista. “São apenas cinco ou seis quadras, mas daria todos os meus salários desse semestre, com décimo terceiro e tudo, para sair o mais rapidamente possível dessa ratoeira violenta que é o interior de um coletivo na metrópole paulista”. Não quer permanecer indefesa à mercê de outros marginais na calçada, nem por mais um minuto.


Afinal, a “tiazinha do FMI”, como é conhecido o presidente, não está investindo nada em saúde, educação, habitação, nessas coisas sem as quais a cidade explode em todos os lugares, em violentas manifestações sociais da necessidade e da paranóia coletiva. O Fernandinho devia estar no meio deles pelo menos duas horas por dia. Essas duas horas modificariam sua sensibilidade social, ele seria tentado a investir nestes setores, dissesse o que dissesse o bêabá do Fundo.


Murmura: “Mas para o Fernandinho, investir no social é sair na coluna do Zózimo pelo menos uma vez por semana.”


Acredita-se uma mulher de coragem, fazendo pesquisa de campo. Ainda que censurando-se por ter saído e tido o pulso de expor a garganta para o canivete afiado do maldito pivete, aquele criminosozinho filho da mãe Sampaulo. Ainda bem que ele tem respeito por alguém ou alguma coisa. Imagina se aquela mucama desgraçada cisma em não me reconhecer, e autoriza o menor a cometer o delito.”


As manchetes seriam um escândalo: “Mulher do presidente assaltada num ônibus da linha Anhangabaú/Vila Mariana”. Uma irresponsabilidade arriscar fazer mais propaganda negativa do governo.


Uma mulher fina como ela, não pega bem estar em meio ao povão mal banhado em cosméticos baratos. Essa maldita mania de se fazer personagem dos anos setenta. Exagera na autocensura: Você cresceu Ruth, essa coisa de ônibus era no tempo de estudante. Você é uma dama da alta sociedade. É mais do que uma cidadã, é uma burguesa, faz parte da elite econômica desse país globalizado pelos patrões do Fernandinho. O tempo passou, você agora é sexagenária. Dá um tempo nos condicionamentos de juventude.


Resolve fazer um exame para outra reposição hormonal na próxima semana.


O táxi a deposita, agora não mais tão aflita, na porta de entrada do edifício do consultório médico. Vai de passinho miúdo mas apressadinho, até à sala de espera. O porteiro faz um agrado:


— Dona Ruth, quando o motorista chegar eu aviso pelo interfone.


— Obrigada. E repete para o próprio ouvido: Tivesse de ficar mais tempo naquela roda vida... Afinal, de volta ao lugar dela, ao bem-bom da sala com ar refrigerado e reproduções de pinturas cubistas.


— Aqueles poucos minutos no burburinho neolítico, na certa poderiam ter causado um mal-estar bem maior: sofrer um assalto, um seqüestro ou outro tipo de sinistro. Povo é um conceito sociológico que só fica suportável nos tratados de Sociologia, nos planos altruísticos que gerencia como mulher do chefe do Executivo. Julgou-se uma grande e corajosa heroína. Não precisava ter-se embrenhado na selva de pedra, mas queria ter tido essa experiência, pelo menos uma vez nessa década.


Uma vez só basta: Cansou a beleza nessas incursões perigosas para o outro lado do muro da vergonha que separa os discursos bem-intencionados da realidade, do contexto onde pipocam as manifestações sociais virulentas da grande cidade. Numa Democracia todos têm direito ao ato constitucional de ir e vir. Certo, mas dentro de seus competentes nichos sociológicos.


Dona Ruth aproveita a comoção intestina. De volta do banheiro à confortável poltrona da sala de espera, maldiz o maldito motorista que ainda não chegou. E continua dialogando com seu alter-ego:


É certo que os prisioneiros dos campos de concentração da II Guerra, locomoviam-se dentro do direito restringido a espaços relativamente bem menores. Sim, porque com o que a renda familiar desses desgraçados pode comprar, sobra muito pouco após o supermercado da cesta básica.


— A classe média está no caminho da proletarização. Locomove-se dentro do círculo vicioso do apartamento até o ônibus, do coletivo à igreja, da igreja ao cinema, do cinema ao MacDonald’s, e vice-versa. E o Fernandinho viajanto, fazendo turismo diplomático. Aceitando a corte dos bundões do colarinho branco internacional, a puxar os cordões fáceis de seus sorrisos forçados, de tubarão simpático. “Como é fácil sensibilizar a marionete sem cordões que é o Fernandinho. Qualquer cortesão do Planalto faz ele se derreter quando de um elogio à sua elegância, travestido nos seus ternos de grife à francesa”.



Afinal, era mais audaciosa e corajosa que suas amigas que nunca se aventurariam sozinhas em meio à massa, como ela tinha feito. “Só mesmo eu”, afirmou-se.


Vai contar a aventura no chá das cinco, escandalizar as amigas. Comentarão por longo tempo sua incrível coragem em submeter-se à aventura de, por breves momentos que pareceriam intermináveis, ter estado neste safari heróico, por esta África neolítica da selva de pedra paulistana.


Na reunião do chá no Alvorada, uma amiga íntima, que havia feito por duas vezes inclusões de silicone para aumentar o tamanho das mamas, comentou ser ela muito corajosa:


— Não tenho peito para isto, queridinha.


— Não se arrisque tanto, minha querida, comenta a Cláudia Cow.


— O Fefê não vai gostar de saber, exclama em tom de censura a Denise Gestunken Gestalt. E todas, por consenso, a elegem a Indiana Jones feminina, mulher de extraordinário valor, desafiou a sociopatologia chic da nacionalidade, desceu aos infernos por quinze longos minutos.


— Santas amenidades, exclamou, estou finalmente em casa. Ente elas sente-se outra vez uma Madona: inteligente, plástica, corajosa, irreverente, sensível, invisível e protegida.


A GAROTA DOS MORTOS





"A manifestação do temor era múltipla


despojada das faculdades mentais,


silenciosa em sua dor, jazia estupefata,


qual fugia, qual ficava."


Ovídio


(Descrevendo o terror das mulheres Sabinas)





Vive-se nesta dimensão de tempo e de espaço convivendo simultâneos com outras dimensões do existir. Próximas, ao mesmo tempo infinitamente distantes. Existe-se numa densidade da matéria que, exceto em raras exceções, nunca consegue ultrapassar os limites intransponíveis entremundos.


São muitos os paradoxos a vencer no congestionado caminho entre os pressupostos científicos incontestáveis, os dogmas dos sistemas de pensamento estabelecidos, versus os fenômenos que não são por eles explicados dentro das fronteiras da racionalidade acadêmica. A humildade diante do desconhecido facilita sua compreensão.


O tempo presente e o tempo passado. Não me havia detido sobre como a influência pretérita age, inspira, transmite fluidos e ascendência. Os vivos de ontem conseguem penetrar no corpo etérico, na aura dos vivos de hoje?


É possível à energia transcendente dos mortos, ou de seres de outra dimensão, transgredir as leis de distanciamento que separam as fronteiras entre este e outros estados físicos mais fluidos da matéria?


Depois de conhecer Paula, estou certo da existência de forças cruéis, fortes. Desejam manter as pessoas que nascem neste mundo sob a tutela de medos, dores, frustrações, desejos e sofrimentos. Diderot afirmava que o homem nasce no mundo de uma hereditariedade predisposta a fazer-lhe mal.


Esta história talvez possa contribuir para uma melhor compreensão deste fenômeno: Encontrei Paula na fila de cinema do shopping center Iguatemi, num fim de semana do mês de junho de 1989. Começamos a namorar. Na sala de seu apartamento, a presença de cinco molduras de metal antigas: servem de encaixe para fotos de seus ancestrais. Cinco fotografias, embaçadas pela turvação do tempo, formam na parede uma estrela de cinco pontas: pentáculo decorativo.


Paula divide o espaço do apartamento com a tia, como qualquer garota em busca de proteção, indefesa frente às exigências de sobrevivência do selvagem zoológico de uma realidade que determina a insegurança de sua humana condição.


Quem não está indefeso neste zôo ? Jovem balzaquiana, vive suas contradições, recém egressa dos vinte anos. Para ter menos problemas, gostaria de ser estável como uma tia: casada e mãe de filhos, marido sob controle da libido.


Não é assim que a vida acontece. Participou do último alento do movimento hippie na década de setenta. Provisória liberdade sexual forneceu à Paula a ilusão de que abriu uma porta a separá-la da estreita mundividência metalfísica da geração de sua tia.


Paula está dividida entre assumir os preconceitos de uma concepção excessivamente mesquinha dos sentimentos e emoções, ou viver num contexto em que valores tais é, real e simplesmente, pó. Teme talvez ficar sem a contribuição da tia nas despesas do apartamento.





A tia parece aceitar minha presença sem restrições. Exceto a de vir congestionar o espaço habitacional dela e da sobrinha. Paula denuncia seu autoritarismo. Eu acho a "tia" uma mulher enérgica. Apesar da idade, não renuncia à defesa anacrônica de suas opiniões defasadas.


Gosta da empatia tvvisiva com as personagens do horário nobre da "novela das oito", dos musicais de música caipira e da programação dominical do "tio" Silvio.


Apesar de balzaquiana, Paula não passa de uma adolescente infantilizada pelos parentes. Vivendo os conflitos de uma família medianamente estruturada. Personagem de uma geração que apenas ensaiou criar um l esprit d équipe.


O espírito de equipe de uma geração que se dispersou. Representa o papel familiar de uma garota que sabe das coisas da vida ... Mas sua idéia atual do conflito de gerações é apenas um fenômeno de superfície.


Talvez deseje ser uma tia normal, sem mais conflitos. Convivendo pacificamente com todos, apesar das entrelinhas desfavoráveis, da existência de arestas que não podem ser aparadas.


Normal que a velhinha não goste que seus programas televisivos sejam interrompidos pela exibição em vídeo de filmes que, por vezes, fazem cessar a sensação dominical de estar participando coletivamente das emoções do "topa tudo por dinheiro".


No domingo, que programa pode ser mais importante para ela, do que as maravilhas de sua convivência cultural com as gracinhas do "tio" Silvio? Comigo e Paula, a convivência tolerada. Simpatizo com a velhinha, faço as concessões de praxe. Os vídeos ficam para depois de sua fruição cultural dominical.


Sobrevivente da contracultura do período hippie, aprendi a aprender a ser tolerante. Respeito às pessoas sem perder de vista um certo distanciamento. Sem fazer concessões além do necessário. A tia não espera que Paula e eu tenhamos maturidade suficiente para manter um relacionamento afetivo, emocionalmente estável, por longo tempo.


Apostam, as "tias", que vêm visitá-la ou telefonam com frequência, na desvitalização em médio prazo do namoro. Não falam às claras. São como que participantes de uma "maçonaria" de mulheres. Porém, sei decifrar as entrelinhas das conversas ouvidas ao acaso. Eis Paula para elas: apenas uma pessoa sob controle. Absolutamente previsível.


E se assim não for, saberão como providenciar no sentido de que a influência delas prossiga preponderante. Nossos fins de semana começam sexta à noite. Terminam na segunda de manhã, quando a rotina do trabalho exige os horários lançados nos cartões de ponto.


Estou estrangeiro neste universo ordenado das "tias". A compatibilidade libidinal nos segura. Não ignoro o que representa para Paula o circo dos horrores das aparências mantidas por seus familiares. Ela costuma sublimar as agressões sub-reptícias, veladas. Age como se todos os dias do ano fossem primeiro de abril.


Paula aceita os jogos de palavras e as brincadeiras carregadas de auto-afirmação imbecil, porque tudo acontece como se fosse num universo paralelo de cinismo mal disfarçado: a passiva aceitação de sua condição de prima pobre da família.


Os componentes sádicos do caráter de alguns de seus familiares exercem-se de maneira a mais natural possível. Usam Paula como se fosse uma médium masoquista de suas projeções mentais. Ávidas por prosseguirem exercendo domínio anímico a partir da prevalência econômica.


A prima pobre deve, segundo seus pensares, submeter-se à "riqueza" de suas "boas intenções", por mais pérfidas que sejam. Na real, somente desejam que faça parte da realidade familiar como uma pessoa "que conhece seu lugar".


Nestes seis últimos meses de convivência, estranhos sonhos insistem em povoar meu sono. A memória onírica tornou-se nebulosa e sombria. A cabeça pesa como se estivesse sob a pressão maquiavélica de uma força estranha e sutil, agindo em minha mente com sinistra suavidade.


Sábado de madrugada, há dois meses, aconteceu de me surpreender imerso num estado de torpor. A luta entre sono e vigília se estabeleceu. Uma sensação de crescente paralisia imobiliza meus membros que não obedecem à vontade de querer movimentá-los. Abrir os olhos é o mais que consigo de meus movimentos.


Estão mesmo abertos ? Ou estas sensações não passam de pesadelo? Há a presença coercitiva desta névoa transparente, opressiva, cristalizada em torno de meu corpo, imobiliza membros, ameaça de extinção os sentidos. Impede a visão em profundidade.


O quarto na penumbra: sinto-me preso igual estivesse no interior de uma redoma de cristal numa cerimônia de holocausto. Observado, censurado por dezenas de olhares repreensivos, admoestadores. Deles emana castigo, malefício, intimidação e ameaça.


Como sair fora deste horror? Quero despertar, não consigo. Não é sonho nem pesadelo. Desejo emergir desta sensação paralisante, tumular. Deste magnetismo entorpecente, nefasta emanação proveniente de seres a serviço de indizível morbidez: do mais puro mal.


Esses seres ameaçadores não são de carne e osso. Se o fossem, me teriam trucidado. Penso que são entidades incorpóreas. Estão presentes por todo o espaço capsular do quarto: íncubos e súcubos, talvez. Meus olhos entreabertos fecham-se. Estou cercado de maldade, medo e horror por todos os lados. Que fazer para vencê-los? Provocam uma empatia abjeta, abominável.


O simples gesto de abrir e fechar os olhos outra vez, causou uma reação de hesitação na força coletiva a me ilhar. O fanatismo dominador da mórbida energia paralisante arrefece, por momentos. A energia não é tão forte. Os agressores são covardes. São legiões, por que estão aqui, em meio a seres mais compactos de outra dimensão?


Senti intensificar, como se isto fosse possível, o ódio insano destes malfeitores do astral. Sua incontrolável e maligna ira não pode ser maior. Encontra-se numa intensidade limite de manifestação ritual. Persisto lutando para poder emergir desta bruma. Consciente de estar partícipe desse ritual macabro.


Resistindo à tirania abri pela terceira vez os olhos, a única forma que encontro de reagir à covarde drenagem de minha energia vital. A turba, sentindo a reação pertinente de minha consciência, ainda que tênue, esvazia o aposento como se sugada por um funil com grande poder de sucção.


— Paula, você está bem? Quero pronunciar a frase. Outra vez as palavras não saem.


A luta pela autonomia da consciência continua. A nefasta e impertinente opressão dessa espécie de demência astral coletiva, pusilânime. Uma experiência da qual se precisa emergir vitorioso. Esses seres de influência sepulcral não pertencem a este mundo. Desejam exercer sobre os vivos seu enfermo e morbíparo poder de vampirizar.


Estendo o braço, em câmara lenta, rumo ao corpo de Paula. Busco sentir contato, ela não está na cama. Estranho. A estas horas da madrugada não costuma sair do quarto. Consigo mover o dedão do pé esquerdo. Após o súbito afastamento dos seres tumulares, os músculos aos poucos adquirem outra vez a contumaz elasticidade.


Afunilaram-se, com força sutil, mas avassaladora, as sanguessugas da vitalidade humana. Não poderiam ter seqüestrado Paula, para a dimensão donde, de alguma forma, vieram.


A sinistra força, ao se transferir para o mundo mais sutil, continha a intenção de carregar consigo o espelho, o guarda-roupa, a cama, a estante, as caixas de som, os móveis do quarto por ela provisoriamente impregnados.


Passados alguns minutos, caminhei até a sala em busca de Paula. Nela chegando, vejo por breves momentos (ilusão de óptica ?), o espaço interno do pentáculo formado pelas fotos de seus ancestrais, se afunilar, contrair, numa espiral de partículas cinzentas girando em sentido horário. O fenômeno sumiu rapidamente, sugado pela força centrípeta de seu epicentro.


Apalpo perplexo a superfície da parede em busca de algum indício real da fantástica visualização. Emana da área central do pentáculo intensa algidez, remanescente da sucção dos corpúsculos cinzentos, persiste a presença de intenso magnetismo a incitar para si minhas mãos em direção ao ponto na parede no centro do pentáculo.


Paula está prostrada, subjugada. O corpo tencionado ao longo do sofá. O branco dos -olhos abertos aparecendo, como se estivesse sob efeito de forte transe hipnótico. Bato de leve em suas faces, chamando-a de volta ao estado desperto, à consciência.


— Paula, você está bem ? Desperte. Sai dessa, reaja.


Neste momento, a sombria presença de mais alguém se faz sentir na sala. O medo do desconhecido volta a acontecer. Seja o que for, entidade elementar aliada a larvas ou micróbios errantes do astral, não vão conseguir me entorpecer. Manterei perene a vigília.


Seus olhos são duas tochas brancas, apesar da ausência das pupilas, passam a impressão de estar vendo tudo. Participando do mórbido evento. O olhar de alguém mais na sala está pousado sobre mim, carregado de advertências, deseja ver-me acossado: uma adversidade próxima a lançar seu malefício.


Preciso vencer o medo agora. Uso o fato de estar com sede, como se de ressaca, apesar de não ter ingerido qualquer bebida alcoólica há dias, para levantar-me do sofá e encarar o envilecido desafio do olhar adversário. Tal olhar logo se transforma numa malta de seres indefinidos, estranhamente familiares, que me encaram a partir dos globos oculares de uma mesma face.


Cada olhar que se sucede busca acessar minhas emoções, intensificar possível manifestação emocional de medo.


Olhos espreitam, esperam atingir uma faceta de meu ser emocional, fazer prevalecer alguma magnética tentativa de sedução. Decepcionam-se. Nada cedo de meu espaço anímico, ainda assim a investida maquiavélica mantém-se. Seu propósito não logra êxito, mas insistem os olhares em fixar-me com mórbida e impertinente intencionalidade.


Tais seres vivem de sugar as emanações emocionais de pessoas carregadas de raiva, ódio, medo, ressentimentos. No mundo atual sentem-se à vontade, proliferam em abundância. Garantem seu alimento sutil sugando-o da falta de equilíbrio nervoso da maioria silenciosa, de suas emoções planetárias desvairadas.


Os ressentimentos intensificam-se de tal modo, que não vejo o momento de afirmar-se uma agressão física. Nesse instante salta sobre mim como se quisesse esganar-me, a estrutura óssea crispada: mãos longas e longos braços tentando fechar os dedos desencarnados em meu pescoço. Estou partícipe de uma zona morta de eventos incomuns, que ocorre talvez entre duas dimensões astrais.


Súbito, meus braços defensivamente se postam cruzados frente ao rosto, enquanto o tronco verga para trás ao modo de um pugilista que se defende de um soco cruzado do rival, num ângulo de 90 graus.


Não consigo fácil livrar-me das mãos descarnadas que pressionam as falanges em torno de meu pescoço. A coisa parecer estar recolhendo-se ao corpo larvar, mas não... Está de volta agora, outra vez, em minha direção.


A possibilidade de levantar o pé à altura do queixo da visagem impressionante, numa resposta condicionada à agressividade dessa entidade feita de hostilidade e horror, descarto. Talvez seja esse o tipo de resposta que esteja querendo. A violência já está por demais disseminada. Não vou contribuir para aumentá-la.


Surpresa: a coisa como que perpassa a densidade de meu corpo físico e rapidamente se esvai, dissipando-se, sem que pudesse notar para aonde, exatamente.


O corpo plenus larvarum continua na sala, só que, enfim, parece estar domesticado. Para vencer sua investida usei o princípio do espelho universal: "Dirijo a você, em dobro, a intenção reflexa de sua imagem. Imune sou a qualquer negação de minha dignidade.”


A visão da malta de olhares ameaçadores, aos poucos foi sendo substituída por um único e patético olhar. O olhar familiar da indefesa "tia" vestida num roupão, de pé, no corredor que dá acesso à cozinha.


— Ahh, é você tia, exclamei.


Ela grunhiu uma resposta, afastando-se em direção ao quarto, passos flutuantes, como se estivesse pisando em ovos.


Chegando à cozinha, ingiro um copo de água mineral. Volto à sala onde Paula permanece imersa em algum nicho mental do mundo dos pesadelos.


— Paula, que está havendo? Vem comigo. Está tudo bem agora. Chega mais.


Sussurrando palavras ininteligíveis, senta-se no sofá. Sua pele está excessivamente fria. Gélida mesmo. Aos poucos consegue levantar-se e caminhar até o quarto. Chegando à cama, desmaia de sono.


Não consigo dormir. Meu ego indaga ao inconsciente excitado mil coisas. Perguntas e mais perguntas sem respostas. O domingo amanheceu nublado. Neste e nos dias seguintes, faltou clima para serem comentados os acontecimentos.


Cinco dias depois e ela ainda permanece esquiva, arredia. Sexta-feira, ao entardecer, compramos alguns livros na Livraria da Vila. A seguir entramos num dos bares da Vila Madalena. Paula pediu um suco de laranja e um chope. Eu, água mineral e um cointreau.


— Aquela coisa aconteceu outras vezes, por que você nunca me disse nada ? Exclamo.


A conversa por si mesma carregada de certa tensão. Responde a pergunta temerosa de entrar no mérito da questão. Estou ansioso para ouvir sua versão dos fatos.


— Vamos falar disso depois?


Este não é um assunto para ficar pra depois.


— Qual é a sua ? Como pode sublimar esse horror ? Agir como se nada houvesse acontecido ? Estou saindo fora desse ambiente de morbidez, não vou ser conivente com isso.


— Não sei ao certo o que aconteceu, estava dormindo.


— No sofá? Você nunca dorme lá. Por que estava nele exatamente quando a coisa ruim aconteceu? Acha natural seu transe? Que houve realmente?


Paula replicou agressiva:


— Coisa ruim ? Todos vivem em meio a coisas ruins. Pode haver algo pior do que a justiça, os políticos? Você não anda pelas ruas ? Nem lê jornal ou vê tvvisão ?


Faltou perguntar em que país estou vivendo. Está francamente na defensiva:


— O horror, você fala, horror. Não sabe ? É onipotente, onipresente, onisciente. Está em todos os lugares, o horror é Deus, cara. A realidade nas ruas das cidades. A impunidade, a violência, a fome, o sadismo da sociedade...


— A argumentação procede. Mas não justifica abrir mais espaços para que ele mais completamente se manifeste. Paula está francamente exaltada. Confusa. Como se estivesse querendo pressioná-la sem motivo considerável. Está a esconder coisas.


— Querendo que eu encare a coisa com naturalidade, é isto? O medo e o horror são um fenômeno social generalizado... Ora, Paula, nem por isso vou garantir lugar na galera do horror e do medo. Não, obrigado, tem muita gente inscrita nesses partidos, jogando nesses times. Fazendo parte dessas torcidas.


— Ora, digo eu, afrontou. Todos parecem estar entregues, sem motivação para reagir... As leis mais primitivas são exercício diário dessa civilização dos corações solitários de cimento armado. Armado até os dentes.


— Ser troglodita é o normal, é mais cômodo, afirmei.


— Ficou falando. Eu ouvindo seu discurso buscando não polemizar. A excitação visível indicava-me atitudes coerentes com a situação, que não exaltasse mais seu ânimo. Estava tergiversando. Fugindo do envolvimento no mórbido evento. Temerosa de admitir participação de livre e espontânea vontade.


— Você ouviu na TV, disse ela, o refrão comemorativo da seleção brasileira tri-campeã mundial de futebol júnior ? O país inteiro comemorou com muita propriedade, berrando enquanto milhões de pessoas acenavam bandeirolas verde-amarelas: "Ô-Ô-Ô, o Brasil é um terror... Ô, Ô, Ô, o Brasil é um terror...”


A excitação chegou a um clímax vexaminoso. Afirmei que realmente as pessoas estão cada vez mais se condicionando, por ignorância no uso da linguagem, por analfabetismo, a falas e a comportamentos anti-sociais, mesmo quando estão supostamente reunidas em festividades. E que o futebol, como bem afirmou George Orwell, é a continuação da guerra por outros meios. É uma mímica festiva da guerra.


— Take it easy baby, continuei, o horror e o medo nunca vão parecer normais para ninguém. Nem mesmo para as forças que fazem deles uma estatística aterrorizadora.


— Não importa, querido, reagiu cínica, a coletividade é sempre mais forte do que a força pessoal de cada indivíduo. Essa sociedade tudo que faz é ensinar que viver é se submeter às leis que escravizam mentalmente os indivíduos.


Uma crueldade fanática e determinista em sua tonalidade de voz motivou minha resposta:


— Você está apenas defendendo a morbidez desse ritual social. A mediunidade doentia, sua e a de sua tia, estou certo ? Desista, essa coisa não tem defesa. A força do desprezo a essa atitude patenteou minha intensa indignação.


Passaram-se momentos sobre os quais pairou, como um Anjo do Senhor, o silêncio. A esotérica beatitude do silêncio. Paula começou a soluçar. Daí a pouco, a chorar um choro compulsivo.


Soluçando, falou, como se cochichasse um segredo confinado sob sete chaves. A ponta do "iceberg" do enigma emergiu como uma catarse de dentro de seu psiquismo, manifestou-se. Claro como um dia solar. Negro como as trevas saturnais:


— Acontece por vezes. Quando a menstruação é farta e o fluxo do sangue permanece por mais tempo.


Sua voz, uma revelação sentida, profunda, sincera, proveniente do fluxo doentio dos acontecimentos. "Não sei bem como acontece. A lua deve estar em quarto crescente."


Ela prossegue afirmando:


— Sucede comigo desde os treze. Sinto-me tiranizada por esses miseráveis agentes do terror. Alma e corpo se revoltam. A sensação de estar sendo usada por essa maldição...


... Não agüento mais. A tia diz que quem entra não pode sair. Não quero mais, que eles venham através de mim.


Após longa pausa pronunciou um convicto e sonoro "Não, nunca mais. Mesmo. Ajude-me a sair disso, amor". Como poderia ? Senti-me motivado a dizer alguma coisa que a fizesse reforçar a vontade de vencer a tendência para se abandonar a esses rituais primitivos.


— Sim, aconteça o que acontecer, não vou permitir que enfrente essa turba sozinha. Pronunciei estas palavras, mesmo sabendo o quanto lhe seria difícil superar as forças com que havia se envolvido. Provenientes do caráter cerimonial, funesto, praticado, nem tenho idéia de há quanto tempo, pelo matriarcado das "tias". Não teria talvez, as forças necessárias para vencer argumentos em contrário. Ela mesma havia afirmado que a força coletiva esmaga a vontade individual. E a escraviza.


Compreendo exatamente a extensão de seu apelo ? Está querendo dizer que as emanações de seu sangue menstrual estavam sendo usadas pela tia para atrair entidades astrais que abusam de pessoas menos conscientes, e as transformam em médiuns de um culto muito antigo, supostamente desaparecido ? A intenção de dominação era evidente.


— Que poderei fazer ? Ensiná-la a desaprender ? Lembrei-me de uma frase do escritor da moda Paulo Coelho: “Ensinar é mostrar que é possível. Aprender é tornar possível a si mesmo.”


Mencionei a Bíblia, o livro do cristianismo e do judaísmo. Escrituras sagradas de orientação moral e religiosa de uma nação de pessoas recém egressas do mesolítico, saídas do plistoceno, após as últimas glaciações.


As escrituras mencionam os sacrifícios de sangue de animais e pessoas, a exemplo de quando Abraão é compelido pelo Senhor a sacrificar o filho Isaac na rocha Moriá. Ainda que esse sacrifício não se consume.


Busquei argumentação pertinente no sentido de incentivá-la a acreditar que aqueles cultos e rituais eram comuns a todos os povos de antigamente, e aquele praticado pelas “tias” era uma reminiscência, uma repatriação dos rituais antigos que usavam o sangue para chamar entidades espirituais que hoje, numa visão mais atual, são concentrações de energia emocional (arquétipos).


Falei que nas culturas pré-colombianas, o sangue celebrava as entidades astrais. Vampiros reclamavam sangue, torturas e sofrimentos, animais e humanos, dos sacerdotes que os invocavam. O sangue, poderoso coagulador psíquico, servia para exaltar as emoções, os instintos e as paixões muitas vezes destrutivas.


Paula mencionou outras coisas, entre elas, um livro de circulação restrita no ambiente esotérico das "tias", ao qual teve acesso apenas ao nome:


"O Livro da Criança das Trevas


Do Jovem das Trevas


Do Adulto das Trevas


Do Idoso das Trevas"


O nome ficou gravado na mente devido ao inusitado da designação. Ela desabafou por longo tempo: lembranças traumatizantes, até então reprimidas, foram como que vomitadas. A situação dramática: tanto tempo vítima de extrema e violenta coação anímica, sentimentos de horror vieram à tona.


A verbalização da tragédia pessoal, o alívio pertinente à purgação de culpas... Comeu o fruto amargo por muito tempo. Verteu o ferimento de sangue. Expeliu as obscenidades que a haviam exaurido por toda uma vida.


O fanatismo gratuito do discurso anterior desapareceu. Parece ter sido anistiada das suas culpas pelo Anjo do Silêncio. Em nenhum momento, a partir dessa data, foi dominada pela emoção.


Disse que a tia estava se mudando do apartamento. Que jamais admitirá ser novamente usada pela mediunidade destrutiva das familiares. Afirmou que sua ginecologista vai dar um jeito no excesso do fluxo de seu plasma menstrual receitando-lhe certo complexo vitamínico.


— Fique comigo, amor, prometa que não vai me deixar sozinha. Nunca. Por favor. Aconteça o que acontecer não serei médium dessas forças outra vez. Jamais.


O namoro não terminou. Estamos de acordo em manter um certo distanciamento. Pediu a tia para levar as fotos dos ancestrais quando, em breve, se mudar do apartamento. O pentagrama formado pelas fotografias de seus ancestrais foi substituído por fotografias da filha na parede da sala.


Quem sabe, com ou sem minha presença, ela possa conduzir sua vida da forma que o poeta William Blake vaticinou: Conduz teu carro e teu arado sobre a ossada dos mortos.


A tia permanece em estreito conluio com o passado. Paula está a se libertar da rédea curta com que era manipulada pelas ancestrais. Paula vê o futuro a partir de uma esperança presente de renovação de vida. Falamos da importância de criar um discurso novo de recondicionamento. De buscar as palavras que motivem o exercício de aquisição de uma nova linguagem que possa vencer os condicionamentos do vocabulário e atitudes passadas. Afirmei a importância da cultura literária, da leitura literária dos clássicos antigos, medievais e modernos. Os conflitos das personagens nos indicam o caminho de observar nossos próprios conflitos. A ação dramática das personagens shekespeareanas mostra o quanto Hamlet era barroco muito antes do surgimento do Barroco enquanto escola literária, e outras.


Acredito em seu despertar. Aceita a verdade de que o horror jamais deve ser aceito como um fenômeno normal. E sim, como uma mórbida doença provisória, de uma sociedade que ainda não encontrou seu melhor caminho.











7 DE SETEMBRO: O DESFILE





Manhã cedinho o porteiro faz soar rapidamente a sineta do apartamento: o jornal está sobre o capacho. Henry abre a porta, pega os cadernos. Olhar sobre o desfocado, lê na manchete da 1ª página da Folha: FHC favoreceu um dos grupos no leilão da Telebrás. Está nu no frio matinal. Daqui a pouco o banho vai ajudá-lo a despertar.


Apressa-se em pegar o jornal antes que algum esperto vizinho lance mão. Não seria a primeira vez. Fecha a porta, os óculos sobre a mesa, posiciona as lentes e mete a mão no bolso. Está nu, nu com a mão no bolso. Vê se pode, o presidente sociólogo dando o exemplo para o resto do país.


Numa manchete menor, novo laudo da Unicamp sobre os assassinatos de PC Farias e da namorada Suzana Marcolino. No texto, a instituição rejeita o laudo anterior, da própria universidade, feito por Fortunato Bandalhares, neologismo para bandalheira com aética do levar vantagem. A comprovação da altura de Suzana: 1,57; não 1,67.


Henry havia tirado a mão do bolso inexistente para sentar-se na poltrona. Aconchega-se, ainda não desperto o suficiente, faz gesto de quem vai nele meter a mão outra vez. Gostaria de estar vestido, sair numa volta, instigado, a adrenalina dos problemas sociais inquieta. Abre o jornal na página dois. O autor do primeiro editorial reafirma não ignorar a gravidade de levar a público o teor das gravações que ampliam a já muito ampla zona cinzenta do governo FHC.


A crônica de Clóvis Rossi mostra que o cassino globalizado do capital está sempre a fazer rodar a gira do infortúnio para os países ditos emergentes. O apetite dos megaespeculadores nunca está satisfeito. Na roleta russa da macroeconomia planetária, nenhum economista, com ou sem bola de cristal, arrisca dizer qual país vai ser a bola da vez.


Outra vez Henry ameaça meter a mão no bolso, está nu. Sem bolso para apoiar a hesitação e a perplexidade. Sim, que merda de globalização, modelo câmbiocanibal, dolarização globalizada, o escambau. O sistema macroeconômico, jogatina de megamilionários, certamente não pensa em caras como ele, nus, com frio, o estômago roncando, apelando para o café da manhã, expectativa de desemprego, o mercado em baixa, a despertar de madrugada para mais um dia de trabalho, como se fosse mero operário do salário mínimo.


Travez, querendo apoiar-se nesse costume, nessa agitação motora maníaco-depressiva, de meter a mão no bolso, mesmo estando nu. Nu com a mão no bolso, onde já se viu? Logo abaixo, o cronista Carlos Eduardo Lins e Silva, a substituir Eliane Cantanhêde ou Fernando Rodrigues, não sabe ao certo, fala da ridícula falsidade do debate entre economistas monetaristas e desenvolvimentistas, depois da canalização do BC, tipo “Festa de Babete”, de bilhões de reais do dinheiro dos impostos pagos pelos eleitores, para socorrer os pobrezinhos dos banqueiros, no escândalo financeiro do dia: Marka-FonteCindam.


Enquanto isso, os investimentos na saúde, na educação, em habitação, segurança, transporte e emprego, mais que estagnaram, regrediram. O desemprego e a insegurança grassam como uma peste negra fimdeséculo, sem vacina à vista, nas megalópoles proletarizadas de “uma sociedade escandalosamente iníqua”, palavras do cronista.


Não adianta mesmo, por mais que ele esqueça estar sem calça, sente-se, minuto a minuto, mais e mais nu, tentando em vão meter a mão no bolso inexistente. Mais embaixo, Carlos Heitor Cony satiriza a farra dos ministros turistas que usam e abusam de aeronaves da FAB para curtirem mordomias na ilha de Caras do governo em que se transformou Fernando de Noronha.


Ariano Suassuna, por sua vez, repete Machado de Assis ao afirmar: “O Brasil oficial é americanizante, caricato e burlesco”. Garante que os EUA estão longe de ser o “país digno” que o então ex-ministro Ciro Gomes insinuava que seria, ao dizer, em dezembro de 1994, quando de mudança para Harvard com a mulher e os filhos: “Preciso morar num país digno”.


Suassuna lembra que Paulo Nogueira Batista Jr. no livro Contrastes e Confrontos, em 1907, mostrava a denúncia de Euclides da Cunha ao escrever sobre o cosmopolitismo das elites brasileiras: a atitude imitativa e servil, caracterizava e caracteriza, uma espécie de regime colonial do espírito. Tal atitude servil e imitativa evidencia, transforma os filhos do país em emigrados virtuais, a viver a esterilidade de um ambiente fictício numa civilização de empréstimo.


Henry sente-se ainda mais nu, como se fosse possível. Só agora atinou para o fato: até seu nome é made in USA, até a nudez importada. Mesmo a calça, se estivesse usando uma, teria uma etiqueta de outro país, oriental talvez, made in Hong-Kong do bairro da Liberdade. Sentiu-se mais que nunca, como nunca, nu. Mão no bolso. Droga de mania. Esse transtorno de querer enfiar a mão no bolso estando nu, pode ser devido a essa excitação mórbida, causa da exaltação eufórica do humor. Maldita febrilidade.


Talvez todos esses pensamentos tenham-se aglutinado de uma vez, a provocar certa revolta contra a boçalização da juventude, como se essa imbecilização deliberada de uma geração, pelos poderes constituídos, gozasse de todos os privilégios institucionais para se expandir, transformando a classe, dita média, numa vasta Senzala cultural de comercialização da pornografia, da ultraviolência via tv, da jogatina da Caixca Econômica Federal e do consumo de entorpecentes:


A disseminação da cultura da baixaria, numa nação-Senzala submissa à política, à natureza incondicional, bestial, da tirania do mercado. Refletiu sobre a raridade de um gesto, um afeto familiar. Cisma: "Se prosseguir lendo esse jornal, daqui a pouco, quando estiver vestido, a sensação de que estou pelado poderá ser substituída pela realidade de que sou invisível." Sem nem sequer um nome que indique minha pátria e nacionalidade.


Talvez seja essa despersonalização ampla, geral e irrestrita, a melhor definição para globalização. No banheiro liga o chuveiro na água quente, que merda, não consegue ajustar a torneira de modo a fazer coincidir a quantidade de água mínima que faça funcionar a contento essa coisa. Água fria ou escaldante, maldito inferno de Dante. Desse jeito a careca vai sair cozida de debaixo do chuveiro. Não é fácil inaugurar esse novo prato: massa cinzenta ao vapor matinal.


Sai do banho com a pele avermelhada, depois de uma sauna involuntária à finlandesa. Pô, resmunga entre incômodo e conformado, após dois ou três espirros, o último dos quais uma expiração violenta e estrepitosa: Preciso me attchin, vacinar, ATCHIN, contra pneumonia. Frente ao espelho, HARRETCHIN, remove a prótese, torce do tubo o último esguicho ralo da pasta (a hepatite faz com que use uma só pra ele), começa a malhar a escova para os lados da gengiva.


Sente-se rejeitado: até o ônus do tubo de pasta tem de lembrar substituir. A mulher, meio “juruna”, apesar do antedepressivo. Aqui e ali a escova pega um e outro dente solitário. No quarto veste a camisa social com a gravata adquirida nas lojas Pelicano, onde o pessoal da igreja faz compras de roupas e costuma fantasiar-se de pastor.


Pronto para mais um dia de combate, pulveriza, apressado, talco Vinólia, gestos bruscos, no odor fétido das bocas abertas dos sapatos, transformadas em dormidas chaminés de chulé. A barba e as unhas por fazer. Precisa espantar com mais fé, a modorra. Sai pra lá preguiça, Xô Satanás. Passa a margarina no pão adormecido, corta em fatias o outro. O café reaviva a fé, as idéias diante do prato de torradas recém assadas.


Pensa, por brevíssimo momento, se o todo poderoso não está fazendo pouco diante de tanta injustiça social. Quem fez esse presidente mudar de atitude e idéias tão radicalmente? O poder, sim. O pessoal do poder econômico quer mostrar que não adianta o cara ser PhD, sociólogo, ter escrito livros sobre a infame dominação cultural, ter ganho diplomas das velhas e corroídas instituições universitárias européias, à “honoris causa”.


Uma vez trabalhando para elas, "elites" entre aspas, sempre vassalo delas, das poucas famílias e instituições que concentram e controlam o usufruto das mordomias da corrupção política, que na virada do século vai comemorar meio milênio neste país. FHC, vulgo "rei Mulatinho", vai ter de prosseguir bancando a tiazinha dos banqueiros do FMI.


Não gosta de pensar nem de falar em política, mas as vezes ela está tão próxima como a manteiga no pão: torna-se inevitável não associá-la ao dia a dia. É a lei, “dura lex”. Para as elites econômicas é fácil gerenciar a vontade dos atos e fatos executivos desse sociólogo a serviço da política do integralismo que se presumia extinto das “elites” nacionais desde 1937.


Com uma vaidade mais ampla que os descampados do Planalto Central o “rei Mulatinho” desgovernou à vontade, sempre com aquele sorriso de tubarão alegre para a imprensa. Uma grife provisória da política, mas que quer voltar a governar o país sob a chancela da opulência de recursos da “Opus-Dei”.


A soberba presunção e frivolidade do presidente e “rei Mulatinho”, eram cordões fáceis para manejá-lo, espécie de títere da hora das manifestações de apreço da pomposidade anacrônica das velharias sinistras que o Simbolismo de Poe criticava em seus contos no segundo quartel do século XIX.


E lá estava ele recebendo seus diplomas de doutor “honoris-causa” das assombradas instituições universitárias e de seus fantasmas que, pessoalmente lhes entregavam os manuscritos honoríficos, com a afetação dos mestres de cerimônia que, orgulhosamente, ainda denominam canudos de papel de palimpsestos.


Henry pensa nas dificuldades homéricas que tem tido para manter um nível mínimo na educação dos filhos. A nova geração banha e se veste com a roupa de raios catódicos, eletromagnetismo do inconsciente tvvisivo. Que posso fazer para impedir que meus filhos se empapucem de trivialidades da cultura xuxalizada da globalização?


A família mergulha diariamente na tempestade de luxúria, drogas e ultraviolência dos programas e comerciais da telinha da sala de jantar e da Internet. Que fazer ? Quem é responsável por essa decomposição física e mental, pessoal e coletiva? As emissoras de tv não são concessões do Estado? Não têm de ter, obrigatória e constitucionalmente, um mínimo de qualidade em suas programações?


Na década de setenta sentia-se repugnante ao saber-se uma pessoa da sala de jantar. E hoje? Ainda não se conformou em ser uma pessoa da sala de jantar. Outra pessoa da sala de jantar. Mas as pessoas da sala de jantar. São as pessoas da sala de jantar. É dose saber que os responsáveis pela ordem são os primeiros a criar as condições para a desordem permanente da sociedade, que os ignocratas do BC estão a doar bilhões de reais do dinheiro público, aos coitadinhos, sem eira nem beira, dos banqueiros. Prioridade máxima do "rei Mulatinho".


Henry aos poucos substitui as ondas hertzianas da realidade globalizada por um otimismo fabricado e repetido baixinho, autoconfessional, de si para consigo: “A vida vai... (como se fosse uma oração diária, mais que necessária): ... Melhorar”. Desce no elevador, parceiro dessas mesmas caras de “de manhã”, com bocas de “bom dia”.


— Bom dia.


No sinal vermelho, ainda tão cedo, sente-se ameaçado com a aproximação de uma criança que estende as mãos com oferta de drops de hortelã. “Compra, tio, dois, um real”. Dá graças ao bom Deus o sinal abrir. Acelera. Justifica a paranóia: o pivete poderia estar a esconder uma arma. Antes de começar o expediente vai mostrar um imóvel para um cliente da corretora. É o jeitinho brasileirinho de tentar manter a geladeira com comestíveis.


Os filhos estão em fase de crescimento. As prestações do carro e as contas a pagar aumentaram. Tudo aumentou com a valorização do dólar, como se todos os preços estivessem atrelados à moeda do tio Sam. Está melhor agora, com essa sensação de que as ruas da sociedade capitalista foram asfaltadas para ele. Quando divaga sente-se menos nu com a mão no bolso.


Gostaria de trafegar horas sem parar, só olhando o movimento diverso da metrópole. Talvez estivesse vivendo um processo de regressão às sensações vivenciadas na década de 70, quando costumava circular sem rumo certo nas ruas, alamedas, praças e avenidas da metrópole. A mente traz à tona o “rock progressivo” das bandas influenciadas pelos seriados de ficção científica, com cenas de inspiração fantástica.


Children of the future, Steve Miller Band, From the Mars Hotel, Dark Star, Anthem Of The Sun, Future Games e Aoxomoxoa do Grateful Dead. Frank Zappa, Yes; The Doors (Unknown Soldier, Absolutely Live); Mothers of Invention, Pink Floyd, The Dark Side of the Moon e The Wall.


Aqui está novamente, fugindo para aquelas inesquecíveis sensações juvenis, sem saudosismo, como se estivesse em plena viagem dos Stones a 2000 Light Years From Home. Há 2000 Anos-Luz da Sala de Jantar, das pessoas da sala de jantar. Tão longe, tão dentro dela. Tão distante de si, ao mesmo tempo tão ele mesmo. Essa realidade insolente da sala de jantar, onde freqüentemente sente-se nu com a mão no bolso.


A sensação de ser pai de família e ao mesmo tempo parte de uma coletividade juvenil uterina, utópica, longínqua. Acha-se um privilegiado por saber e poder se despir dessa camisa-de-força da realidade juvenil e adulta dos dias de hoje, onde tudo e todas as coisas não passam de extensões globalizadas do todo poderoso mercado. Ele é vário e um ao mesmo tempo. Sem crise. A neurose do gesto de levar a mão ao bolso, mesmo estando nu, justifica-se por outros motivos. Não por gostar do som “new wave” do Voivod, Dream Theater, Shadow Gallery, Nektar, Tangerine Dream, Ozric Tentacles.


Os sentidos parapsicológicos despertam esses sons. Eles não se conflitam com a ingenuidade gospel dos evangélicos e canções tipo Vencendo Vem Jesus. O bicho pega é a partir desse medo subliminar da mulher perder o emprego, dele desempregado crucificado na cruz negra do mercado: é essa coisa de sentir-se um imbecil coletivo nas mãos das mutretas desses frankensteins da política.


Estar sendo roubado pelas instituições que deveriam incentivar e proteger a família, garantir o mercado de trabalho. Fazê-lo sentir-se seguro quando nas ruas, acreditar que nas escolas e no lar, os filhos não estarão sendo chamados aos vícios, por influência da pior de todas as drogas: a tvvisão da sala de jantar, onipresente nas mentes mesmo quando longe da sala de jantar. Mas as pessoas da sala de jantar. . .


Os bens materiais coletivos de cidadão eleitor: vê-los seqüestrados oficialmente em decorrência da ação desses respeitáveis assaltantes dos ativos financeiros da população, para suas contas numeradas nos paraísos fiscais. É a insegurança social aumentando com a marginalidade promovida por esses bundões do colarinho branco. Barões doutorados em levar vantagem, diplomados em Harvard e academias quejandas.


A filosofia muito cara de grandes nomes de universidades com cultura de quitanda. A USP, por exemplo, tão decantada como exemplo de universidade, está, em pesquisa atual, no 185° lugar entre as instituições de ensino superior das Américas. A aldeia global transformada nos continentes globalizados das chuteiras. A galera dorme nas arquibancadas na expectativa do artilheiro do time marcar um gol. Por isso faz muita zorra para encobrir a cultura popular de quem é sistematicamente assaltada pela diplomacia “pra lamentar” dos discursos de palanque interessados em tornar particular as verbas públicas. Acha que repetir isso é um modo de fazer-se ouvir no Planalto Central da Corrupção. Fazer-se ouvir por telepatia.


Saber que em cada cinco pessoas, uma está desempregada em decorrência da incompetência social dessa política. Que torcedor não votou nos cinco dedos abertos em campanha pelo “rei Mulatinho”, que fazia a propaganda subliminar da ideologia de Margareth Thatcher e do presidente Reagan? A ideologia do Estado mínimo, uma maneira do "rei Mulatinho" incorporar mais uma teoria canibal do 1° Mundo. Vaidoso, ele vai sentir-se mais próximo dos poderosos, um tubarão à "black-tie" em meio a seus amigos do peito, os banqueiros do "Reich dos Mil Anos".


“Tudo pelo social”, a mão direita aberta em promessas de palanque. Ele agora é candidato, fazedor de campanha do representante político da “Opus Dei”. As oligarquias mais antigas reunidas para promover o atraso social de um país culturalmente na idade da pedra. Ao ser re-eleito revelou-se o presidente de uma quadrilha de bucaneiros PhDs. O “estadista de Ibiúna” não passava de um reles falso brilhante. Seu brilho de bomba atômica social penhorou a economia das pequenas e médias empresas, das estatais, da agricultura, da saúde, da educação, do transporte. E entregou de mão beijada, por preços módicos, toda a infra-estrutura industrial do país construída com o trabalho e os sacrifícios de sangue de várias gerações de brasileiras e brasileiros.


Ele dizia ter acabado com a inflação, mas a inflação da insegurança e do medo está, mais do que nunca, disseminada em todos os lugares, não apenas nos semáforos. Não apenas no em sua política de apagão das empresas nacionais entregues quase que gratuitamente aos barões do capital financeiro internacional. Pensar em política dá nisso: A incômoda mania de levar a mão ao bolso, mesmo estando nu.


Este é um país de nudistas: de adeptos da nudez com a mão no bolso vazio. O mercado de procura de imóveis em baixa. A poupança zerou mês passado. Que pode fazer? Não pode parar. Por isso o mundo é redondo: pra não acumular poeira nos cantos. As notícias do jornal continuam fazendo sangrar: FHC congelou o salário de funcionário público federal há cinco anos.


O Alvorada era, nos tempos do “rei Mulatinho”, o Palácio do Bananal fisiológico de cargos, verbas, improbidade. Ao invés de um presidente líder, um prisioneiro vegetativo de uma biografia que, para lhe fazer justiça, deverá ser escrita em papel higiênico. As solicitações de uma vida com influências tão diversas. Vai ter de conciliar-se consigo mesmo, com os paradoxos de ser também o outro: a juventude, a idade adulta, o idoso que será, se um dia for, apenas cronologicamente.


O melhor das vivências, das emoções, do ontem, do hoje e do amanhã. “Este sou eu”: aceita estar nu com a mão no bolso. A percepção privilegiada dos sentidos, nenhuma política poderá roubar. Sua verdade, as verdades que a viagem ao centro da “Terra do Id”, à consciência, sua história pessoal... Nenhum calhorda PhD tem poderes para envelhecer percepções e idéias.


Tudo indica que o salário vai continuar congelado até o próximo milênio. Ele não. O pulso, nu com a mão no bolso, ainda pulsa. E acredita nos versos da mpb do Martinho da Vila, ou será Paulinho da Viola? De que a vida vai melhorar, a vida vai melhorar. A vida vai melhorar, a vida vai melhorar... Apesar de gente como ele, amanhã há de ser outro dia. Hoje, é apenas sete de setembro.








JOVEM GUARDA





Sou um cara ansioso. Pegar na mãozinha, bater papinho, conversar sobre o sexo dos anjos, nunca foi meu forte. Namorada para se dá bem, permita-se levar pela vontade de ir longe no primeiro impulso. Ela quer, eu quero, sem eufemismos. Quando começa a rolar um papo tipo:


— Hoje não dá.


— Não é o momento certo.


— Na próxima semana.


— O sinal está vermelho.


— O mundo não vai acabar hoje.


Sei, sem crise, não vai rolar. Os sensores libidinais atentos, mas os sentidos do bem-bom se aplacam. Do tesão progressivo para a suspensão do interesse, um passo. Falo em “off”, conforme a fêmea em pauta: Bom, estou te vendo na fissura, você não vai querer admitir. Fica tirando uma de que não está carente. De que passou por essa fase de transar na primeira de copas. Que está madura o suficiente para valorizar mais e melhor a emoção de um fuque-fuque.


— Transar, só se for num lance de maior compromisso.


Acontece vezes sem conta nos mais diversos contextos. Puta velha no lance, fico sabendo pelo cheiro, através do roçar dos pelos os dedos sentem a pele dos braços, da perna, das coxas. Da nuca, as mãos circulam no tecido das roupas. Elas não vestem nadinha: tudo vibração, interatividade. Energias afirmando meu lado feminino, ela, fortalecendo o masculino. O Tao no caos: encenando, refletindo. Ela, casada. Mulher de amigo meu pra mim é homem. Não adianta o sinal estar vermelho se o instinto está blue.


Pelo olhar, pelos gestos, sabe-se ao certo a seqüência do que vai rolar. Aos poucos, aqui e ali um carinho mais afoito, motivações. Muitas vezes dá para mudar a direção, tirar do “freezer” a pedra de gelo do coração. Nossa senhora me dê a mão. Ela fica querendo. Tudo muda na seqüência, os pingos vermelhos na seda do absorvente, ficando mais raros. Aos poucos se aquece o fogo. Por vezes dá pra sentir a frieza aquecendo no contato. A intenção pétrea, morna, esquentando. Cuida do meu coração.


Hoje, quer um cara apenas para levar uns lero-leros, tanger a incômoda companhia da solidão. Desquitada, faz voltar a rotina das fluidas linhas de pensamento com as quais está habituada a acender a chama do ritmo das ilusões.


Deseja, talvez, apenas matar a saudade de outro namorado, de uma amizade que partiu. Trazer de volta, nem que seja por instantes, sentimentos longínquos, ante que se dispersem, diluam-se, de todo, na memória.


O luar na estrada solar. Lindo. Baixo o olhar outra vez. Ela está a reviver sensações entre dois ou três chopinhos. A lembrar de carícias que um dia a fizeram sonhar, entre uns e outros copos de vinho.


Tudo bem, garota. Você quem sabe. Dialogo comigo como se fosse com ela. De qualquer forma, por telepatia, sei qual a dela. Osmótica, o solvente de seus sais passa através do suor, da saliva da língua. Ela sabe segredos de liquidificador, adivinha. A química dos lêvedos a atuar. Agora, está mais na minha.


Mesmo que se desdobre em muitas, jamais vai acreditar, se quiser ficar a prevalecer na argumentação, que a mágica que ela imagina estar em curso, terá talvez perdido a razão de ser. Melhor mantê-la acreditando que não sei, de todo, qualé a dela. Que ela não está longe estando aqui, fazendo uso e abuso de minha proximidade e companhia. Essa coisa mútua.


Dionysios presente. Desde o muito antigo estar naqueles dias, não vai rolar nada, calma Bete, calma, não tô afins, nem vem que não tem, amarrei um bode, você só pensa nisso; até o moderninho: sem camisinha não, ou “sinto falta de um envolvimento maior”. Você está aqui, querida, o que vier venha naturalmente. Cada garota tem um transe diverso. A menina quase sempre prevalece fantasiada de mulher experiente, femme fatale: fome fatal.


Normalmente dou força para que ela solte o transe. Está beleza essa fantasia, esse carnaval de sensações te faz bem? Voilá! Voe, curta, afirme-se. Por mais pesada seja, és uma tênue ave numa pintura verde impressionista, uma personagem transparente de Renoir em caminho ascendente pelas altas formas arredondadas do amarelo. Minha linda dançarina de Can-Can. Não for rumo ao motel, vais voar pra seu quarto, isolar-se na areia úmida da solitude.


A impressão do olhar no retrato de uma jovem, pintada por Degas. Tonalidades subliminares na tecida gema de ovo, cor de ouro, topázio. Por mais que tentes ocultar esse rosto sob o véu de Maya irreal dos cosmésticos, tua cor rosa choque tão mais nua, na aparência exposta da essência indissimulável.


— Que te oprime ? Quem te aflige ? O veneno natural da rotina, o transe diário do mundo ? Xoxota é sempre bem vinda, com ou sem tpm. A gente sabe fazer de conta que se ama. Nosso compromisso, tesão da libido. Funciona? Infinito enquanto não paga mico.


Fêmea! Passaporte para as mais variegadas terras anímicas. Paradoxo: as rufas e as rugas com o sexo oposto são mais numerosas do que poderia imaginar. Lembro uma prima, toda fácil, aparentemente. Chegava-se oferecida, na horinha do dedinho, chega pra lá, onde já se viu, sai. Apresentado. Vou dizer pra tia... Queria uma besta para amarrar cabresto.


Algum tempo mais tarde, a mesma coisa. Mocinha, vinha com tudo o que tinha direito, enamorada. O chega mais dos aconchegos terminava num chega pra lá. A noção de sexo pecado, mesmo sendo cansativamente passada por uma mãe pseudobeata e um pai farsante, moral e fisicamente impotente, nunca me fazia a cabeça.


As priminhas mais novas sim, que maturidade.


Tão fácil vê o que as gurias-família queriam no início da década de setenta. Como se expunham excessivamente em cada gesto, olhar, falar. Que poderiam querer, senão o compromisso do passarinho dentro da gaiola das xoxotinhas, loucas para laçar o marmanjo que nelas apostasse canalizar todas as carências do se dar bem? Dar-se bem para elas era casar. No fundo, no fundo, com feminismo e tudo, acho que a coisa não mudou hoje, limiar do Terceiro Milênio.


Imaginava que aquelas garotas passavam a noite e as madrugadas piscando, piscando, como estrelinhas distantes, as mãos no firmamento das calcinhas, a ponta dos dedinhos na fresta entre as coxas entreabertas, deitadas nas redes, nas camas, embaixo dos lençóis. As coxinhas cruzadas, as perninhas no balanço vão e voltam.


Mendigavam sob as pálpebras que se abriam e fechavam nos momentos solitários, “namoro sério”, um marido pelo amor de Cristo. Aprendiam desde muito cedo o medo mórbido, avassalador, das tiazinhas de saias longas que acabaram ficando, Deus do céu, Jesus Salvador, pra titias.


O sexo necessidade, medo, horror da desproteção. A sedução da virgindade enquanto arma, arapuca, prisão, panacéia para atrair e pegar passarinhos, pintainhos, canarinhos, eles também horrorizados com o fantasma da solidão.


A coisa do sexo surgiu enquanto guri. Não sei se precoce, 8, 9 anos. Chegava-me à rede da doméstica, de madruga. A primeira vez foi surpresa e susto. O piu-piu pequeno durinho querendo encorpar. O corpo magro entre as coxas da vasta terra arável. Eu, com meu tratorzinho de brinquedo. Ela cedia, abria os joelhos, como quem não quer, querendo. Os olhos como quem dormia, fazendo-se distante do que acontecia. Pouco mais que um dedinho, desfazia-me na porta da cave graúda.


A coisa toda durava uns dez minutos. Depois o tempo de convívio aumentando, a vocação pra rapidinho indo embora, mesmo com o medo de ser pego em flagrante. Os pingos como que de conta-gotas, quase não saíam. Uma coisinha de nada. Ela dava dois, três fungados para os lados como quem diz: é só isso, coisinha?


Euzinho saltava para fora da rede sorrateiramente, os ouvidos assuntando os passos da censura materna. Se um dos dois soldados, pseudo defensores dos dez mandamentos, me pegassem, mama ou papa, me fariam dormir com o couro quente.


Após as incursões do pirulito madrugador, sentia-me, primeiramente, corajoso e heróico: havia chegado tão próximo do lótus proibido, a ponto de nela fazer uma cosquinha. Sonhava um dia conseguir abrigar na abertura colossal daquela Madalena, algo mais substancial que esse pepino irrisório. Num segundo momento contemplava mais realistamente a aventura noturna.


De manhã, no banho, olhava o brinquedo irrelevante a fazer xixi. Lembrava da planta deliciosamente carnívora, aberta na chegança de ontem a noite. A sensação de que euzinho, todinho, dos pés à cabeça, poderia nela ter adentrado. Estaria com saudade do ambiente uterino materno ? Sai fora Édipo.


A imaginação a funcionar: como é que a coisa toda poderia ser tão desproporcional? O vinco peludo daquele tamanho, euzim, olhava, pegava, visualizava a enorme diferença, a matutar: como é que ela arranjou adega daquele tamanhão ? Parece personagem do circo felliniano. Quanto mais pensava como tinha ela aberto aquele túnel, mais me decepcionava com as comparações.


Matutava o acabrunhamento da diferença. Uma enorme ansiedade por crescer. Desejava poder ter uma coisa que pudesse satisfazer aquela mulher do venhacá, não apenas ficar na satisfação menor do desejo. Como usufruir as maravilhas que por certo guardava a urna subterrânea, sem melhormente ficar dela íntimo, devido a diferença desproporcional: areia demais pra meu caminhãozinho. Euzinho guri, ela uma fêmea adulta. Ser homem, isso sim é incrível: portador de um membro que pudesse penetrar esse talho e fazer uma mulher desse tamanho gemer de prazer. Que incríveis sensações ímpares viriam daí.


Então é isso, estou certo: não há coisa melhor no mundo que ser adulto, ter mulher. Quando acontecesse crescer, a realidade da sensação humilhante do conta-gotas, das titiquinhas de pingos mínimos, agüinha rasa, cola na ponta dos dedos, substituída pelo legítimo nhéconhéco.


Dia seguinte imaginava-me com um pinto que fizesse frente àquele colosso de frincha, entrarsair mil vezes: gozar, gozar de verdade. Fazer tremer a mulher daquele quilate de traço. Passou a ser obsessão. Um homem deve ter entrepernas alguma coisa mais substancial. Olhava com visível desprezo a coisinha com a qual urinava, sempre pra cima, pra valorizar o facho. As meninas não conseguem fazer deste jeito, o mijo delas sempre pra baixo, nunca desafia a gravidade.


A fase da masturbação sugerindo euzinho a caminho de euzão. Não outro o objetivo: ter um membro que justifique o gozo e a penetração numa mulher como a Constança, era este o nome do Grand Canyon. Os sonhos infantis povoados de tesão. Não de pecado. Para mim, pecar era não poder satisfazer a gruta telúrica daquela dimensão. Pecado e vergonha. Não poderia ser homem enquanto não conseguisse o palmo ou palmo e meio para fazer frente ao desafio. Começo a desfiar o fiozinho, e nada de querer crescer no ritmo da imaginação.


Fico a cismar: que tipo de filho da mãe abriu os caminhos para dilatar aquela coisa. Restava-me a pesquisa nas brincadeirinhas de médico, examinar as menininhas, longe da vigilância paranóica de paizão e mama repressão. Por vezes não era fácil fazer a menininha baixar um pouco a calcinha para o doutor espiar o tamanho do talho.


— Cinco bolinhas de gude e cinco figurinhas do álbum 20.000 léguas submarinas.


— É pouco.


— Pouco nada. Essas cinco aqui, oh, pode pegar, são muito difíceis de conseguir, valem ouro, você pode trocar por dez estampas, até mais.


— E se a mãe vê? Não, não. Vou apanhar, ficar de castigo, ajoelhar no milho. Quero não.


— Mas é só uma olhadinha rápida, um segundo, prometo, nem um minuto. Assim não dá, não brinco mais nunca com você, juro. Você quer tudo que eu tenho em troca de uma espiadinha rápida. Não vou pegar, juro, pode acreditar, só vou ver. Se quiser, oh, toma mais esse pato Donald. Anda logo antes que ela venha.


— Então me dá logo. Jura que é depressa?


— Juro por Deus.


Ao levantar da cama, ansiosamente baixava o olhar para ver se o diabinho tinha crescido um pouco mais de ontem pra hoje. Nada. Consolava-me provisoriamente com a idéia de que criança é criança, não pode ter um pindurucalho que fizesse frente ao Constanção. Fico mais sociável. Nos lero-leros com a turma da esquina, o problema ganhou a atenção geral.


— A coisa só cresce se você treinar, cara.


— Se não usar vai atrofiar.


— Doméstica do interior é tudo afolozada.


— Isso aí, já passou pela mão de mil vagabundos.


— Nazaré lá de casa é novinha, parece virgem.


— Vai nessa não, é só de cara, irmão.


Aquela frase de que se não usar vai atrofiar, perturbou. Invento uma história de dever de casa, corro para o dicionário. Atrofiar: causar atrofia, não deixar desenvolver, debilitar, tolher, acanhar. Essa coisinha vai atrofiar não. E vamos que vamos com os exercícios de mão. Quanto mais avaliava, mais o resultado parecia pouco. Comecei a ficar deprimido. Então lembrei quão fechada era a pituquinha da Ritinha. Uma menina. Ah, graças a Deus, eu não era atrofiado, era apenas um menino. O pinto pequeno, assim, normal.


Freqüentei a rede de Constança até que ela foi embora, talvez não sem antes dedurar a migração pra dentro da rede dela. Depois, nunca houve doméstica igual. Daí em diante, mama marcou em cima. Acordava altas horas para me flagrar na façanha no quarto da empregada, bater, dá lição de moral. O puteiro foi a salvação da lavoura. Algum tempo depois, numa hora de xixi, senti orgulhoso a iscazinha ganhar ares de minhocão. Aumentando, mano, aumentando, ufa, já não era sem tempo. Mas ainda estava longe, anos-luz, de satisfazer o desafio da primeira paixão.


Rapazinho, começo a namorar uma garota da zona. Estudante, sem emprego, Durango Kid, saído do estilo de não ter namorada. Eu não tinha de pagar as trepadas. Às vezes chegava no pedaço e a Lindalva no fuzuê. Tinha de esperar pela satisfação das vontades do freguês.


Ficava imaginando: que estará o fulano aprontando com a Linda? Ela aceitando os aconchegos, eu de castigo na mesa, biritando, quando em vez a coçar o desassossego. Ela vinha e dizia que só gozava comigo. Faço que acredito, talvez apostasse que eu era meio bobo. Tudo bem. Vida de corno não é fácil, “brother”. Maldita hora em que decidi namorar.











CORRIDA DE BICICLETA





Aqui estou entre as suaves sombras da vegetação. As folhas e flores como se também em movimento, apostam corrida lado a lado. Lá o bangalô da Luciana, mais adiante o sítio da Dalma. Há dois quilômetros estou a pedalar nesta alameda de Pinheiros, chão poroso de floresta, crepúsculo sem pássaros ou insetos.


Mais mil metros e pego o atalho, volto para casa. Tempo, tempo, agora sei melhor essa coisa da 4ª dimensão. Manifestas oscilações dos poros, suprema beatitude, quando não, as sensações triviais da normalidade ou as menos ocasionais da danação. Querer que o passar não passe e passa. A suavidade das asas nuas flana fluente no módulo compasso. Acompanha esse coçar e trair com que se abrem e retraem joelhos quase trêmulos de graça.


Querer parar este instante para nele abrigar-me de tudo o mais da matéria mais densa de que é feita a fugacidade. Fazer parte dessa transparência lunar. A tranqüilidade da paisagem passando através da tênue imaterialidade dos pensamentos. A pomba-gira Terra girando comigo, filho da mãe privilegiado pela paisagem, a vestir roupas tecidas com fios de nuvens. Minha calça de poeira, não conheço mais ninguém com roupas desse tecido.


Os cabelos longos, a barba por fazer. Metáforas de teias, submarino amarelo navega em direção à calcinha verde-rosa da bendita vadia ao lado. Um pedaço do céu desenha-se na pracinha à beira-mar, o muro baixinho caiado de branco e blue. Nenhuma cor distoa de toda esta natureza lentamente branda, grave muitas vezes, ainda agora tão suave molto-presto.


Pedalo, dédalo, essa profusão de sensações orgíacas, harmônicamente dissonantes. Desejo incluir-me para sempre nesta paisagem. O pé sobe e desce dos pedais, ritmo de sinfonia mozarteana, pleno andamento allegro vivace. Tempero os músculos das coxas em sol menor. Ao lado, o Adagio Albinoni aquece a batata das pernas dessa fada.


Vontade de malhar o cravo nos poros porosos de seus pêlos, pele tecida de seda. Destruição de lenços de seda pela tempestade de pó, como diria Kerouac. A sensação de estar livre das trapaças, manhas, mentiras e dissimulações dos que supostamente se dizem realizados a partir da via crucial do salário. Apenas estou passageiro da dimensão poética dessa sensibilidade extra-sensorial.


Um profeta ambulante da raça, quem acreditaria nisso em sendo passageiro da normalidade? Andante cantabile, estrada polifônica. Melopéia. A selva eriça-se no impulso instintivo, supostamente amável. Minha vadia segura a batuta adolescente em dó maior, KV-457. Não querida, não é nenhuma rodovia. Sim, isso mesmo, aquela sonata em dó menor, aberta em meio à estrada dessa carne de acnes.


O cravo a penetrar menos lento. A batuta destra, inefável, delícia com que sopras a flauta de Pã. O opus dessa sonoridade a pulsar através dos grandes lábios chuviscados, planta carnívora, oráculo, ora da refeição. Já agora se abrem supostamente incontidos, minueto andante, multimídia de recursos, a ferramenta sensual roça persuasiva a infinita orquestra celular. A vernácula emite expressão aglutinante, em ritmo mais lento agora. Ainda não é hora de transtornar-se em uivo. Temos todo tempo do mundo. Não vês? Assunta esse sair/entrar, fidelidade antropofágica, movimentos em seqüência polifônica. Esse roçar de pêlos neste selim intencional. Ah, componho, com ponho entrepentelhos. O pomo de Adão eriça-se nesse quadro arqueado do corpo, o músculo salta da boca, passeia serpenteando o rosto, penetra ouvidos, narinas, traz um pedaço abençoado de meleca a grudar-se na ponta da língua.


O raio da roda do tempo orquestra romanescas novilíneas: night, night, night. Bendita obsessão paradisíaca, a entrar e a sair, pudesse nunca cessar ir e vir, neste vinco, a fosfórea fosforescência do obelisco banhado de sol ao amanhecer. Bodhisattva, Brahmã, Enky, Hanuman, Trismegistos, Lao-zi, Quetzalcoati, Vidyãdhara. Filha d’África, divindade dos bagos, obra de Zeus e de Hera, neta de Cronos e Réia, metáfora de todas as vacas do mundo.


Rabo de Ra, Pavão Perez abrindo-se anima, andrógenos testosterona, ancoragem fera. Eva troglô, avoenga pornô, amante existencial, musa ficcional, delícia de tato sentir os ossos da sua bunda. Desejo atual, carência de paraíso, bendita cloaca existencial do mundo globalizado pelo CO2: sem sentimentos de culpa, satisfação, prazer, suavidade, euforia, otimismo. Inconsciente coletivo da libido.


Vida libido descondicionada. “Irmã bendita, santa mãe, espírito da fonte, do jardim. Não nos deixeis zombar de nós próprios com falsidade. Ensinai-nos a cuidar e a não cuidar. Ensinai-nos a ficar sentados, quietos, mesmo em meio a estas rochas nas quais quebra a força incomensurável desse mar, metáfora pulsante real e virtual do Id.


Seja a nossa paz Sua vontade. E mesmo em meio a estas rochas. Mãe, irmã, espírito do rio, espírito do mar, não deixeis que eu seja apartado. Fazei com que meu grito chegue a vós” através dos pêlos, cromossomos e gônadas. Vamp neo-pós-moderna de todas as experiências pornôs, fêmea neo-pósantropóide, modelo, popozuda anoréxa. Animismo, realismo artificial, espelho andrófago: prima primata. Personagem informatizada de tempos demais anteriores ao milênio. Coração da Gira a iniciar os cios das anorexias todas do século XXI. Ahh, o amor. Amar, eterno tesão de testículos empedernidos. Infinitos, enquanto duros de moer, a buscar e rebuscar madonas cavernas telúricas. Ah, o Amor:


Cemitério populoso da podridão


A carícia dos heróis vendados prisioneiros dos postes


Vítimas dos assassinatos aceitas nesta vida


Esqueletos cambiando dedos e juntas


A carne trêmula dos elefantes da gentileza


despedaçada pelos abutres


Medo dos ratos espalhando bactérias


A fria esperança do gólgota pela esperança do ouro


As delicada imagens de cola dos cavalos marinhos


Ah, o amor:


Seres assustadores, encantadores, ocultando o sexo


pedaços da essência de Buda congelados


e fatiados mecroscopicamente nas morgues do norte


destruição de lenços de seda pela tempestade de pó


Os pomos do pênis a ponto de semear


Mais gargantas cortadas que grãos de areia


Beijar minha gata na barriga


A suavidade de nossa compensação


Sentiu, ontem, ao transar com ela, essa desatinação harmônica de Sinfonia. Talvez a libido esteja em melhor momento. O pênis canta a canção da Terra. A batuta rege incansável, a filarmônica de espermas. Não quer antecipar o que vai rolar hoje na cama. Por vontade própria, um molto maestoso, semelhante às noites homéricas dessas últimas cinco semanas, quando o vivace orgasmo pianíssimo faz implodir o coração do casal a pulsar uníssono no clímax da paixão.





II


Salviano diminui o ritmo nos pedais na bicicleta ergométrica recém comprada. Não sabe ao certo a coisa que motivou toda essa incrível seqüência de insights. Terá sido o arranca rabo com Angélica? Ela não se conformava com o local escolhido por ele, próximo à janela da sala. Tão desejada ergométrica, agora conflito.


— O lugar mais apropriado para esta bicicleta é o quarto.


A opinião granítica dela não mudou. Ele gosta de pedalar enquanto olha as luzes da cidade do décimo andar. A paisagem cinza do Jardim América, a atmosfera poluída, o ar de partículas luminárias de néon à “Blade Runner”, provocam nele uma certa melancolia acompanhada de provisória euforia muscular. Como se estivesse usando anabolizantes para estimular continuamente a força dos músculos.


Até lembrou surpreendentemente, do nome de várias divindades do conhecimento e da escrita. Citou versos de Kerouac. Mas ele, um filho da mãe orgulhoso, não dava o braço a torcer. A bicicleta ficará aqui, próxima ao janelão da sala? Vamos negociar, minha nega. Agora, depois desse desdobramento perceptivo, não sabe ao certo como aconteceram todas essas sensações em seqüência inusitada, deseja apenas que possa repetir-se.


Talvez tenha sido efeito da dose dupla, após a sauna, deste uísque comprado por importado, mas bem que poderia ser made in Paraguai. Quer acreditar: todas as pessoas têm momentos em que a onda da praia é o oceano inteiro, delícias e abismos. A areia úmida metáfora de um abrigo frágil erigido a partir da escassa substância do inenarrável momento.


— Angélica, querida, sussurra, enquanto desliza a toalha pelos braços a enxugar a salinidade da transpiração, aumenta a tonalidade da voz:


— Se for para o bem de todos e felicidade geral do tesão, a ergométrica fica aonde você bem quiser.


— No quarto, querido, no quarto.


— Isso mesmo, garota, isto mesmo. E pensou de si para consigo: é emocionante saber como as mulheres se esforçam na criação de conflitos. Talvez seja um atavismo. Preciso aprender a lidar melhor com isso.


— Que você disse?


O coração bateu selvagem: tcham tcham tcham tcham tcham, bisou! As pernas haviam, provisoriamente, saído da inexigibilidade mecânica dos movimentos, e começaram, não mais que de repente, a pulsar na dimensão do ritmo harmonioso, infantil e supostamente selvagem do rebolado incontido do clone de Ellis Regina, da Daniela Mercury, da Rita Lee Mutante, daquelas madonas vociferantes dos programas de imbecilização em massa.


— Te amo amor, replicou interativamente, enquanto ideoplasmizava a imagem tvvisiva das mulheres de programa dançando can-can nos palcos dos programas de domingo.


INVEJOSO COME CRU





O escritor amador faz hora numa Oficina de Contos, no Museu da Casa Mário de Andrade, no bairro da Barra Funda, em Sampa. Instado pelo orientador, leu seu trabalho para os demais participantes. Surpreso, ouve de uma adolescente suburbana a absurda avaliação: “Acho que você tem inveja de vagina”.


A frase, provocação, sugere a carência de recursos de um inventário cultural de quem não sabe, ou tem, outra coisa menos boba para dizer. Quer chamar a atenção a qualquer custo. O contista fica numa situação paradoxal: mencionar que tal interpretação é quase uma mostra de insanidade, grosseria.


Afinal, vagina é coisa boa, talvez não haja nada melhor. Mas não é de meu conhecimento que alguma pessoa tenha acusado alguém de ter inveja da dita. No Brasil, no princípio da década de sessenta, divulgou-se o livro de Simone de Beauvoir, O Segundo Sexo, dois volumes, sobre a sexualidade feminina. Nele, a escritora garante, do alto de sua notória experiência, que o inverso é verdadeiro: a mulher, ela faz questão de provar com uma argumentação fluida e inteligente, baba de inveja do e sobre o pênis.


Os motivos são óbvios. Vagina é incômodo danado. Para o homem é um apetrecho bom de ser usufruído, a sensação de que possui a mulher que a conduz. O vai-vém, o orgasmo: beleza, o fuque-fuque cativa. A mulher também deve ter uma sensação semelhante de posse e gozo, senão não gemeria, berraria de prazer, provocando, por vezes, verdadeiros escândalos.


Um dos incômodos: o vinco vaginal sangra de quatro em quatro semanas, vigência do período menstrual. Como se não bastassem alguns dias vertendo plasma entrepernas, noventa por cento de suas portadoras têm uma encucação danada: dores e cólicas crônicas que permanecem até a menopausa, quando completam, aproximadamente, meio século de libido, por vezes útil, quando cessam os períodos cíclicos sangüíneos.


Até chegarem a essa idade, as mulheres, nesses dias, vivem encanadas. Usar absorvente, não diminui em nada o valor combativo da dona desse carma. Como se não bastassem esses dias todo mês, de sangue de origem uterina, a vagina provoca o que se costuma chamar nos consultórios de ginecologia, e em telefonemas íntimos entre elas, de TPM.


A TPM designa nada menos que a tensão pré-menstrual, por vezes, a tensão pós-menstrual. É dose dupla de mau humor. Como se não bastasse o fluxo pinga-pinga, há também o pinga-fogo emocional das duas tensões. Isso torna quem carrega esse “drive” da tecnologia fisiológica da mulher, um enorme inconveniente periférico, para qualquer cristão que esteja por perto a ouvir poucas e boas.


Claro que a Talita estava “naqueles dias” quando fez a impensada observação. Ou permanece sob a influência do bem-bom da semana passada, quando num quarto de motel deve ter ficado admirada com minha disposição para malhar no entra e sai de sua vagina. Daí a pensar que a dita causa inveja. . .


Reza o folclore das comadres medievais, que a “caça às bruxas” da inquisição, começou com uma insuportável insurreição de áspero humor por parte das mulheres: dentro dos lares e nos locais de trabalho. É como se todas elas estivessem menstruando ao mesmo tempo. Os maridos, filhos, netos, os comerciantes, cardeais, padres, a nobreza, os militares e até o Papa, resolveram, por unanimidade, acabar com parte delas, do contrário acabariam todos no manicômio.


Qualquer trivialidade se transformava em motivações para elas deflagrarem toda espécie de conflitos: sentimentais, emocionais, domésticos, religiosos e institucionais. Era abrir a boca e o pau quebrar. Houve, entre os marmanjos, um surto geral de brochura. Na testa, não mais havia lugar para tantos cornos.


A intenção feminista de milhares delas, provocou a famigerada reação canônica da Igreja: o tribunal eclesiástico começou a promover a queima de milhares e milhares delas nas fogueiras do Santo Ofício.


Em As Farpas, Ramalho Ortigão escreveu que Torquemada queimou, em dezoito anos, dez mil pessoas, ambos sexos, e promoveu crueldades homéricas e diversas, em cem mil outras. Os tribunais da inquisição precederam o nazismo também na incineração de livros.


Em Salamanca, Torquemada autorizou a combustão pública de seis mil exemplares da melhor produção literária oriental. O febril surto de TPM, na época concentrado na Europa, serviu de inspiração ao movimento feminista do século XX, nos anos setenta, centrado, a princípio, nos Estados Unidos da América.


As feministas mostraram que não tinham medo de inquisições modernas: seus neurônios estavam mais aquecidos que o mormaço do meio dia na Cidade Verde. Em todo mundo ocidental eram acusadas de bruxaria, naqueles dias sombrios do medievo, as mulheres ainda não contavam com as descobertas mais recentes da melhor ciência feminina: o fio dental e a minissaia.


Invenção da inglesa Mary Quant, a minissaia pontificou na interminável década de sessenta. Estudos de ONGs machistas, provaram, recentemente, que recomeçaram a arder, nas fogueiras da tensão pré-mestrual da neomodernidade, os corpos cavernosos do pênis e do clitóris.


O “marketing” da insurreição feminista aumentou as vendas das calcinhas de todos os tipos. E vestir a mulher tornou os modistas famosos pelo fato das roupas ressaltarem seus atributos físicos, como se estivessem nuas.


Na final do programa “No Limite”, da Globo, só deu mulher. Ainda hoje os historiadores não sabem explicar bem o porquê de tanta bílis segregada pelas mulheres naqueles dias negros da “caça as bruxas”.


Nos dias de agora, como sempre em todos os tempos, quando uma mulher sente-se atraída, e seduz um marmanjo em direção à cama, quem paga é a perereca. É aí então que ela vira uma espécie de pilão: freqüentemente marretada pelo pênis porrete.


Ainda há uma quantidade razoável de doenças venéras da neo-modernidade, que podem assolar uma xereca, sem que a dona dela fique sabendo da infecção, exceto muito tempo depois, quando corre o risco de tornar-se crônica. Pergunto: Que marmanjo poderia “ter inveja de vagina?”


Excetuando a procriação e o prazer, para que mais serve ela, se nem pode mijar pra cima, a desafiar a lei da gravidade? Tem sempre de estar de vinco voltado para o chão toda a vida. E os incômodos do aborto e da gravidez? Esses, são por demais tantos... Por consideração às suas crias, abstenho-me de comentá-los.


Talita, querida, não digo que vagina seja defeito de fabricação, mas pelo amor do Criador, seria a última coisa na vida de que um homem teria inveja. Ao falar tal tolice, sei que você estava em plena vigência do período cíclico de perda de sangue de origem uterina. Como invejar essa condição? Se não estava “naqueles dias” poderia estar em plena vigência da Tensão Pós Menstrual.


Até os insetos sabem: Existem outras formas, menos incivilizadas, de chamar a atenção dos feromônios do macho, que não a sagregação de substâncias químicas, por vezes verbais, provenientes da privação de informações culturais motivadas pelo baixo nível educacional das escolas: as públicas, as privadas. Assim como pela carência de sexo e de afeto. Compreendo, Talita, o macho da espécie sapiens está em extinção. E você não soube usar de sutileza para atraí-lo outra vez.


Talvez uma Oficina Literária não seja o lugar mais adequado para esse nível de provocação. Tio Freud 100 vezes explicou essa atitude. Dê uma lida nas linhas da Interpretação dos Sonhos. Quem sabe você se veja lá. Sou mais você, quando superar esse estágio primitivo de provocação libidinal na linha do histerismo. De qualquer forma, garota, se continuas carente, lembre: Estou disponível pra lhe prestar outro favorzinho nesse sentido. Com afeto incansável, e aquele inestimável carinho. Que tudo pode ser seu céu. Que tudo pode ser seu. Que tudo pode ser querer. Que tudo pode ser. Que tudo pode. Que tudo. Que tu. Que. Qu. Q. QI? Nem pensar.





A VANTAGEM DE SE FAZER DE BESTA


Dá uma de “João Sem Braço” às vezes pode ser a salvação da lavoura. Lembro de quando trabalhava numa empresa de venda de imóveis. O principal sócio, rico, “gay chic”, bem apessoado, insinua-se. Busca inutilmente reciprocidade. Faço-me de inocente, de quem não está percebendo nada. Afinal, não sei se preconceituoso, preguiçoso ou se covarde, debaixo do meu cobertor de lã, com as pulgas e os ácaros de estimação, fazer amor com minha rechonchudinha até mais tarde, ter muito sono de manhã, continua sendo melhor do que ter de me envolver com o executivo bem nascido, bem cheirado, bem vestido, seu ciclo socialite de amizades.


As coisas facilitadas, os melhores imóveis, os clientes indicados, as comissões de venda depositadas na conta bancária bem provida. Quem não as quer, tais mordomias? Mas, se para ser esperto na metrópole, é preciso estar de cacho com marmanjos, vou prosseguir, com muito gosto, na promiscuidade dos sem recursos, que gostam da opção pelos pêlos púbicos das lambisgóias. Falou em sexo, sou judeu ortodoxo convicto.


Imaginava-me com gravatas de mil dólares, sapatos de cromo alemão, consumindo importados, vestindo modelos “made in”, a freqüentar os restaurantes da moda, no ciclo dos badalados, escolhendo no cardápio de restaurantes sofisticados, os pratos mais caros, a usufruir das fêmeas que deitam e rolam nos ambientes onde o desvio padrão da sexualidade se compraz no reconhecimento dos que supostamente sabem viver. A possibilidade não me atrai.


Não houve, há nem haverá flozô, por mais cheio de grana e bonitinho, que pague o gosto voluptuoso de uma foda à moda antiga, o jato a inundar a camisinha empapuçada do instinto satisfeito em satisfazer-me e à fêmea. Amar à antiga. Fazer desdobrarem-se as fantasias de possuir, ser possuído por ela. A realização de estar bem com a vida depois de uma simples foda, com ou sem paixão, sempre com tesão. Essa maneira de ver o mundo pode ser instintiva, selvagem, “démodé”, mas não está à venda. Ao contrário, está em extinção. Gosto delas: das Vênus Calipígias que fazem trottoir nas ruas e avenidas da cidade, de ganhar tempo com elas, de perdê-lo, conversar e fazer sacanagens, exercitar o bem-bom na hora do vamosver. Tenho a impressão de que se começasse a transar intimidades com a malandragem do colarinho branco, esse contato instintivo pertinente às fêmeas, poderia, talvez, arrefecer. Não é transação que eu pague pra ver. Faço que não compreendo as insinuações nesse sentido. Afinal, se ser “gay” é avanço emocional, vou sempre fazer parte da ala da escola de samba dos radicais conservadores. Não são a mesma coisa as porções carnosas e redondas que constituem os traseiros cheios de grana e os das madonas a rodar bolsinhas.


Minha opção entre uma nádega esteatopigia, com gordura excessiva, marcada por estrias, arestas e sulcos, e uma bunda toda certinha, com as curvas nos lugares, com assento garantido num carro importado, mas com balangandãs entrepernas... Ao depender de mim, a segunda opção vai ter de ir procurar sua turma. Se preconceito ou não, aceito. Pessoas falam muito dos preconceitos contra homos e “gays”. Parecem esquecer os preconceitos que são a marca registradas dos que não fazem parte de sua grei.


Não são poucas as vezes que tenho de me fazer de bobo para lograr um contato sem arestas à primeira vista. Quando costumava vender meus livros em ambientes públicos, tipo bares e restaurantes, filas para o teatro e o cinema, a fazer uma empatia rápida, porém profunda, com pessoas que perguntavam alguma coisa sobre o livro em oferta, precisava aproveitar o interesse momentâneo para não perder a venda. Dizia alguma coisa que, pensava, tal pessoa gostaria de ouvir, mesmo se não exatamente coerente com os termos da narrativa do livro. Despojava-me de qualquer preconceito, ao agir de forma a ganhar do consumidor a confiança em dizer o que ele gostaria de ouvir. Minhas transas “gays” só foram até aí. Isso é agir com esperteza? Para uns sim, outros não. Em termos: se, posteriormente, o livro não satisfizesse as expectativas de quem o comprou, o leitor sentir-se-ia logrado, não perderia oportunidade de fazer má divulgação verbal do mesmo. É um risco que o autor que comercializa literatura mano a mano, está sujeito, para não permitir que a venda escape no instante em que se impõe a oportunidade.


É olho no olho. Nem sempre se consegue entrar no ritmo psicossomático apropriado ao movimento simultâneo, psicológico e físico da pessoa em pauta. As pulsações mentais do sistema neuronal são, por vezes, muito rápidas. O autor tem de dar nó em pingo d´água ou a oportunidade se esvai.


Se há alguma irritação, se tal pessoa está perturbada por algum acontecimento aziago, nem adianta insistir. Se houver antipatia à primeira vista, esquece. Se duas ou três pessoas estão muito envolvidas numa troca de idéias, fazer-se de bobo educado pode render juros, principalmente se você parar de lado, como quem não quer nada, a ouvir, numa fila, do que estão falando.


O autor vendedor aumenta as chances de ganhar um comprador numa fila de teatro ou cinema, se, na hora de se aproximar do possível leitor, num grupo em conversa, souber avaliar corretamente qual delas argumenta mais forte, e sutilmente deduzir de tal argumento, a síntese que justifique, em poucas e simpáticas palavras, a solução do conflito de idéias entre eles, sugerindo-a amigavelmente.


De repente, não mais que de repente, você entrou numa conversa conflituosa de terceiros, como quem não quer nada, dá uma dica para a solução do conflito, distribui mui rapidamente material de propaganda, na mão deles, e trate de sair logo, de fininho, como um perfeito “João Sem Braço”, para depois voltar e conferir o efeito. Pode ser que você tenha entrado numa fria, ao solucionar um conflito tão esquentado que poderia durar horas, quem sabe dias, num átimo, quando o objetivo do grupo poderia ser mantê-lo vivo, simplesmente para ter alguma motivação em manter a conversa quente. Alguém pode ficar muito satisfeito ao ver a sardinha da razão sendo puxada para sua brasa.


Você corre o risco de ganhar a antipatia de todos, por ter mostrado ao grupo o quanto estava disposto a perder tempo com uma trivialidade, a valorizar uma discussão acalorada de solução tão fácil e óbvia. Ninguém gosta de se passar por bobo, mesmo sendo um. Ou você vende um ou mais de um de seus livros, depois de pedirem autógrafo e tudo mais, ou então aquelas pessoas guardam bem seu nome literário e juram jamais comprar um livro desse autor, filho da dita.


Em qualquer situação de aproximação súbita, banque a representação do bobo educado, todos gostam do “por favor, queira desculpar”, “desculpem interromper”, “é só um breve momento... obrigado”. Breve sim, mas suficiente para abrir uma brecha na defesa daquelas pessoas. Nesse breve momento, em que estão a se sentirem reis e rainhas, a ouvir a preleção humilde e modesta do bobo que lhes faz a corte, esse breve momento você ganhou para vender seu peixe. Seja rápido e rasteiro, saia da proximidade deles o mais breve possível, para que não percebam o incômodo que porventura tenha causado.


Você, autor e vendedor ambulante, simplesmente os fez mudar de atitude, entrou no mundo fechado de suas percepções, deslocou as atenções para você, um desconhecido. Audácia: e tudo com o consentimento deles. Surpreendem-se com aquela coisa estranha, (o livro), que agora, queiram ou não, é parte provisória do mundo deles. Tudo rápido, você nem está mais lá, mal sentiram a perturbação no mundo ordenado da diversão de rotina de fim de semana. Ao se afastar, podem trocar idéias sobre, sentirem-se invadidos e até malhar.


“Toda ausência é atrevida”, segundo Pessoa. Se perguntarem (pergunta calada) sobre aquela coisa que está em suas mãos, “que coisa é essa?” Você estará longe e ao mesmo tempo prossegue lá, em mãos, de uma maneira não traumática. Se disserem algo grosseiro contra sua atitude, contra seu livro, problema deles, sentir-se-ão mal educados, preconceituosos.


Você agiu de modo tão insinuoso, civilizado. A polidez e a cortesia da boa educação tão bem inseridas na sutileza do contexto de se fazer de besta, que mal perceberam a presença, ainda que esteja sutilmente entre eles. Se dedicarem uma breve leitura ao livro e na propaganda dele, a curiosidade, por mais breve seja, é meio caminho para a efetuar a venda.


Você insinuou-se, sem forçar a barra, exatamente quando estavam envolvidos com uma possível banalidade, a despender energia numa discussão boba. Agora, toda aquela energia grupal está deslocada para uma apreciação, ainda que breve, do produto literário. Se uma palavra, uma frase, uma sensação positiva for despertada a partir desse breve olhar, você terá ganho um leitor para seu texto.


Quando voltar depois, com aquela aparência de quem não quer nada, afinal você está oferecendo uma opção intelectual, um livro, para aquelas pessoas tão preocupadas em apenas se divertirem, terá, possivelmente, ganho a simpatia delas. Pronto, um ou dois exemplares a menos na possibilidade de encalhe da edição. Essa, a vantagem do se fazer de besta: aquele João-ninguém, bobo de reis e rainhas que fizeram a gentileza de imiscuir-se nas mesas de bares e restaurantes, nas filas do cinema e do teatro, que poderiam estar no conforto de seus castelos/apartamentos, se dignaram a promover uma boa ação, desceram do alto da dignidade de seus tronos/poltronas, compraram o livro do bobo da corte.


Afinal, podem estar ganhando mais que um simples descarrego de consciência. Tudo pode acontecer nesse mundo onde autores têm de vender livros em filas do showbiz. Pode ser até mesmo que aprendam algo com ele. Se estão comprando o livro é porque querem tirar vantagem dele, nem que seja só a satisfação da curiosidade. Alguns compram só para mostrar que gostam de investir em cultura literária, não perdem uma oportunidade para isso.


Se gostarem da leitura, é certo, consciente ou inconscientemente, estarão fazendo a divulgação do texto. Você, autor camelô, terá ganho outros leitores futuramente. Se gostarem, mesmo que fiquem de boca fechada, estarão divulgando subliminarmente seu trabalho. As vantagens de se fazer de besta começarão a aparecer. Você deve acreditar estar plantando a semente no impossível solo da difícil colheita.


Como Sidharta, terá de saber esperar, jejuar, pensar. Nada se aprende com a personagem de Hermann Hess, e as de outros autores, ao não se praticar o conhecimento neles ensinado. Tal aprendizado terá sido inútil. Fazer-se de besta pode ser perigoso e divertido ao mesmo tempo. Saque antecipadamente a reação da pessoa. O dono de uma banca de revistas, por exemplo. Ontem, fiz a compra do Jornal da Tarde pelo suplemento literário do sábado, as revistas Palavra e Cult, uma, com a Lygia Fagundes Telles na capa. Senti-me com moral para solicitar de um dos dois marmanjos, um deles meio mal encarado, que atendiam os fregueses da banca, àquela hora da noite, muito movimentada, na avenida Paulista.


— Ei você aí, me dá a Bunda aí, faz favor. O mal encarado pego de surpresa, fica sem ação. A frase provoca uma certa perturbação no trivial variado do bom mocismo dos clientes. Afinal, em ambientes públicos deve-se manter o recato. Ainda mais numa metrópole tão violenta, que qualquer vulgaridade pode ser motivo para agressão. Passado o primeiro momento da surpresa, quando o mal encarado ameaça afrontar-me, complemento: “Não é a sua bunda, companheiro, é a revista Bundas”.


A suposta insensatez foi compensada pelo sorriso de um e outro fregueses. Eles viam na cara do funcionário, que talvez nem soubesse ler, a perturbação de quem diz:


— “Eu não dou a bunda não, cara, eu sou espada, tá pensando o quê. Vai encarar?”.


No último domingo do mês de junho o movimento “gay” comemorou o dia mundial do orgulho anal dos insensatos. Não sou candidato a super-homem, mas é certo que se algum supercafajeste vai mudar o curso da história por causa das xoxotas, é bom que se diga que a casquinha não pode ser baiana, nem o rabo de baleia.


Frescuras à parte, em qualquer ambiente, os literários não são exceção, pessoas que se sobressaem podem cair no conto do vigário da liderança. Pessoas querem ser lideradas para sentirem-se mais seguras, mais fortes: pessoal e coletivamente. Aí mora o perigo: ao aceitar as solicitações de liderança, o autor pode se diluir no que há de mais vital na criatividade: a necessidade de isolamento, sem o qual a habilidade mental para a meditação não pode ser cultivada, exceto superficialmente.


O escritor, presumo, se compraz com a solidão, gosta dela. Nela está o embrião das condições propícias ao desenvolvimento do trabalho parapsicológico de criar interiormente as condições subjetivas para o cultivo dos desdobramentos das idéias, dos sentimentos, das emoções de suas e de seus personagens. Acontecimentos psicológicos e emocionais complexos precisam ser trabalhados na composição dramática da vida de cada um deles, até atingir o clímax das histórias dentro da história.


Ele, escritor camelô, precisa se fazer de besta, burlar as solicitações do mundo exterior com suas rotinas de dispersão dirigidas em sentido contrário à ruminação intelectiva dispersiva, a afirmar o amadurecimento das forças subjetivas que aglutinam a vontade de estabelecer os acontecimentos significativos: os conflitos, a dialética, a dramaticidade. A história superando as forças opostas da "dramatis personae". Os atores do romance, do conto, do ensaio, da crônica, da poesia, da novela, da dramaturgia, da tese, da carta, do bilhete, fazendo seu trabalho.


O escritor, suponho, deve ao leitor a habilidade em ser persuasivo, interessante, surpreendente. Isto não quer dizer enclausurar-se numa torre de marfim. Mas é certo que a luta por segurança e estabilidade, pelo imprescindível pão nosso de cada dia, facilmente pode distanciá-lo da introspecção necessária, exigida pelo aquecimento do processo de criação, pela disposição e a organização dos diversos segmentos narrativos selecionados.


A cada estágio do trabalho literário, uma personagem ganha força, torna-se mais intensa do que o planejado. Todo o plano inicial precisa ser revisado, e tudo muda com o novo encadeamento das associações de valores: a inserção de outros sentidos, de novas afinidades e conexões. Ler e reler, revisar, modificar, trabalhar melhor a metáfora, a metonímia, o pleonasmo. Um escritor precisa, definitivamente, ser uma pessoa incomum, um “João Sem Braço”, por vezes se fazer de besta, distanciar-se das solicitações de outras rotinas que em nada contribuem para a concentração e o aperfeiçoamento da técnica de criar e escrever ficções: as mais curtas, as médias e as mais longas. De qualquer forma, fazer-se de bobo da corte não é fácil. A corte habitante do castelo medievo chamado Mercado.





BLUE DONDEQUIERA VERDE





O tempo flui na ampulheta da idade. Translúcido, inevitável, perene, vinvisível, através de todas as coisas: nas mesas dos bares, no sol sobre as águas, entre os poros do corpo, nas asas aladas do Anjo dos dias.


Esse fugaz momento salta do aquiágora para algures, pela manhã, à noite, ou nas ondas da madrugada. Houve um momento em que a ilusão de tê-lo e detê-lo entremãos, ficou na memória: a fluida adolescente de carne, ali, no exercitar da sedução a poucos metros da entrada de minha barraca.


O Sol, dezenove, a Lua dezesseis primaveras. Um desejo sem idade, querer de todas as fases, pára o passartempo. Como se tivesse esse poder, essa glória. Como se magos fossem e detivessem, entrededos, essa enorme e tão rasa profundidade, igual aos espelhos de água entre as pedras nas poças de areia da praia, a refletirem, do chão, a altitude das nuvens inalcansáveis e próximas, ao estender do braço.


Seu ser sorri. Eu, gratificado como uma criança que ganha um presente cósmico único, de fazer inveja a todos os outros garotos do mundo. A idealização juvenil da fêmea. Depois é depois, agora ela é muito mais que uma simples perereca fedida. No momento, raro prazer e privilégio.


Adolescente, nada mais almejo, senão fazer a mágica de estar com essa Eva, deixar sangrar a libido. Idealizada como aquela criatura extraordinária, com um talento inimitável para cozinhar em óleo quente a mágica redundante da serpente. Adão, penitente, arrasto a cruz do desejo, permito-me manipular pelos instintos de bacalhauzinho dessa amendoeira-de-praia.


Aos trejeitos enredo-me no provisório Livro Sagrado dessa cosmogonia de escola de samba. Pudesse guardar essa plenitude, esse fermento, esses seios quentes, essas coxas juvenis abrindo-se numa loto intranscendente, sempre. Implacável guerreiro de Eros, penetrar a terra conquistada, antena de querências quentes, molhadas no orvalho das transcendências eróticas de pura beatitude saciadas. Juventude, sítio insubstituível da mágica barca do adolescer. Provisória morada do êxtase. Indizível sentimento mesclado à angústia do rito de passagem. Serpente e maçã: a idéia desses peitinhos durinhos, glutglut orgasmo. Como a fruta de Newton, eles também tendem a cair.


Ah, a eterna mocidade deste sorriso não ouse nunca fragmentar-se com a idade, as eras. A eternidade latente desta simples verdade exulta, acontecimento definitivo, bigbang, independência virtureal. Inominável beatitude ao alcance das mãos, intangível perenidade. Fazer valer a Antigüidade do vinho da juventude. Fermentar encantos. Desencantá-los. Ignorar olhos outros impartícipes desse ímpeto. Não vêem a serenidade pairando no colo da namorada.


Azaram a grandiloqüência da bem-aventurança, por pura inveja aziaga. Porque dela supõem não fazer parte. Tão ínfimos na essência, que nem desprezo merecem. Escoram-se na quantidade. Mais tarde, uma infinidade de eternidades depois, quando a claridade solar passa à lua o pouso da ave do anoitecer, você chega outra vez, telúrica. A pele polivalente dos sentidos aquecidos no calor uterino da barraca. Namorada de carbono, hidrogênio, oxigênio e nitroglicerina. Delícia penetrar-te, véu ilusório de Maya, tênue lenço de seda impregnado pela tempestade d’areia. Úmidas flores de vigor e entusiasmo, ansiedade de primavera: ondas fazendo marola no barco da adolescência. Ah, saber saborear a poeira da maresia juvenil sobre a pele insone da efêmera realidade.


Usurpar, talvez, estes últimos resquícios supostamente castos, desta declinação situada neste equador celeste. Odor orgíaco, fresta baquiana, atalho sísifico. Passagem para outras dimensões inexploradas, rumo a sementes futuras tão antepassadas, unificadas na seiva senda transa, vagam versos hodiernos. No mix dos corpos, o subjetivo solfejar da pétala pubescente e esguia dos corpos.


Ocre aroma emana da flexível estrela da vida inteira. Passos em direção ao silêncio depois. Ao contrário de Sísifo, sinto-me natural, inesgotável e útil. Desejo com todas as forças incontidas deste eterno movimento, deslizar em água corrente até o âmago do âmago deste seixo. Ser direção dos mistérios voláteis na telúrica fragrância rosácea de bacalhauzinho.


Invejável privilégio: criar infindáveis redundâncias nesta estrada mística e ao mesmo tempo perecível carne. Nela explorar trilhas para esses universos paralelos onde Thânatos, inutilmente, busca uma morada. Amor e tosse não se escondem. Nem esse olhar mar “blue” de maio. Essa noite solar. Esses malditos borrachudos cinzentos não conseguem perturbar.


A descoberta juvenil de que o mar tem por função ligar os portos distantes da emoção, o pulsar de cada coração independente, agora não tão solitário. Usufruir desse bem-estar, antes de ter de aderir ao lixo do salário. Antes de sair do casulo da mocidade para ser mais um galho na árvore genealógica, DNA genoma do capitalismo selvagem.


Como preservar o prazer de usufruir a serena bem-aventurança desses espaços abertos, enquanto a carta do enforcado pelas gravatas do colarinho branco, cobra o tributo a ser pago pela sobrevivência do Tarô. Como fazer a permuta da utopia subjetiva dos feitos da liberdade, pela trapaça de ter de ser mais um trabalhador combustível do medo?


Como fazer, sem traumas, a substituição desse perene lazer, pelas rotinas do curriculum vitae? Não desejo pagar nenhum preço para ser relativamente livre apenas um dia por semana. Não quero o Natal sobre a Terra apenas uma vez a cada 365 dias. Senhor, tirai de minhas mãos essa rotina dita de homem livre, que na realidade não passa de escravo da própria crucificação. Afasta de mim o cálice dessa respeitabilidade de anãozinhos, brincando com Branca de Neve de ter um larbirinto de filhinhos de salão de cabeleireira pra Jesus criar.


Nasci de um jogo de buraco, de uma planta trepadeira, de um embalo de sábado à noite. Não desejo isso pra ninguém. Preserva-me, de ser mais um membro respeitável da estirpe “black-tie”, casta infecto-contagiosa que abunda nos shoppings centeres dos corações solitários. Preserva minha alma desses baixos e inomináveis sofismas.


Essas mordomias não passam de contaminação pelo lixo fedorento à venda sob as luzes das vitrines megailuminadas pelos efeitos especiais das mercadorias globalizadas nos bazares da moda. Preserva meu sal do acaso infortúito do caminho reto, rumo à destinação menor de ser uma peça a mais da mecânica dos corpos da política dos egocratas.


Resguarda-me de perder a memória da estrada percorrida dentro de mim mesmo, em direção à superação deste deslumbramento cromagnon pelo consumo de porcarias dolarizadas. Garota dos olhos de onda do grande oceano, você não imagina o que fez por mim. Agora brotam estes terríveis desejos de sustentá-la, ter uma vida em comum contigo, transformá-la numa dona de casa, trancá-la nos quartos e salas do larbirinto sem fim.


Os sinais fechados da vida vão muito além dos semáforos. Ah, os mistérios da sensualidade. De amante da liberdade a leitor de romances, preso com você e a prole num iglu urbano, na noite antártica das pessoas da sala de jantar. A telinha ao alcance do controle remoto.


Vim querida, estou aqui. Nem imaginas, mima-me com sexo, faz-me perplexo ao dar e receber. Agora, afasta provisoriamente esta beleza sem a qual a vida se minimiza. Essa coisa mais que perigosa, mortal, a falsa serenidade desse olhar, da qual são partes poéticas esses malditos mosquitos cinzentos travez. Nem eles conseguem perturbar a poesia a pairar serenamente, Anjo da Plenitude, sob as trevas prateadas do luar.


Olhos fixos na beleza redundante. Quetzalcoatl, janelas amarelas para uma vida de portas fechadas, para o extremamente frágil sabor coletivo da solidão. Serpente emplumada, prisioneiro do zoo metrópole, globalizado pela telinha informatizada. Meu amor, quando este seu vibrador e toda a volúpia dos filmes pornôs, tiverem esgotado todas tuas nuas vibrações sensitivas até os ossos, depois dos sessenta e nove, setenta e quatro, você certamente lembrará de seus desejos imorais imortais. Aí mora o perigo: não tê-los vivido, insatisfazê-los. Quem sabe vivê-los no “timing” certo, seja raríssima forma de felicidade.





G L O S S Á R I O


Aquiágora - Advérbio de lugar e substantivo feminino. A simbiose gramatical designa acontecimento no aqui agora de um local público, tipo praça, avenida, praia, parque. Evento popular.


Cosmoagonia - Dois substantivos masculinos com um substantivo feminino. A palavra é síntese do tríplice sentido das termos cosmo, mago e agonia: O astrólogo e mágico zoroástrico em busca da realização alquímica da filosofia cósmica da satisfação de viver na Terra. Para realizar a superação da agonia de estar nas trevas, ele tateia o conhecimento libertador, em busca da palavra que o libertará para sempre do inferno da mente maniqueísta do Homo sapiens.


Dondequiera - Palavra do espanhol, advérbio: “Onde quer que seja”.


Larbirinto - Duplo substantivo masculino. Refere-se à casa da habitação, ao mesmo tempo complicado e obscuro emaranhado de interesses conflitantes a se manifestarem, consciente e subconscientemente, de seu mefistotélico interior.


Passartempo - Verbo e substantivo masculino, juntos significam: passar poeticamente o tempo.


Terrestresperança - Adjetivo de dois gêneros e substantivo feminino: ponte subjetiva que liga os poderes da fé à realização dos desejos do homem na Terra.


Travez - Pronome e substantivo feminino. Quer dizer “outra vez”.


Vinvisível - Dois adjetivos de dois gêneros, mencionam um ser ou alguma coisa simultaneamente visível e invisível, perceptível e imperceptível, manifesto e imanifesto, acessível e inacessível.


Virtureal - Confluência de dois adjetivos comuns de dois gêneros. A palavra quer indicar manifestação fenomênica ao mesmo tempo presente nos universos paralelos do mundo real e do universo virtual.





DESESPELHO ONÍRICO





Ao olhar-me na superfície deste espelho estou presente um nono. Máxima parte suportável à vista. Busco aparentar-me com invisível parte ausente, talvez inachável a olho nu. Os outros eus, latentes, não ousam revelação de existências outras, iceberganas. Estão longe nalgum longínquo nicho subconsciente. Tenho direito à minha posse e vontade, a fazer acontecer minha vida presente, futura, cismar, ou não, com os bloqueios, criar possibilidades. Sair fora da rota dos icebergs. Manter-me sobre a superfície do Id. Um iate serve, não precisa ser um Titanic. Meu desejo não quer adernar e muito menos afundar no festival "chic" coletivo.


A parte subterrânea, interferência ancestral de vontades alheias, oculta-se na chama submersa, nalgum lugar inalcançável da profundidade refletora do espelho. Aproximo-me, como que atraído pela falsa sedução do cerne psi, pressentimento vindo dalgures, da inescrutável noite ancestral.


Não me comovem esses golpes baixos dos arquétipos cheios de sentimentalidade, presentes nas lágrimas e emoções doutras rinhas, doutras eras. Fortes descargas afetivas fluem, querendo pegar-me pelo sentimentalismo piegas. Do outro lado do espelho inconsciente coletivo, quantas tiazinhas solteironas querendo vingar seus corações solitários através dos fios invisíveis no genoma descendente. Quantos parentescos sangrando, aflitos por coaptação, nas sombras de expectativas avoengas. Meu caminho de pedras no meio do caminho.


Melhor estar sozinho, não consigo somar com essas forças, o atrito mutuamente as decompõem. Interessa nada o reflexo das intenções subterrâneas. Que mais podem querer, senão dividir comigo caminhos vicinais de pedras a mais no meio do caminho? Bastam-me as pedras de meus rins. Por que me aventurar em outras impossibilidades que não as minhas? Talvez não saiba somar pessoas de fora e de dentro. Aceito isto. Meu objetivo talvez seja igualzinho aos mais comuns, mas não o caminho para alcançá-lo. Muda a maneira, o módulo, os passos pequenos, os maiores, a grande esperança invisível da fé, no saltar os intransponíveis abismos nietzschianos do homem enquanto metáfora de tênue corda estendida entre o animal e o novo homem: a perigosa travessia, o perigoso caminhar, as ameaças do olhar para trás, a tentação do tremer e parar.


Meu reflexo desespelha condicionamentos os quais induziram-me a acreditar. Talvez as pessoas de dentro e de fora queiram as mesmas coisas, inclusa a possibilidade do não. Sou desigual no detalhe mimetista da percepção. Desejo desidentificar-me. Invisto na diferença, em não estar disponível. Busco descontemporaninizar-me com as radicalizações do consumo. Basta estar vivo para ser radical. Desanexar-me. Estar no outro, intruso irrevelado, o outro lacaniano, sob comando dos oito nonos do inconsciente. Euzinho investindo no "eu": um nono apenas. A amplitude nacísica do outro, quer expandir-se, assanhar-se em minha direção, objeto especular. Sente difícil a tarefa de aproximar-se através da superfície do espelho.


Decepção: não acha o ponto fraco pelo qual poderia se inserir, sutilmente, em meu psiquismo: Narciso não me habita: essa a dificuldade. Quantas sutilezas vivas de corpos dantes semoventes buscam ganhar adeptos, para seitas astrais, através da fina sina espelhada do vidro reflexo: profundidade do corpo metálico polido. Quanta falsa solidariedade querendo emergir do astral para ter hora e vez no convívio dos vivos. Fantasmas do desejo de emergir no aquiagora, paridos do útero fogoso de uma fêmea mãe, sabe-se lá há quantas gerações.


Quem garante não ser você, espectro intangível, apenas mais uma vontade recorrente de algum antanho parente vivo, morto, morto-vivo? De que nicho subcutâneo, subterrâneo, presentificar-se-ias, se te dessem a chance de emergir da ancestralidade das tumbas de pó para o hoje? Comigo não. Como diriam tantos personagens de Shakespeare: “Eu sou espada”. Sem chance permitir horrores outros como se fossem parte de meu reflexo. Sabe-se, desde tio Freud, do que se alimenta a pulsão que move os corpos seres e entes. Basta-me meu desejo de ter, de poder, de foder, recuso-me ser conivente com outra vontade de inserir-se através de eu, do mundo dos mortos-vivos. No espelho ímã, visualizo reflexo, sei que não estás sozinho do outro lado.


A profundidade reproduz os cantos da sala, estabelece-se peculiar estado emocional, afloram as desexpectativas genéticas da herança. A presença apenas insinuada tem ligação direta com esse mundo, mas há dificuldade em se reincluir nele. Não passa, talvez, de uma sombra genoma, incorpórea, ambulante. De um desejo inexplicável de sobreviver, fazer-se carne outra vez. Para fazer-me mais consistente, concentro-me na memória dessa coisa pulsional do amor ao meu modo, que deve ser semelhante a outras muitas maneiras de amar as fêmeas. Talvez pensando nelas, na realização de nossas taras, consiga uma distância segura do espectro a insinuar-se.


Por outro lado, talvez seja por aí que ele possa encontrar maneira mais fácil de corporificar-se. Queres acompanhar-me na solitude, leia os versos de Kerouak sobre o amor. Não se engane ao tentar enganar-me. Não desminta minha tese nem queira revelar-me mistérios de infernos ou édens inusitados. Dispenso seu hálito mefistofélico. Conheço-me, não me venha com manhas, com dinamismos fisionômicos, com papo de fenômenos empáticos parasensíveis, com fenomenologias transcendentais de clubes acadêmicos. Conheço-me razoavelmente, impossível desconhecer-te. Estou a conseguir manter o medo sob controle.


Agrada-me estar comigo. Obrigado, se achas que devo ter por privilégio usar-me como cavalo para materializar-se nesse mundo. As pedras tuas no meio do caminho, desagradeço-te. Bastam-me as minhas. Diz o dito, quem não se envolve não se desenvolve. Quem, nesse mundo de empatiazinhas não consegue envolver-se? Des-envolver-se pode ser objetivo mais difícil. Teimo, entre tantas inclusões dialéticas, fixar-me no refletir como se num universo paralelo. A radioatividade subatômica das células sociais chama-me à participação da desimcompatibilidade. Devo interagir? Não sou sozinho, tenho compromissos de integração com a comunidade que me cerca. A coisa latente representa a energia coletiva de um grupo. As solicitações abrangentes do mundo. Não posso, não quero, nem devo excluir-me delas. Inserir-te nesse tempo não é responsabilidade minha. Agora quero apenas ver-me melhor. Quem sou? É querer muito, querer tudo. Como ser melhormente eu? Excluir-me de ideologias 100 terra, 100 teto, 100 identidade, 100 cidadania, sem centúrias, sem mais nada que não eu reflexo. Contradição sem narcisismo, insisto. Não desejo deste espelho compartilhar influências sociomagnéticas do natal, do carnaval, dos feriados e dias santos dionisíacos. Sedução astral dos que estão a querer introduzirem-se, através do espelho da quarta dimensão aquiagora.


Ver-me, eu, não à moda do outro deformador: curvo, côncavo, convexo, metáfora de alguma projeção globalizante de imagens mutantes da neo-pós-modernidade. O espelho fixo a ganhar ares de povoado, figura inatural insinuando-se através da obscuridade, a querer passar para esse lado, busca de solidez. A noite e a madrugada, estações pasmadas em todo tipo de assombração. Claro, deliro. Por certo não estou desperto. Tivesse os olhos escancarados, não veria melhor a veraz presença dessas sombras, a polaridade nublada, trevosa, como se fossem indigentes figurantes de uma manada, tangida por vaqueiros do sertão mineiro à Guimarães Rosa.


Espelho revelação, mimese, imitativa duplicação de balé fantasmagótico, vislumbre, vidência, como se fosse viajor da luz a trezentos mil quilômetros por segundo. Insiro-me pelos sertões sem tempo, minhas retinas desdobradas mal cabem em meus olhos. Meu reflexo não narcíseo basta-me. Salva-me. De alguma forma acreditavam, os oito nonos, ser eu elo fácil para intentos incorporativos. Acharam que me ganhariam a resistência, quer pelo terror da libido, quer por sua suposta piedade. Tenho a nítida sensação: tivesse inclusões narcisistas, serviram enquanto portais de fácil insinuação desses intentos. Deram-se mal. Vejo melhor agora o quanto são pequenas as personagens do livro dos espelhos que se abre em páginas de náusea. Medusa, sartreana náusea, onde a verdade do inferno é a presença narcísea dos outros. Quantos milagres acontecem neste momento através desses instantâneos? O olhar fotografa mil flagrantes por segundo. Entrevejo-me em cada diverso fixar das pupilas de meu único diverso rosto. Providencial lembrança de versos longos. Ao longe uma fé ouve-se: “A alma que clama está morta, as coisas não são o que parecem ser”. Salta aos olhos o sutil subitamente sísifico, como se a vida fosse um trabalhar insano, carregar inutilmente as pedras do meio do caminho montanha acima. Depois de atingir o topo, vê-las rolar estradavolta, novamente aceitar com humildade cumprir a tarefa extenuante, repetir a rotineira. Quero crer desinútil, jornada. Tentativa de impor rotina e lógica ao solfejar suado do humano desatino. A necessidade de desrotinizar-me, de me desconstruir desigual às solicitações do cartão de ponto, das tapeçarias pseudofofas das fobias dos gabinetes burocráticos. Desconstruir-me, distanciar-me da tarefa sísifica de me desafirmar na insensatez rotineira da quarta dimensão do sim senhor, do por favor, do obrigado. Nessa dimensão patética do existir, vejo-me destorcido em reflexos que têm poder de atração para cima, para baixo, para os lados, sem que possa controlar a massa do corpo: mantê-la nítida, crível, fixa, coerente quarentena. Desnarciso justificável, luto para ver minha melhor projeção na superfície do lago. Nesses especular de águas transparentes, o diáfano quer valer-se de minha meditação.


Aprendo a lição: até os objetos supostamente inanimados desejam prevalecerem-se dos outros, afirmarem-se, sobrepujarem-se. Exercer posse e domínio pela simples arma do existir. O monstro não sou eu, é o maldito espelho que me nega melhor imagem nítida. Felizmente dela não preciso, espelho-me em subjetivo. Agora, finalmente compreendo: são as oito partes subterrâneas de mim, expõem presença dessa forma. Acontece quando alguém olha alguém em busca de identidade. Ignora ser olhado com igual desintenção. Buscam ver no outro a própria alma duplicar-se em farsa, em força. Desejam ver-se mutuamente afirmados, reproduzirem-se a partir do reflexo metonímia, metáfora de intenção inconseguida.


Sonho, desejo despertar. Será esse poder invocado por avoengos? Serei instrumento provisório dos mortos? Alguém batia as botas, cobriam-se os espelhos, viravam a superfície refletora em direção à lisura da parede. A sutil faísca quântica da alma do morto facilmente poderia tomar conta do reflexo. Os vivos temiam culpas cobradas pela anima do falecido. Tremiam de medo de vê-lo, reflexo acusador, misterioso, a cara de pau revificada, como que ressurgida do paletó de madeira. Os pelos dos poros eriçavam-se em direção ao além. Esconjuração sobrenatural. Batiam na madeira três vezes no lugar certo da mesa. De cima pra baixo.


Resistiam à tentativa de encarar a presença do morto na superfície, tanger o perfil hediondo do que de dentro deles mesmos temiam ver. O morto não era outro, senão cada qual deles. Certeza de preconceitos fantasmais, superstições antepassadas, cultivadas como planta decorativa de estimação no húmus da alma. Regada todo dia, repetidas vezes, geração após geração, fatigadas metáforas sísificas. As astúcias ancestrais escondendo-se, esgueirando-se, sobrevivendo nas frias finas pálpebras das pupilas mausoléus. O corpo criança, adolescente, adulto, idoso, enquanto túmulo remanescente. O morto mirando-se de dentro dos parentes, garantia de sobrevivência de culpas terríveis, pagando o carma milenar da ancestralidade.


O fluido medo, plasma do desejo dos mortos mumificando-se: cabeça, tronco e membro, no corpo cavernoso dos descendentes. Mirando com eles as paisagens comuns, negando-lhes uma escolha, criação de vida própria, um futuro, que não extensão da usina de sonhos antepassada, desdobramento dos ossos pulverizados pelo tempo, simultaneamente presentes nos filhos, netos, bisnetos: vidas cristalizadas, mundaréu de gerações nidificadas antes de nascerem mundo afora, caminhos de desmemórias, antecipação da morte em vida, igual intencionalidade cadavérica. Os supostamente vivos, sem olhos, sem olhar, sem essência. A visão limitada perpetrando-se do astralém túmulo. Pulsão: proibida tarefa de destranscender-se.


O mesmo olhar limitado, intruso, realidade vinda do sem fim paratumular de outra dimensão do desexistir. Os cacoetes carmas, como atavismos, realizando-se através de mim. Não, obrigado. Faina vã sobrevivente, perenes recomeços empenhados em marionetizar os vivos do outro lado do desespelho dalgures, da terceira margem do rio. Putos da vida, vêem, eu, a desgarantia da perenidade deles, em minhas rotinas, ainda sísificas, não mais paratumulares. Este sonho desespelho, agora não tão pesadelo, desejo dele sair, despertar, desconstruir-me desse nada, fornecer-me desoportunidades.


Desejo tornar-me vivo, diferente deles, criar sonhos caminhados com passos até então desonhados. Ter certeza de que não vou reproduzir alguma astrofísica nebulosa, algum gás estelar do dia dos mortos, direcionado destino de reprodução do passado compulsivo cromagnon. Desenraizar-me de sonhos ingerados por mim. Eu, anatomia preenchida por toda essência rudimentar das moléculas de proteínas, enzimas e aminoácidos específicos, produto das 500 mil cópias da seqüência de nucletíodos Alu, existentes no genoma, prova incontestável que a maior parte do DNA é composta de lixo, sinal de que a raça humana possui genoma instável.


Preciso despertar, sair desse outro lado especular, subatômico de mim. Sair deste nada rudimentar, minimalista. Dentremãos perco a direção da porta para o despertar. Olho para o espelho, cruz credo, nem sei quem que, usando meus membros, rapidamente benzeu-se nada menos de sete vezes. Na superfície, quantos mortos. Medo do futuro, de não refletir na árvore genealógica dos antepassados? Intuo que o maldito espelho não havia devorado meu reflexo. Eu devorei as vontades telúricas, uterinas, de voltar ao seio da mãe, ao útero da terra original dos ancestrais. Não vejo minha imagem reflexa, um evento anunciador da vida sem aquelas inclusões fantasmagóticas. Aceito de coração separar-me com as próprias mãos, quebrar o cordão umbilical que me unia a outra intencionalidade cósmica que não eu telúrico. Desespelho, desnarciso.


A certeza de que não mais pertenço às trevas da ancestralidade. Nos filmes sobre mortos-vivos, eles não refletem a própria imagem. A diferença: eles foram acolhidos pela terra materna, uterina, do sepulcro. Eu, pela liberdade de seguir meu caminho cósmico sem mico. Não morri, terei morrido? A vida começa AquiAgora. Busco nalgures evidência física do corpo. Desimaginei-me com tal intensidade a ponto de provocar minha desimagem no espelho? A situação incomum. Um rito de passagem paranormal, incompreensível, estranho. Acredito sinceramente em algo mais do que obsessão auto-sugestiva, despropósito psi.


Escrevo para que esta revelação não fique de mim para comigo, segredo apenasmente meu. Quem sabe o leitor tenha a manha de abstrair desse sonho alguma desverdade que não tenha tido radiância em meu limitado horizonte de eventos. Talvez ainda esteja descomovido demais para refletir razões mais que as do estranhamento. Sim, por fim posso ver outra vez meu rosto. Devo-me atribuir a responsabilidade de construir desse nada, novos traços. Uma vida nova exige raízes novas. Quais? Desse nascimento abissal, desse salto mortal sobre a necrópole universal dos narcisismos presentes e antepassados, chegarei a existir conforme padrões geridos por minha desvontade?


Transcenderei as desrazões pelas quais viviam e transcendiam os antepassados? Morrerei na praia tentando desvencilhar-me do infindável fio de Ariadne do qual passei toda a vida a querer liberdade? Consegui criar, ao narrar este destrauma onírico alguma desmatéria desconsistente, uma frase mais que de efeito literário? Finalmente os olhos entreabrem-se, ufa, estou aqui pronto para banhar-me e sair. Seqüela do sonho essa dor de cabeça. Faz parte do sono despertar. A vida, talvez nova, construí-la da desconstrução.


Trilhar essa estrada, ultrapassar novas pedras em meio ao inusitado dos caminhos. O viajor não terá de ir buscar, montanha abaixo, as pedras roladas, reconduzi-las, faina inútil, mesmice, vida abaixo, vida cima. Sem sair do lugar. O controle de minhas ações não mais no inconsciente. Talvez tenha realizado o objetivo de tio Freud: livrar-me de angústias, traumas, complexos e outras inclusões que me impediam de alçar vôo livre. A compreensão mais ampla da vida que pulsa sob a consciência, torna-me mais leve. Alado, livre do carma sísifico doutras pedras no meio do caminho, vôo. Autóctone, estou pronto para fazer crescer e direcionar, ainda que, relativamente, meu desdestino. Meus passos. Caminhos são também descaminhos.





DEBUTANTE





Não pode esconder a memória da ex-mulher. Imagina a profundidade em que a guarda dentro de si, insuficiente para escondê-la. Lembrança definitiva, longe dos olhares alheios. Uma vez que não mais poderia tê-la perto, guarda-a o mais longe possível, num nicho subterrâneo, inconsciente. Esta festa, também uma maneira de dizer a todos que a vida continua, sem ela. Que não sente sua falta. Quem o conhece sabe que o olhar selvagem guarda uma nostalgia inescrutável.


O casal de filhos adolescentes, as amizades, os vizinhos, a família, quem desconhece que ela vive com outro em outra cidade? Talvez numa distante e inalcansável planetopia, numa estrela de uma galáxia longínqua. A paixão, quem sabe dela, conhece a força do desejo. A entrega faz girar a matéria dos sonhos de que é feita a fugacidade da carne, como um planeta em órbita solar. Passado o tempo, todos se adaptaram à nova situação.


Que idéia a minha vir a esta festa. Os laços de amizade trouxeram-me aqui, em meio a esse arremedo de despojamento, a essa farsa de satisfação, nesse ambiente social de amizades coloridas. Quem conhece o dono da festa sabe: promovesse todas as comemorações de regozijo do mundo, não poderia esconder a falta que ela faz. Mesmo se seu coração fosse transplantado, o novo pulsaria por ela, sempre. Quem a conheceu, fêmea, senhora ímã, libido por vezes vulgar, sabia saber explorar as fraquezas dos homens. Amar, esta palavra mil vezes tola, não tanto que a fizesse esquecê-la.


Quem esteve na festa de casamento, lembra. Aquele homem casou há dezoito anos, com uma jovem de branco com dezessete. Na ocasião ninguém diria: seus sonhos derreteriam como neve, tecido efêmero de seu vestido de noiva. Ao vê-lo agora, anfitrião risonho de tantos convivas, posso notar nitidamente a sensação da falta, a carência dela. Não adianta memorizá-la como vagabunda, egoísta, lascívia daninha, Eva venenosa. Alimentar esse ressentimento, tarefa difícil. Concupiscência inatingível, desejar tê-la companheira de cama, de samba, de lama.


Ahh, quantas pessoas a crêem mulher desprezível. Embarcar no barco sagrado do matrimônio, os juramentos de estar disponível e fiel, como um cão, na riqueza e na pobreza, na alegria e na tristeza. O abandono da segurança, da vida pesada, regrada, revista. Distanciar-se da copa-cozinha cheia de latarias ascéticas. A sala de jantar, a tv 61 polegadas, os programas de domingo, os confortos do ap. da praia. Desdenhar essas coisas definitivas: filhos, parentes, amigos, todas as expectativas que floresceram anos a fios, no calor das noites insones, no suor dos verões, madrugadas a quarenta graus centígrados.


De que adiantou a esse homem sublimar todas as estações vivendo-as como se fossem primaveras? A vadia trocou todas essas coisas sagradas por um filho da puta que nada tem em comum com ele. Vinte anos de vida compartilhada perdidos na noite. Como pode está alheia a todos esses valores, fugir com o amante desprezível, seu canto de cisne.


Enquanto observador subjetivo desse drama, nessa festa a qual não deveria ter vindo, a lembrança dessa mulher sugere que talvez tivesse fugindo do ser miúdo, domesticado, insignificante, em que havia se tornado, no qual desejavam que ela se cristalizasse. Optou pela poesia, pela memória da beleza dos que a conheceram. Recordariam seus traços de juventude, seu ímpeto. Haveriam de vê-la distanciar-se, sair da condição de objeto, a girar em torno da força de gravidade de suas solicitações.


Ao ver todo esse amontoado de convidados festeiros, imagino-a distanciando-se, como uma astronauta a abandonar a gravidade e a segurança do planeta família, substituindo-o pela aventura de outra gravitação. Fosse Narciso, vaidade, desejo de não se ver envelhecer na umidade dos mesmos banheiros, entre o abrir e fechar de gavetas, armadilhas arrumadinhas, dos odores vindos da cozinha. Sair fora, desprezar as tramas assépticas divididas entre goles, através da superfície especular dos copos de refrigerantes.


Ao olhar essa dor, esse homem, essa saudade dela, penso na coragem do gesto daquela mulher, a projetar-se em direção ao inusitado. O desprezo pela rotina, pelo tatibitate, pelos festejos de aniversários. O tempo passado não foi nem nunca será suficiente para ausentá-la de todo o pó desse aglomerado de narcisos. Vejo-a agora como uma rosa azul que brota para a eternidade. Jovem, bela, imprevisível. Mistério imperecível, como se tivesse mudado para algum universo paralelo, imemorável, longe dessa atmosfera de hipocrisia insensível.


O coração apaixonado talvez sofrera por todos eles, extensões da matéria de memória, da carne de sua carne, mas não de sua liberdade. Se um dia ela voltasse, todos mantinham essa silenciosa, angustiada expectativa, todos seus medos, vergonhas, fraquezas e deformidades se derramariam sobre ela como água de cachoeira. Seriam promotor, júri e juiz, como se suas iniquidade e covardia pudessem vir a ser atributos dela. Teriam a oportunidade de jogar em sua cara como estivera errada, ela, que sempre os queimará com sua incandescência. Eles, o pó mútuo da poeira dos retratos, carbonizados pelas intrigas tecidas na teia do larbirinto.


Eles, que estariam sempre presos às mesquinharias pavilovianas da sala de jantar, condicionados pelos confetes e serpentinas das rotinas do vidiar. A filha deles passa próxima, arde ao lado sua cor púrpura, sorrir-me. Vejo-a nela. Tenho dúvidas sobre se conseguirão contaminá-la com seus disfarces, fantasias e máscaras, com essa pantomima bufa e festiva respeitabilidade. Ela chegou, e se foi, com a luz do sol nos cabelos.





B I O I N T E R A T I V I D A D E


C Y B E RV I R T U A L





Na Internete promovo o acesso ao jogo Urna Grega. Longe do fanatismo dos gamemaníacos, jogar fica para quando tiver tempo hábil: no momento, basta visualizar as promessas de multinteração da novíssima realidade virtual. Uma semana depois, domingo, quando os canais livres de TV oferecem apenas atrações para pessoas com oitenta pontos de Q.I., insiro o game no “drive”.


Surge no monitor uma caixa branca, longilínea, com dezenas de incrustações hieroglíficas. Que contém? Ao tentar abri-la, que poderá sair dela? um bebê fossilizado, um anão quadrado, um astronauta alienígena, uma virgem calipígia? Os clic-cliques da seta do mouse em vários pontos da Urna, despertam desesperados ruídos em off. Eles aumentam gradativamente o suspense do jogo.


Zigzunidos se fazem ouvir, toda vez que as tentativas de abri-la fracassam. A movimentação no interior da caixa aumenta, sugerindo uma inquietação feroz, cada vez mais intensa, de pequenos seres, talvez insetos, que se torna mais e mais prenúncio de algum malefício iminente. Ameaças zigzunem dentro da arca, num imperativo cada vez mais impertinente, como se algum infortúnio tivesse prestes a libertar-se.


Dez minutos, a sinistra reverberação dos sons, começa a agir em meu corpo, como se os ossos fossem caixa de ressonância. A cisma dos sons tornando-se insuportável. A tendência do viciado em games é assoberbar-se, toda vez que vence as dificuldades de seguir em frente no passatempo. Infantilmente enche-se de ingênuo orgulho de intelectualismo, quando consegue uma penetração mais a fundo no desvendamento dos macetes do divertimento. Tio Freud explica.


A atmosfera sombria cria intensa expectativa, chega ao incômodo de causar tensões, atemorizar o jogador. Nem sei definir exatamente se os fenômenos acústicos vêm de dentro da mala, ou se estão sendo produzidos a partir de uma interação de ondas sonoras que se propaga a partir de meu interior. Miríades de movimentações velozes aumentam de maneira insuportável os impactos. As coisas chocam-se com agressividade no interior da urna, fragilizando a resistência do material com grande inquietação. As colisões enfurecidas dos supostos insetos não tardam romper as paredes da caixa.


Fico atento, tentando achar o toque da seta do mouse no nicho propício que permita franquear a tampa, abrir a fechadura, conduzir aquelas coisas, cheias de feroz irritação, para fora. Desta forma talvez não fiquem tão furiosas, não sejam causa de tanto mal-estar. A força e a velocidade inverossímeis com que os impactos se repetem, fazem-me acreditar que estão decididos, os insetos dentro do receptáculo, a saírem rompendo, não apenas com os fibras da caixa. Conseguirão talvez, ultrapassar o vidro do monitor e o outro, de proteção da luminosidade da tela.


A tensão chega ao limite: o efeito acústico a provocar no psiquismo, a ressonância de timbres indistintos, como sílabas incompreensíveis, em contato com o labirinto membranoso do ouvido interno. A vibração atinge o sistema nervoso central, nalgum nicho inconsciente. Oscila numa freqüência de intensidade igual à perturbação da onda sonora do enigma da caixa. Essa droga de game deve estar com defeito.


Quero criar uma argumentação racional para desligar a artimanha, não há como. O jeito é sair fora do micro, do quarto, da sala, do ap. Não, não, definitivamente, não vou desligar o micro. As reações neurais deste jogo não vão conseguir fazer-me sair do sério. O que quer que esteja prestes a libertar-se da cripta, é apenas truque, ilusão de ótica, realidade virtual. “Take it easy”, essa tensão exacerbada não se justifica racionalmente.


Esses brinquedos virtuais estão ficando cada vez mais excessivamente interativos. Se é apenas isso, técnica, então por que esta sensação de que seu conteúdo vai liberar alguma estranha malignidade, proveniente, talvez, dos subterrâneos templos milenares de Mênfis? Faz-se ouvir outra vez tênue sinal sonoro. Não sei exatamente discernir donde vem esse aviso inconsciente, essa advertência. Ela previne a proximidade da admoestação, uma adversidade há muito rejeitada pela humanidade, que, com a tecnologia, encontrou maneira de semear-se traiçoeiramente, disseminar-se, uma praga infecto-contagiosa, eletromagnética, radioativa, vetusta. Droga, não há maneira de parar com isto. Essas microexistências mal-assombradas estão conseguindo seus intentos.


Abrem-se na caixa, após grandes, velozes e insistentes choques, orifícios quase microscópicos, da espessura de agulhas finas. Inserem-se, através deles, minúsculos tentáculos, ferrões, não consigo identificar ao certo, serão olhos? que coisas repugnantes são essas? Espio das frestas para dentro, tudo escuro negro, negro escuro, turvo, sombrio. Quinze segundos suficientes: pequenas finas linhas saltam dos orifícios até a superfície da tela do monitor, obscurecendo-a nalguns pontos.


As coisas expandem-se, incham para os lados. As três linhas de seis insetos, como dizer, incestuosos?, de um total de dezoito, ganham nitidez. Malditas abelhas maníacas, três grupos de seis, desgraçadas. Todos estes efeitos, esses recursos da tecnologia virtual, surpreendentes. Os gamemaníacos, exigentes de altas doses virtuais de personagens que interagem em altos picos de ultraviolência, estão sempre atrás de mais novidades no gênero, em busca da supostamente impossível overdose. As leis do mercado aumentam, incondicionalmente as distorções, os fanatismos das personagens em jogo. Essa novidade são demais, como o game “Doom”. Este fará a cabeça de milhões de consumidores por muito tempo. Súbito, cessam as oscilações sonoras. As abelhas, sim, são mesmo abelhas, parecem estar olhando-me. Silêncio, a parte frontal dos corpos pousadas do outro lado da superfície transparente do monitor, perscrutam. Fisicamente estão frente a meus olhos, em franca atividade de mútuo reconhecimento, dezoito pares de olhos fixos em meu olhar.


Um silêncio mórbido se faz ouvir. Mostram-se extremamente curiosas, como seres pasmados com a presença de outro, de outra espécie, do outro lado do vidro, habitante do universo paralelo dos humanos. Só faltava essa: depois dos doze macacos do filme de ficção, agora essas dezoito estranhas abelhas virtuais. Por que sinto-me ameaçado? São apenas insetos. A repetição dos zigzungzunidos anteriormente emitidos por elas, o pulso magnético dos timbres, ecoa no interior da caixa craniana.


O zigzungzunido faz-me zonzo, a mente humana não foi criada para viver simultaneamente em diferentes dimensões. Não consigo ser abelha e simultaneamente humano. Estressante estar olhando esses insetos exteriorizando uma espécie de pulsão para investigar-me, que se traduz nos movimentos bruscos da parte frontal, anterior dos corpos, tamanho natural, roçando no vidro do monitor, como se querendo ultrapassá-lo.


São dezoito abelhas-rainhas? Impossível. Não, com certeza uma delas é a abelha-mestra. A curiosidade tamanha. Tenho a impressão de que estão a conseguir ultrapassar a superfície diáfana: a espessura do vidro do monitor, em minha direção. Não! Incrível, não é apenas distorção dos sentidos: através de pequenos impulsos, quase microscópicos, estão a conseguir, não sei como, dispersar as moléculas dos corpos, fazendo-as fundirem-se com as do vidro do monitor.


Após sumirem, aparentemente, por segundos, tornam a materializarem-se do lado de cá do vidro. De jeito nenhum, não pode estar acontecendo, ilusão, ilusão visual. Ilusão virtual. Impressionante. É como ter acesso ao contato com um bioorganismo materializável via Internet, com, talvez, perigosas implicações potenciais. Suspendo a sustentação do vidro de proteção frente ao monitor, aproximo a palma da mão dos insetos, esmago contra o vidro três abelhas que haviam se projetado para fora.


Olho para a palma da mão, a epiderme sendo penetrada da mesma forma que o vidro da telinha: As moléculas das abelhas se dispersam, tornando-se, súbito, transparentes, ampliam-se para todos os lados, envolvem parte dos dedos, mergulham na epiderme, somem para dentro do corpo. Outras abelhas saem da tela em direção a meus olhos, minha testa. Tento esmagá-las, inutilmente, contra a pele. Elas desaparecem, adentram-se minhas mãos, após intensa sensação de friozinho de freezer.


A luzinha do disco rígido pisca-pisca intermitente, assim como a do drive do disquete. O micro reinicializa por conta própria. O estranhamento da situação faz com que entoe um mantra. O medo deve estar a serviço da vida, do instinto de autopreservação. O medo que paralisa a vida, o crescimento, não interessa. Não posso ignorar que essa pode ser uma experiência secreta de interação biocybervirtual. Há pelo menos duas décadas não consumo nenhuma droga. Cigarro, nem Souza Cruz. Não há possibilidade de estar sob efeito de algum delírio. Um psicólogo, ou psiquiatra, não poderia dizer, com propriedade, que sou uma pessoa que não quer saber de lidar com a realidade. Não sou de criar realidades divergentes, exceto ao escrever ficção. Ommanipandimaahum. Pandimanmium.


Ommanipandimamhummmmhhhh. Após a leitura dos arquivos e do VirusScan, próprias da reinicialização do micro, tento acessar novamente, com grande esperança, a Urna Grega. O jogo sumiu do disco rígido e do disquete. É como se estivesse programado para se auto-deletar, após atingido o intento de interação, vai saber se apenas virtual, ou bioquímica também.


Quem acessou o jogo, uma vez que o tenha jogado, não pode provar juridicamente tê-lo usado. Não se encontra mais no site da Internet donde foi copiado. Agora talvez exista sob outras formas, com outros nomes. Quem o criou, com que finalidade? Que acontecerá com os curiosos que tentaram jogá-lo? Realmente inexistia jeito de abrir a cripta, usando “joy-stick” ou “mouse”. Os toques na caixa serviam apenas para despertar e irritar sobremaneira os insetos.


As perguntas ficam sem respostas. Noventa dias depois, finalmente, talvez tenha encontrado uma pista. Ao passar por uma banca de jornal na Paulista, uma manchete exposta para a leitura pública, chama atenção: Gamemaníacos infectados acusam Interne. Ao ler a reportagem nas páginas internas do caderno de Informática, fico sabendo que os ossos das vítimas mudam do branco para o pardacento, entre o amarelo e o castanho. Os pulmões adquirem aparência de alvéolos sanguíneos, como se fossem favos de uma colmeia.


O vírus provoca uma reação cerebral semelhante aos infectados por HIV: dezenas e dezenas de casulos ocupam a massa cinzenta, dentro dos quais se acumulam líquens que os médicos denominam provisoriamente de fungos e pólens. Não há medicamento adequado, a nova peste virótica Terceiro Milênio, ainda muito recente. “As pesquisas começaram nos países do primeiro mundo”, anunciam os noticiários informativos das mídias.


Médicos otimistas garantem que em dois, no máximo três anos, a ciência terá medicamentos eficazes de combate à pestilência novo século. Novo milênio. Milhares de pessoas agonizam em dezenas de lugares do mundo. Centenas delas dizem ter sido invadidas por abelhas virtuais quando tentavam jogar um game denominado “Insecta”. Outros falam de “Cyberinterchance”. Outrens juram: o nome do tal jogo era “Greek Urn”, terceiros garantem: o game chamava-se “Ballot Box”. Os nomes mudam de país para país, mas os efeitos devastadores do “biocybervirusvirtual” estão afastando muitos gamemaníacos dos sites de jogos da Internet. Pessoalmente estou apavorado. Pelo que sei, os sintomas de respiração difícil, falta de ar, sonhos estranhos, nos quais o sonhador pensa estar a fazer parte de um enxame de abelhas, delirium tremens no qual tornou-se um hospedeiro desses insetos, começam a ocorrer em seis meses.


Casseta! Esses malditos (quem?), malucos que criaram as variantes desses jogos, que estão querendo? Há opiniões que garantem a criação do “biocybervirusvirtual” por grandes multinacionais da farmacologia. Há boatos de que disseminaram o vírus on line, através da rede, uma vez que estão a anunciar, para breve, uma forma hipotética de cura. Não é argumento meramente especulativo, desde que, um laboratório nos EUA, após curto período de pesquisa, passa à produção e comercialização para os Ministérios da Saúde globalizados, dos medicamentos de alto custo que minoram os efeitos físicos devastadores do vírus. É mercado anual para bilhões de dólares.


Investir em infectados, uma mina de ouro. A mitológica metáfora da Caixa de Pandora cibernética, contendo pesares e desgraças, está aberta. Na mitologia grega, criada por Hefesto, a pedido de Zeus, equipada com todos os dons sedutores, Pandora foi a primeira mulher da Terra, a primeira abelha-rainha, versão posterior da antiquíssima deusa-Terra: A que tudo doa, a rica em dons.


Milhões de pessoas emocionalmente castradas em todo o planeta, sentindo-se rejeitadas pela própria mama, substituíram mamãe biológica pela grande prostituta, a Pandora cibernética globalizada, atual “máter” dos microgamemaníacos. Herdeiros do centenário tio Freud vão alegar, talvez, que essa mania por jogos violentos é produto de imagens recorrentes do complexo de castração. Ou da vontade reprimida de fundir-se com a mãe (estuprando-a), para querer o que ela quer, desejar seus desejos, mesmo que o que ela quer e deseje seja a extinção da raça humana como se a conhece hoje.


Alguma mente condicionada a interpretações a tio Freud, dirá: “Na impossibilidade de voltar ao útero materno, mama vem habitar em mim”. Ou ainda: que a figura virtual da abelha-mãe que se constrói dentro de milhares de corpos, caixas funerárias ambulantes, é representação da vontade do filho unir-se à Pandora, mãe primeira, mitocondrial.


Alguns profissionais da psicanálise nunca vão libertarem-se dessas simplificações e reducionismos freudianos? Muitos psicanalistas movem-se por impulsos a Pavlov. Quando lêem um conto, poesia, romance, novela, uma página de diário, um ensaio, começam logo a babar interpretações freudistas, como se a luzinha vermelha dos automatismos interpretativos tivesse sempre acesa. Que dizem eles da nova madrasta da desumanidade: a supostamente democrática e “supermother” globalizada, mama Internet Pandora? Ela tudo doa, faz com que as rotinas mudem para que as rotinas fiquem tão mais iguais.


A cultura dos fogos fátuos pós-neo-modernos se estabeleceu. Mama Pandora continua a colheita milenar, de dentro pra fora de cada larbirinto. Os infectados, livres do tempo, unidos em apenas um rosto humano, crêem-se filhos dela, da mãe Terra, e simultaneamente do espaço exterior. Dizem Ter, pôr vezes, a estranha sensação de estarem nascendo e morrendo, de flutuarem entre o feto e o estertor, a criança e o idoso, ao mesmo tempo em que percorrem a grande e complexa variedade da humana experiência.


Todos os pensamentos, corpos, espíritos, pretérito, presente, futuro, nunca foram ou serão capazes de criar algo mais que banalidades? Garantem: ser humano é apenas isso: simples, comum e fugaz impressão de fugaz perenidade. Esses clic-cliques despertam-nos das trevas do interior desse sarcófago, escuro, escuro, negro, negro, silente, sombrio como o interior de uma cripta.


Esses clic-cliques encolerizam, exasperam. Esse medo de fundo do poço se perde na ancestralidade, os faz ferozes, cegos, implacáveis, destinados a cumprir a sina, desesperada, apocalíptico fado, de libertarem-se de todas as profecias, de todos os possíveis e impossíveis sonhos, memórias e projeções de realidades antepassadas. Tudo que querem agora é sair dessa cripta, fazer a próxima vítima.





CLUBE DE MÃES





Sai de casa cedo. A filha de dezoito meses no colo com problemas de respiração. Dirige-se ao pronto socorro do hospital municipal da Vila Sésamo. As dezesseis horas ainda na fila para ser atendida. Almoça biscoitinhos, bebe refrigerante, enquanto a garotinha suga leite do seio destro. Lembra da filha de quinze anos sozinha em casa. Teme que seja novamente espancada pelo marido, viciado em “crack”.


A garota de tanto apanhar na cabeça, meio lelé da cuca. Leninha atende pelo apelido Lelé. Fica a matutar na vida, olha outras mães na fila. Caras de quem enfrentam problemas para além das forças. Balzacas mal entradas nos trinta, com expressões desalentadas, dos que não têm mais direito à esperança: aparência ressecada, tufos de cãs pelos cabelos. Uma delas, incansável, como se os braços fossem de mola, há horas embala a criança que não dá sinal de vida.


A vida as jogara na condição de mães. Tinham de aprender a lidar com isso, na marra. Permanece matutando, como se descobrindo a pólvora: todas as demais mães se parecem, de algum modo, com ela. Acha banal e estranho. Ninguém as preparou para nada, foram lançadas no mundo, mal saídas da zorra total da praça da alegria, para se virarem de qualquer jeito. A bolsa d’água de outra mulher da fila rompe-se. Ela dá luz no chão, socorrida por outras da fila. A criança nasce morta. Cortam o cordão umbilical, limpam-na na pia do banheiro com papel higiênico da bolsa de uma delas.


Felizmente das torneiras sai água. Não aparece uma enfermeira para ajudar. Talvez estivessem muito ocupadas reclamando dos salários, atendendo outras urgências nas condições precárias do hospital. A mulher embala a criança, entrebraços, como se estivesse viva: soluça a emoção da perda. As outras comovem-se, apesar de acostumadas a situações semelhantes. Marina olha na mulher marcas de espancamento no rosto. Talvez tivesse levado chutes na barriga.


O corredor do hospital, uma casa de horrores. E se a criança estivesse viva? Crescesse, ia se lembrar de que tinha sido espancada quando ainda nem sequer havia nascido? Melhor estar morta mesmo. Há males que vêm pra bens. Busca, sempre que pode, ser otimista. Viu num programa de tv: para o pessimista meio copo d’água quer dizer meio copo vazio, para o otimista, ele está meio cheio.


A mulher apresentava o programa risonhamente cacarejante, a conversar com uma ave postiça ao lado. Dizia que na vida se deve pensar sempre da melhor maneira, “pra cima”. Sorria outra vez, sempre cacarejando, desbregada, das piadas do papagaio verde-amarelo. Não sabe como, mas busca vê em toda dificuldade, a providência atuando em favor das vítimas. Não fosse assim, como güentar tanta penúria? O marido anterior, trabalhador, carteira assinada, morto pelos traficantes: recusava-se a consumir drogas e a vendê-las. Esse outro, fraco, sobrevivente, que espanca a Lelé, consome. E vende.


Olha a filha no colo com olhos mareados. Pensa nas dificuldades que terá de enfrentar, nas noites e dias sem fim vivendo de expedientes. Considera com piedade a garotinha: o coração palpitando no descompasso. Não quer que ela cresça igual a Lelé, sujeita aos espancamentos, sem outro futuro que não o da adolescente excepcional, atoleimada.


Lelé ao nascer tinha sido motivo para ela lutar pela vida, uma tábua de salvação a encorajá-la no mar de incertezas. Vai usar também essa inocente criatura como muleta pra motivar a vida? Que direito tem de fazê-la penar sobrevivência afora? Ser mãe é isso que fez com a filha? Sem escola, teto de zinco, sem juízo, mal alimentada, existe pra fazer companhia. Sem ela sentir-se-ia mais sozinha, desamparada.


Ser mãe talvez seja mais que parir filhotes no mundo, combustíveis do mercado. De memória lembra a fala da mulher do programa de tv dizendo: “Coisas positivas acontecem com gente positiva”. Dito isso, cacarejava outra vez, em direção à ave plastificada, na contracena. Talvez não soubesse nada de gente como ela. Adianta ser positiva, se lhe negam condições mínimas necessárias para exercer cidadania?


Sente-se, mais que nunca, indefesa, dependente, nas mãos dos outros. Sem condições de proteger a filha dos perigos do larbirinto doce larbirinto: dos males das ruas, das lesões. É justo criar essa menina para estar à mercê de tudo quanto é coisa ruim? Compreende, súbito, que botar filhos no mundo nessas condições, quer dizer abrir caminhos para faze-los sofrer, almas penadas no inferno da necessidade. Contempla a filha com grandes olhos compreensivos, piedosos. Os homens que desceram na lua diziam que a Terra é azul. Não é: a Terra é cinza. A ternura da emoção verte-se em fluxo, as gotas pingam, inúteis, pelas faces. Aconchega o rosto à esquerda do peito, soluça várias vezes. Os dedos da mão direita pressionam a indefesa cabecinha para dentro dos panos. Quer reagir, respirar, busca virar o pescoço, o rostinho, para fora do sufoco. Até que não mais há sinal de vida.


Um vazio do tamanho da alma do mundo abre-se nela. Os sofrimentos amadureceram a sensibilidade. O silêncio transforma-se em oração: lágrimas alimentam o perdão. Um lamento animal liberta-se, de repente do fundo do coração, traduz toda a mágoa, lucidez e ternura: a criança livre dos malefícios do mundo. A enfermeira vem dizer que hoje ninguém mais vai ser atendido: “Voltem amanhã, cheguem mais cedo”.


Sai do posto de atendimento médico. Na esquina as luzes de néon faíscam em clima de aventura no ar quente da noite. O maldito sapato apertado esfrega-se insistente no calo do calcanhar do pé direito. Ela nem sente mais dor. Os dedos comprimidos, ferem-se. Que é a dorzinha de um calo, de mil calos, comparada à intensidade dessa chama? Ele queima o coração, a cabeça, o estômago, as pernas, os braços. Nada é mais ela: o rosto, os olhos vêem o mundo com outro sentimento do mundo.


A condição de mãe, mulher que doa a vida, saqueada. Os desejos, um pântano mortal, sem acordes. Acredita-se parte mínima dessa Terceira Guerra Mundial: lenha miúda, combustível barato pra fazer arder a imensa fogueira dessa grande noite a consumir-se. Dessa grande noite, mais treva do que as trevas.


Abafa os soluços, sim, sem arrependimentos. Acredita não ter direito de fazer crescer uma criança para fazer companhia ao hábito, pessoal e coletivo, de sofrer as aflições, o desdém, as incertezas. Nada de fotografias, diz para uma vizinha que quer documentar o derradeiro sorrisinho, as azinhas do mais puro branco.


A vida da criança não repetirá a dela. Secou o pranto antes mesmo que mareasse o lacrimejar. Pela última vez observa o rosto, enquanto deposita sobre o féretro um buquê. Repete de si para consigo, na intenção de orar por ela, tímido e último adeus: Essas flores, amarelas e medrosas, não farão parte da poeira dos retratos.





A HISTÓRIA FANTÁSTICA DO


APOSENTADO ESDRAS ESFELUNTIS





Tudo começou com uma passeata de aposentados reivindicando reajustes salariais. Esdras Esfeluntis, ex-corretor de túmulos e mausoléus de moderna necrópole, estava na lista para falar numa assembléia de rua, com o apoio do sindicato dos bancários que dirigia a manifestação geral. Esperou sua vez com extrema paciência. Afinal, havia suportado incômodos e infortúnios durante toda a vida, com resignação e tranqüila perseverança.


Não seria agora que a ansiedade por dizer algumas palavras poderia tirá-lo do sério. Quando, afinal, anunciaram seu nome, subiu as escadas até o palanque, pegou o microfone, e o imprevisto discurso ecoou pelas caixas de som, do alto do tablado improvisado na carroceria de um caminhão, na praça central da cidade.


Havia na manifestação dez mil matusaléns, segundo informações da PM, vinte e cinco mil na contagem dos órgãos de imprensa. Os idosos estavam realmente revoltados com a falta de poder aquisitivo de suas aposentadorias, dos salários quase sem dinheiro. Esdras inicia o discurso sob certa expectativa:


— Descobrimos afinal, meus caros amigos, que podemos conseguir algumas coisas quando unidos. Sozinhas, nossas idéias são frágeis folhas de outono conduzidas sem rumo ao sabor do vento.


Quem conhece Esdras não espera ouvir dele nenhuma proposta inusitada. Algumas pessoas de seu conhecimento se perguntavam:


— Por quê, logo ele, pediu a palavra?


— Por que temos de implorar para fazer valer nossos direitos? Por que não são reconhecidos naturalmente? Estamos sempre empenhados em lutar contra injustiças, mentiras e os privilégios de poucos que sentem prazer em nos escravizar.


O discurso ganhou certo interesse na diversificada platéia:


— Mesmo agora, depois de aposentados, temos de vir às ruas clamar pelo mínimo. Por que até o pão, o feijão e o café com leite nos são roubado.


— Aonde está querendo chegar o Esdras, meu Deus do céu”, comenta uma senhora dirigindo-se ao marido.


— Vamos exigir mais, recuperar mais. Muito mais que migalhas materiais. Vamos contestar a injustiça mais vil de todas, aquela que nos lança na sórdida incerteza da mortalidade.


Desta vez ouviram-se sorridentes zombarias abafadas. Risadinhas incontidas, sorrisos amarelos, e interjeições de surpresa, tipo:


— Que quer ele dizer com isto?


— O Esdras pirou?


— Ingeriu quantas doses a mais?


— Ele é mesmo alcoólatra?


— Não compreendem? Emociona-se Esfeluntis, unidos podemos mudar a história, impedir o declínio de nossas vidas. Quem estará contra nós na greve geral contra a morte?


A multidão aplaudiu:


— Chega de morte, diziam alguns.


— Abaixo a sinistra, gritou alguém.


— Queremos viver: viva a vida, disseram outros.


Em dez minutos começaram a aparecer cartazes com slogans nunca vistos antes em movimentos coletivos de ruas e passeatas.


Os meios de comunicação marcaram presença. Fotógrafos, jornalistas curiosos e as câmaras dos jornais tvvisivos mostravam certo interesse. Afinal, aquela estranha intervenção poderia gerar alguns segundos numa reportagem nos jornais noturnos.


A reivindicação, em pouco tempo se tornou nacional. Em alguns dias, global. De Milão, na Itália, surgiu o refrão:


— Mudará, mudará a nossa sorte. Não queremos, não queremos mais a morte.


O protesto ganhou mundo via noticiários. E um “site” na Internet.


Velhinhos que há alguns dias mal podiam andar, dançavam agora, em plena rua, ao som de músicas estilo “trench-town” e “rock pauleira”. Nos hospitais, doentes terminais, levantavam-se como se movidos por inusitada energia, magicamente revitalizados. As farmácias e os abrigos da terceira idade foram perdendo clientes.


A indústria e o comércio de produtos geriátricos faziam promoções com descontos absurdos, de até oitenta por cento no preço dos genéricos, na esperança de terem seus consumidores de volta à caixa registradora.


As empresas funerárias fechavam as portas por falta de clientes. Os quase moribundos saíam dos leitos pedindo uma birita para abrir o apetite, e devoravam iguarias refinadas, ou simplesmente feijoadas, picadinhos à paulista, mãos de vaca, tutus à mineira, angus à baiana, churrascos à gaúcha, ou buchadas de bode, conforme os condicionamentos alimentares regionais.


A morte, flagrada num banco de uma pracinha de subúrbio, de madrugada, procurava, em vão, lê a página dos obituários. Nenhum anúncio de mortos. Dia seguinte a sestra pagou uma agência de publicidade para criar uma mensagem de página inteira, publicada nos principais jornais, cancelando seus ruinosos compromissos por mais trinta dias.


Em São Paulo conhecido político demagogo, para obter votos dos eleitores com mais de setenta anos, prometia em campanha eleitoral, um virtual metrô especial: o fura-avenidas matusalênico, só para os idosos. Enquanto isso, os jovens universitários se mobilizavam no sentido de impedir que “esses malditos cheios de cãs”, prosseguissem impedindo a natureza de cumprir suas determinações naturais.


Alegavam os supostos mancebos, que a população cresceria horrores, não haveria recursos naturais capazes de alimentar toda essa gente ancestral. Os haveres do Estado, em franco processo de escassez, estariam em vias de decretar-se Estado falimentar.


Um programa de debates tvvisivo marcou data para uma mesa redonda com representantes dos dois grupos. Na porta da emissora alguns jovens agitam faixas com dizeres: “Gagás FDP, vão se danar”. Está na hora de ir-se embora, queimar no inferno”, “O capeta está sentindo a falta de vocês”.


Esfeluntis, meio desanimado, tentava levantar o moral dos companheiros, que, com suas faixas repetiam os “slogans” contra a Senhora da Foice. Mas aquele pessoal bem vestido, roupas de grife padronizadas, tênis com tríplices palmilhas alcochoadas, alguns visivelmente drogados, outros barbudos, cruéis, bonitinhos, ordinários e malvados, porém calorosamente jovens, queriam as coisas como sempre foram. Eles acusavam os assalariados de pretenderem esvaziar os recursos públicos com o pagamento prolongado de suas aposentadorias, e de inflacionarem o mercado de trabalho. Eram moços, tais mudanças entravam em conflito com seus interesses no mercado inflacionado de carência de ofertas de trabalho.


A Ceifeira aproxima-se, curiosa da movimentação, pairando a alguns metros do solo. Esfeluntis, chamando-a respeitosamente de Senhora, estende-lhe os braços enquanto abre caminho em meio ao grupo de estudantes. Aproximando-se dela, pede: Por favor, leve-me daqui. Nesse momento a Aziaga estende o braço esquerdo, e o corpo de Esdras parece, aos olhos estupefatos dos presentes, esticar-se em direção a ela, como se fosse elástico. Logo depois distanciou-se, sumindo numa luminosa esteira em direção às estrelas. A vida, os sonhos, a carne ilusória da rotina: Tudo voltou ao hábito condicionado da normalidade. Ao procedimento habitual.


Pouco depois, uma senhora sexagenária, com ares de simulada preocupação, comenta com um senhor ao lado, provavelmente o marido:


— Mudar alguma coisa nesse mundo, é mesmo muito difícil.


Ao que o cidadão em resposta, pergunta:


— Deus. Aonde estará o Esdras agora ?











A D E C I S Ã O





Allan pega o fuzil. Limpou a arma no dia anterior. Abre a gaveta da escrivaninha, pega o pente de balas, insere no carregador. Olha pela mira telescópica. Pessoas transitam pela calçada do outro lado da rua. Bete em minutos estará saindo do edifício defronte. Não está preocupado com as repercussões policiais. Quer mesmo acertá-la, se possível entreolhos. Se não pode ser dele, terá garantido que não será de mais ninguém. Paixão, coisa estranha, emoções inusitadas. O mundo não faz sentido sem ela.


A família, a imprensa, vão interpretar a atitude como mais um crime de outro urbanóide pirado, desses que matam pessoas em lanchonetes, alunos e professores em escolas, ou abatem pessoas covardemente, de detrás de uma janela de apartamento, incógnitos, em cima de torres ou prédios. As vezes apenas para terem garantidos trinta segundos na mídia do horário nobre dos noticiários da tv.


Não interessa a interpretação de terceiros. Compreende estar no direito de defender a atitude limite. As emoções do gesto inusitado se desdobram, enfáticas, no reduzido espaço físico da mente. Testa outra vez a telemira do AR-15. Aponta para a testa de uma vizinha. Ela conversa com duas outras senhoras sexagenárias no pátio do prédio donde Bete está prestes a sair. Pelo menos você não chegará à ridícula decrepitude física e mental delas, justifica-se: Acordam mais cedo para passar mais tempo cacarejando nesse poleiro de comadres, transparente e idêntico.


A ex-namorada trabalha como secretária num prédio próximo, numa empresa produtora de vídeo-teipes, no horário de das dez às dezoito horas. Deve estar saindo para o trabalho, quando muito, as nove e trinta e cinco. Está na hora de saber o que existe do outro lado dessa vidinha besta. O plano é simples: acertar Bete, em seguida dirigir o cano da arma para o céu da boca e disparar. Que raios de inferno ou coisa parecida vai encontrar do outro lado, se existir outro lado, é mistério para a seqüência dos fatos decifrar, ou não.


Qualquer desfecho será melhor do que esse desprezível tédio sem Bete por companheira. Talvez esteja sendo covarde. Poderia fazer a viagem para algures sozinho. Mas numa coisa inaudita, terminal, limite, como a morte, prefere estar acompanhado. Se é que vai estar mesmo, não tem certeza, está pagando para ver. Fodam-se os juízos de valor dessas sensibilidadezinhas fabricadas pelas telenovelas. Se inexistir qualquer transcendência, também está normal.


Não aceita que seu corpo, suas sensações, sua sensualidade, sua nudez, seus desejos, esteja dividindo com outro marmanjo que não ele. O resto é acadêmico. Está doidão. Cheirou uma dúzia de linhas de coca de boa qualidade durante a madrugada. Surpreende-se com a lucidez que permeia a intenção criminosa. Puta que pariu. Sente-se um grande filho da mãe com uma psique destorcida, exacerbada, por estar tão fanaticamente convicto da utilidade dessa violência prestes a se consumar.


Aqui está ela na mira, afinal. A ansiedade extrapolando, na cavidade torácica o coração pulsa depressa. Do 9º andar do apartamento, mira, com a convicção do atirador ex-campeão de tiro do regimento em que serviu no exército, a testa, o coração, o coração e a testa da mulher. Após a distância focal bem ajustada, fixa a pontaria na região cardíaca, sede dos sentimentos, das emoções e da consciência. Deseja ver partido também o coração dela: a aurícula e o ventrículo direito, o ventrículo e a aurícula do lado esquerdo, o sangue venoso e o sangue arterial a escorrer por sobre a cavidade, a camisa transparente, os seios salientes. Sim... Agora o indicador da mão direita pressiona a peça propulsora, a fim de efetuar o disparo.


Magoado e triste, o dedo roça inquieto o gatilho da arma, ajusta pela última vez a mira entre os seios rijos, empinados e, finalmente, dispara para o alto. Chora, a princípio sem saber por quê. Talvez alguma seqüela da droga. Constrangido, cansado, treme e soluça, o nariz escorrendo. Há dias o sono e o sonho o haviam abandonado. Algum tempo depois parece compreender a motivação do mal estar.


O pranto agora manso, lágrimas quentes, íntimas. Lamenta a morte das utopias nessa Terceira Guerra Mundial. Pranteia a agonizante escuridão do coração humano. A proximidade de Bete mudou muita coisa na vida do ex-militar. Lembrou de uma poesia que ela traduzira de um autor “beat”. Busca avidamente os versos como se fosse a coisa mais importante da vida. Precisa deles. Lê que o amor é o medo de ratos espalhando bactérias, metáfora das folhas úmidas de outono, mareando nos cascos dos barcos num píer marítimo ao entardecer. Compreende que as sensações que julgava suas, apenas, há muito faziam parte das percepções coletivas de outras gerações, através das eras. Ele também, uma vítima dos assassinatos aceita nesta vida.


Os versos fluem para dentro da mente como bálsamo, com propriedades medicinais até então desconhecidas. Nunca acreditou que palavras pudessem insinuar esse efeito atribuído a medicamentos de laboratórios.


O amor balbucia, é como pedaços da essência de Buda congelados e fatiados microscopicamente/Em morgues do Norte/Pomos do pênis a ponto de semear. Após os versos sentiu-se intensamente cansado, alongou-se no chão com o livro aberto sobre os olhos, e dormiu profundamente. Pela primeira vez sentiu a suavidade da recompensa de tê-la amado. Mas também o travo da opressão dos ditadores: o sangue de mil gargantas cortadas escorrendo em suas mãos como grãos de areia.


Ao despertar na madrugada do dia seguinte, sente-se excluído do rebanho humano. Como se as semelhanças com os de sua espécie houvessem diminuído. Apenas o futuro, ainda indefinido, poderia inscrever-se em seus sentidos, o passado parece estar distante, como se sua influência não contasse.


Os ressentimentos e o romantismo haviam desaparecido, como uma química obsoleta. Os dias foram passando, Allan surpreendendo-se com o dom especial e singular de saber interpretar com precisão a maneira de ser das pessoas, de prever a seqüência anterior e posterior de suas existências, a partir do momento em que estabelece contato com elas.


As percepções de suas existências oferecem-se à percepção extrasensorial aguçada. Pode ser a partir de um simples aperto de mão. É como se pudesse acompanhar o continuum de eventos das vidas delas, apalpar as possibilidades de que são feitas e os limites, as frustrações, o emaranhado de enredos dentro dos quais se movem, as motivações que as fazem levantar da cama todos os dias e dirigirem-se, através das teias tecidas pela rotina de suas subjetividades, a seus empregos. A coisa toda causa uma certa angústia.


Como se não bastassem as percepções de si mesmo, agora essa facilidade em perceber a essência na aparência, de desvendar com nitidez as máscaras com que, por vezes, uma aparência x encobre uma essência y. Basta olhar para traduzi-las. Ao ouvi-las, confirma-se de modo redundante, definitivo, todas as encenações que foram, são ou serão capazes de representar.


Está na posse de uma espécie de dom de profetizá-las. É um poder. Não gosta dele, mas precisa afeiçoar-se ao hábito dessa vidência inusitada, parapsi. Passados alguns meses, nem mais precisa do toque de mão. Basta ouvir ou vê-la, cada pessoa, para definir de maneira precisa seu caráter ou falta de.


Aprende a ser mais complacente para com essa gente com quem convive familiar e profissionalmente. Gente como ele, que cruza nas ruas ou conhece através de pessoas próximas. É um dom terrível. Que fazer? Falar dele significa submeter-se à ignorância extrasensorial de quem não sabe compreendê-lo. As pessoas só podem compreender e aceitar o que está nelas, posicionado a partir de seus condicionamentos, de suas vivências, direta e indireta.


Mesmo que pudessem aceitá-lo e compreendê-lo por momentos, na seqüência de suas vidas tenderiam a achar que há algo errado nele. E há mesmo. A avaliação dos padrões pessoais e coletivos de agir e pensar, é feita sempre levando-se em conta a quantidade de cabeças de um rebanho, a opinião média. Ele possui uma qualidade diferenciada, é melhor que saiba usar com parcimônia esse dom, ou poderão, por senti-lo diferente, voltarem-se contra ele, marginalizá-lo. Ele, sempre tendente a sentir-se um outsider, rejeitado.


Normalmente as pessoas são mais rígidas, estreitas e cristalizadas do que aparentam ser. Desta perspectiva a realidade delas parece estranha. Não compreende porque se abandonam a rotinas, como insetos se permitem a atração cega pela luz artificial. Não gosta de ser o profeta delas, mesmo sabendo decifrar, com certa facilidade, o futuro pessoal e coletivo do mundo em que trabalham e vivem. Seus traços e gestos são como ideogramas, agora fáceis de decifrar.


As pessoas não gostam de sentirem-se decifradas. Crêem que mantêm uma reserva de essência que sabem esconder num lugar onde, presumem, só elas têm acesso. Essa condição estimula a fantasia e o romantismo, atributos sem os quais parecem ainda mais perdidas. É possível que essa percepção paranormal que o faz diferente, seja, realmente, comum. Uma reação química do cérebro acessível a todos. Rejeitam, afastam de si a possibilidade de gostar desse privilégio no cotidiano de suas vidas.


Ele não consegue rejeitar essa dádiva de viver próximo à intimidade de todas as feições, mesmo que isso o torne um personagem invulgar, raro, extraordinário. A solidão deixa sangrar. Acostumou-se: é o preço que tem de pagar pela diferença. Aceita. É como se pudesse acessar o coração das trevas, a matéria primeira, mistura de silêncio e rumores, uma experiência com a qual estar a aprender a conviver melhor.


Complexo de rejeição não vai refrescar nada. Esses atributos parapsicológicos, precognição, retrocognição, poderiam ser provisórios. Vir a ser uma pessoa comum outra vez... Não gostou dessa possibilidade. Poder estar tranqüilo, um americano do sul sem problemas, pode ? Não.


Aqui estão as pessoas do Terceiro Mundo, do Primeiro, de todos os níveis, subníveis do grande oceano da sociedade global, fingindo saber que o melhor caminho para elas é essa quase passividade interior, tipo atividade de garimpeiro de Serra Pelada: pouco ouro muito barro.


A impressão de que não sabem para onde se dirigem, como e por quem são usadas. Não quer ser compassivo, mas ao olhar para elas, é como se soubesse que não sabem para onde estão indo, por isso mesmo passam a impressão de que qualquer caminho serve. Quanto a si, vai saber lidar com a nova condição? A realidade íntima de tantos outros seres a fazer parte de sua intimidade. O futuro dirá. O futuro pertence a todos. Queira ou não, sabe que não tem como fugir dele. Nem quer.











MARTINHO MOSCA





Ninguém dava a mínima para a habilidade de Martinho agarrar moscas em pleno vôo, os dedinhos superágeis. Estende a mão, vlapthvlupt, aqui está o inseto preso entre o mindinho e o seu vizinho.


Modera um pouco a pressão e fica a fixar ela fazer zigzungzingzun, raivosa, ansiosa por navegar. Ao abrir dos dedos de Martinho, o inseto sai zanzando, zigzungzingzunindo para todos os lados, para cima, para baixo...Pronto: aí está ela presa outra vez entre o indicador e o médio da mão esquerda, assanhada, em dura afronta, mas amedrontada, batendo asinhas, tentando sair fora.


Uma e outra vez, um e outro parente observa, curioso, a criança de seis aninhos incompletos, caçula da família, abrir e fechar os dedinhos, prendendo e libertando os esquizóforos.


Tentam fazer a mesma coisa sem resultado. A irritação conseqüente pelo tentativa frustrada, faz com que achem que tal habilidade é defeito de caráter, deve ser reprimida.


— Que coisa feia, onde já se viu, esse sestro, mania mais besta, menino mais mal educado. Afinal, mosca é apenas uma coisinha nojenta, suja, lixo, o santo graal das bactérias da xila.


A mãe, do cismar começou a reprimir. Tapas nas mãozinhas do menino, exclamações gritadas de reprovação e ameaças. O garoto chora inconformado. Pela quarta ou quinta vez sucessiva lá vem a mama, mão espalmada, descer o malho no garotinho.


Dia seguinte a boa senhora, mãe de Martinho, levanta da cama balançando a cabeça, dando pulinhos para os lados, como que tentando tirar água do ouvido. Dona Diná, mulher de seu Honório, o vizinho do apartamento em frente, sussurra no ouvido da amiga, quando ambas assistiam a novela mais “must” do momento: A Indomada.


— Não se avexe não, mulher, faz xixi no copo, pega um conta gotas, e pinga dentro do ouvido, logo fica boa, garanto.


Seu Morais, o marido, dia seguinte usa uma pinça de ponta comprida e fina. Com uma lente de aumento busca focalizar, no interior do ouvido da mulher, a tal coisa que causa celeuma e mal estar. De nada adiantou. Dirigiram-se ao posto médico.


No serviço de atendimento de emergência da Santa Casa, doutor Lima fez a assepsia de praxe. Limpou com água oxigenada o orelhão roxo e inchado. Aplicou uma injeção de analgésico, receitou antibiótico. Garantiu que em uma semana, se tanto, estaria tudo normal, a infecção debelada.


Uma semana depois o lado direito do rosto de dona Celina estava todo arroxeado, inchado, doído, gangrenando-se. Vertia pus. Duas semanas bastaram: saiu dessa para a melhor.


Passaram-se seis meses, ao longo dos quais a família buscou adaptar-se à nova condição. Órfãos de mãe, os três filhos do casal ficaram sob os cuidados de tia Camila. Sabe-se lá porquê, instinto de preservação talvez, ela ignorava a estranha habilidade do menino em acompanhar com os olhos o zigzungzingzunido tresloucado das moscas, como se os dedos tivessem imantados para pegá-las. Na vista dela, no café do jantar, depressa prendeu duas ou três, quase de uma vez.


No outro dia o pai cismou com a besteirada do filho. Começou a achar a coisa muito mórbida e nojenta. Sem deixar barato ameaçou: "Se não parar com isso vai levar uma surra, moleque".


O garoto agiu como se não fosse com ele. Olhou nos olhos do pai e sorriu inocente, como quem diz: Pôxa, pai, você quer me tirar a única diversão que tenho, isso não é certo, você não acha? Martinho tinha em mente não provocar o patriarca ameaçador.


Tia Camila limpava o lugar, esguichava SBP no porta-detritos, nos sacos de lixo, na área de serviço, e na grade que separa o terraço da área aberta próxima ao matagal. Mas os insetos penetram, ignorantes dos cuidados da tia.


De noite os borrachudos tomam conta do lugar. De dia, o zigzungzingzunido das besneiras inferniza a vida do conjunto popular recém inaugurado, parte do Projeto Pingapura do ex-prefeito de São Paulo.


Martinho, chateado com a falta de fazer coisa melhor, aproximou de leve a mão direita do ouvido, esticou o indicador e logo prendeu, na ponta do dedo, uma e outra danada que estavam zigzungzingzunindo incômodas. Prensou-a devagar entre a ponta do dedo e a superfície da pele, sem machucá-la. A seguir, soltou e pegou rapidamente o inseto, depois outro e outro mais, prendendo e soltando-os, na seqüência, entre o médio e o indicador.


Seu Morais, de tocaia, flagrou a criança no passatempo, no vai-e-vem, no sobe-desce, no abrir e fechar entrededos. Cumpriu as ameaças, desceu a raquetada no rosto do menino, começou a bater os nós dos dedos das mãos, várias vezes e com força, na cabeça da criança. Apertou os dedinhos indefesos entre as manoplas. Agitou fortemente, e repetidas vezes, o pulso do guri numa das bordas da mesa, quebrando-lhe dois dedos da mão destra.


A mão e o pulso incharam, a cabeça doía. Seu Morais terminou a seção de sadismo ameaçando: houvesse outra vez, o garoto haveria de se arrepender de ter nascido.


Dia seguinte, domingo solar, depois do almoço, o chefe de família está a espairecer sobre a cama de casal, enquanto não chega a hora de ver o vídeo-teipe do jogo de futebol pela copa João Havelange, Corintians versus Palmeiras.


Martinho levanta-se do colchão inferior do beliche, dirige-se até a sala de onde fica olhando, pela porta entreaberta, a cara do pai meio adentrada no travesseiro, de bruços.


Passam-se alguns minutos, uns poucos insetos começam a festejar-lhe a nuca, obrigando-o a deitar-se de barriga para cima, tangendo-os, quando em vez, com as manoplas. A modorra fez com que dormisse.


Os hexápodes foram chegando, chegando. Começaram a fazer evoluções circulares a apenas uns cinqüenta centímetros acima do rosto de seu Morais, zigzungzingzunindo. A dança dos insetos surtiu certo efeito hipnótico. Adormecido sob o olhar de Martinho, meia hora depois, quinze, dezesseis, vinte, vinte e sete, quarenta e quatro, setenta e nove, noventa e três, cento e oitenta e nove, trezentos e trinta e seis moscas-domésticas foram gradativamente se destacando da nuvem para dentro dos orifícios cranianos de seu Morais.


À quantidade primitiva, vêm agora se juntar outras dúzias de varejeiras que forçam a entrada garganta abaixo, pela boca entreaberta, pelas fossas nasais ouvido e olhos do pai, sob o olhar condescendente do guri.


A agonia durou pouco. Ele bem que tentou reagir. Mas o rosto, as artérias do pescoço, mais pareciam um balão avermelhado inchando sob a pressão de uma desesperada ansiedade por respirar. Mas o ar não entra, não vem, não vai, não sai. A ele escapa o que está acontecendo e por quê.


A próxima cena na qual se vê protagonista, repete-se agora no zigzungzingzun de moscas a sair-lhe da boca, ouvidos e nariz. Os orifícios inflacionados pela concentração inusitada dos insetos estão agora apenas escancarados, horrorizados, patéticos.


Ele enxerga tudo de fora do corpo. A situação estranha e inusitada, a careta desesperada dos condenados aos nichos infernais das faíscas quânticas (das almas), lugar onde o corpo humano não pode ser visível. Impossibilitado de intervir, de fazer alguma coisa, descobre ter transposto o muro das lamentações, entre diferentes dimensões do existir.











OS ETS DA BAIXADA SANTISTA





Meu nome é Ariel Calibã. Sou caiçara, mas nunca fui malandro nem vagabundo. Prazer em desconhecê-lo. Prazer certamente mútuo. Você está a me desconhecer indiretamente, ao acaso, através deste texto. Talvez nunca venhas a conhecer-me pessoalmente. Apenas uma questão de apertar as mãos. Conheço-te tão bem como a mim mesmo: a forma bípede, a essência pensante. Pelo que sei da média das pessoas, você é individualista, vaidoso, com um ego em expansão e acionista majoritário (és milhões) da multinacional denominada Propriedade Privada Subliminar S/A.


Vou me expor e à minha família extraterrena. Quero estar certo de que saibas ser tão previsível como outro ser de sua espécie. Você é um microcosmo desta realidade, acredita ser através da ilusão da individualidade que segura sua cabeça. Estranha a realidade básica de uma pessoa ser apenas e suficientemente uma ilusão. Na certa você mesmo já sabe: a diferença entre você e o resto do mundo está no detalhe da impressão digital.


Uma vez digeridas estas linhas, apesar da curiosidade, nem pensarás em aproximar-se de minha colônia alienígena. Não desejo ser simpático. Se queres uma amizade famanaz, uma egomassagem, sentir-se importante, embevecido, pára agora de lê estas frases. Vá e ligue a tv, faça uma empatia pertinente. Ela está cheia de personagens permissivos, disponíveis a serem, ainda que provisoriamente, você.


A dinâmica da telinha vai logo transmitir aquela sensação de movimento e deslocamento psi muito a seu gosto. Logo estarás dentro e fora dos acontecimentos do vídeo, aqui e algures, de uma só vez. Não é um barato a mágica da identificação coletiva através do monitor?


A comunicação emocional prescinde de fonemas. Como um bebê, você é manipulado facilmente. Mas nunca vais perder a fome de olhar as notícias do dia, as expressões faciais de raiva, medo, dor, volúpia, ultraviolência, da telinha. Elas te aguçam o apetite geral. E você aceita o jogo passivamente, como se fosse um vegetal.


A telinha fornece tudo. Sua condição psicológica está atrelada a essa realidade virtual. Você está condicionado a ser agente de todas as ações da poltrona da sala de jantar. A ilusão de que está participando de tantas coisas te faz ignorar que, de fato e de direito, não participas de nada.


O tubo de raios catódicos desse espelho universal maravilhoso satisfaz suas necessidades psi em todos os detalhes. A geladeira, o banheiro, o quarto, o micro, estão tão pertos, não é?


— Espelho, espelho meu, haverá alguém mais completo e (in)dependente do que eu? Você alimenta a ilusão de que é livre, mas sua mente está plugada por controle remoto. Não é uma beleza ser virtual? Nem é preciso dá-se conta disso. Os neurônios aos milhares, milhões, logo encontram uma corrida de carros, de motos, um jogo de tênis, basquete, futebol, vôlei. Uma jogada de efeito e você terá feito uma ultrapassagem heróica, um gol de placa, uma cesta de três pontos, saltado de uma enorme plataforma. No tênis, por três vezes seguidas terá feito pontos de saques.


Quem sabe dê de cara com Pavarotti, sinta-se grande e imbatível tenor. Seu gênero é comédia? Ali está o dvd que alugou. Deseja sentir-se dramático, profundo, manipulador? Hamlet, Édipo, ou o mocinho que vence o monstro no filme de terror? Tudo em cima, a locadora fica a cem metros. O mundo das sensações virtuais é seu, sinta-se à vontade. As encenações de terceiros estão sempre à sua disposição. Você é um ser virtual e nem precisa se dá conta disto. Para quê?


A carne da vida é mesmo feita de sonhos. Não vá perder seu tempo avaliando com mente crítica, as causas, pessoal e coletiva, do atual estado das coisas. Ora, pensar está démodé, é brega, não é lazer. Quem deseja vencer na vida tem de pensar grande, ser radicalmente otimista. Os livros sobre pensamentos positivos são grandes bestsellers no mundo editorial. Os editores estão fixos, vidrados, hipnotizados neles. Literatura a eles se resume, e ao Paulo Coelho.


O exercício heurístico da melhor literatura você esnoba, não é verdade? Você é um cara moderno que sabe das coisas, não perde tempo com bobagens literárias. Você nem desconfia, mas está cego, é personagem do Ensaio sobre a cegueira do Saramago, mas esse tipo de empatia literária você não quer nem precisa fazer. A tv é seu guia de cegos. É fácil. Quem manda não existir literatura por controle remoto? Não é problema seu.


Desafio você: permita-se um pouco de verdade em meio à farsa de seus sentimentos virtuais apatéticos. Nesse mundo judicioso, você será capaz de dar a volta por cima na lógica dos bucaneiros que plugam sua alma, seu subconsciente, que condicionam diariamente sua mente com idéias, emoções, sentimentos e sensações que não são e talvez nunca serão seus?


Bilhões de mentalidades funcionam coletivamente desta forma. Não se surpreenda se sua vida financeira, econômica ou emocional estiver em crise. A cada momento aumenta mais sua inconsciência. Seu olhar só vê as coisas do ponto de vista dos administradores dos conglomerados da telinha. Setenta por cento das ações dessas empresas de entretenimento são controladas pela Máfia. Tudo em família. Afinal, que mal faz você também em ser acionista subliminar, virtual, de uma multinacional da Máfia, setenta por cento das vezes que você liga a telinha?


CONSUMA-SE A SI MESMO. É isso que eles querem. É isso que você está fazendo. Quanto mais depressa o dragão do consumo te devora, mais protegido você se sente dentro do formidável estômago ruminante da antropofagia tvvisiva. Você faz parte do terminal “soft” do monstro, compatível com linguagens interativas, com acesso a grandes quantidades de programas e linguagens.


Em sua mente as coisas ocorrem de maneira mais ou menos aleatória. Afinal, você sabe, tem consciência, de que é um terminal virtual da telinha? Ou não quer nem saber? Se você nem sabe quem é, como poderá um dia vir a se organizar na defesa de seus direitos? Você não os terá se não souber como defendê-los.


Os políticos do Planalto Central administram você bem bitoladinho. E quando você envelhece, após ter dedicado toda sua vida ao trabalho de enriquecê-los, eles querem vê-lo sob sete palmos de chão o mais rápido possível. Para não terem de pagar sua aposentadoria por mais tempo.


Você não é nada livre se não sabe como agir na defesa de seus interesses, pessoal e coletivo. Por que fornecer poder a uma política que quer vê-lo sempre, real e virtualmente, por baixo? Por que você trabalha virtualmente para o enriquecimento ilícito de grupos que se revezam sucessivamente sem cessar, no exercício de explorar, real e virtualmente, sua força de trabalho até o estertor?


E você não sabe o que fazer com essa realidade para transformá-la em seu favor. Votar não resolve, muito pelo contrário. Ditadura, pior, como se fosse possível político pior do que PhDs em Sociologia.


Chega o momento em que um micromilésimo de segundo de tempo real pode significar a gota d’água que transborda a intolerância para consigo mesmo. Aí você, click, embarca na fuga do momento. Há sempre um vídeo a sua espera. Lê um livro nem pensar, exceto se de auto-ajuda, ou O Alquimista.


Um romance erudito exige concentração, raciocínio. Mas você, enquanto cidadão com uma mente virtual globalizada, possui uma tendência desesperada por tudo que é apenas dispersivo. Você é pirado por fogos-fátuos, pelo brilho efêmero, pelo entretenimento que vem do e produz mais gases de pântano.


De que modo fazer a crítica da razão prática de seus atos se você está longe de ser responsável por eles? Nesta conjuntura de dispersão e irresponsabilidade, pessoal e coletiva, você é a última pessoa a querer ser responsabilizado pelo que acontece na realidade real, todos os dias, não é mesmo? Afinal, você elegeu esses políticos com outra finalidade, está certo? Então a coisa institucional não é com você: deixa como está para ver como é que fica. É uma saída cômoda, não?


Como pude votar nessa peste de palanque? Exclama de si para consigo, ao pensar nos amigos do rei que fazem a festa com o dinheiro público canalizando-o aos bilhões para os ativos financeiros dos pobrezinhos dos banqueiros, enquanto para você e sua família, faltam saúde, habitação, educação, o transporte é uma caca, e o desemprego, o subemprego e a insegurança continuam deixando sangrar para sua classe social.


Agora chegou minha vez de tornar-me evidente para seus olhos:


Minha história é simples e traumática. Habito uma colônia de extraterrenos. Estes parágrafos, mesmo breves, contam a história de oito mil famílias alienígenas só nesta colônia. Existem outras. Muitas outras. Se você pertence a uma dessas colônias e está lendo este texto, por favor, atenda este patético apelo: precisamos nos mobilizar, criar uma instituição que defenda nossos direitos, que não roube sistematicamente nossos recursos e esperanças, que tenha condições de defender nossos mínimos e fundamentais interesses de sobrevivência.


O monstro antropofágico, através dos impostos pagos por nossos salários, está cada dia mais insaciável, através de medidas provisórias cria impostos extras do tipo ipmf. E em troca, nada. Exceto dívidas e obrigações, enquanto os direitos coletivos são subtraídos. Não vamos nos deixar extinguir. Temos vontades e necessidades básicas a satisfazer.


Sou parte de uma raça que é uma extensão da não-violência universal. Do contrário, como suportar essa condição ambiental de neo-pós-modernidade à Treblinka, Sobibor, Dachau? O poder Central eleito pela inconsciência coletiva, age como se odiasse todo mundo, todo tempo. Todo mundo que não senta nas mesas redondas das reuniões de conchavos institucionais é simplesmente para ser explorado, sugado, devorado, todo tempo. Chega de tanta incompetência e aceitação desse horror institucional.


O “Reich dos Mil Anos” em plena vigência.


Perdoe-me, leitor, acho que estou vendo muita tv, ando muito dispersivo. É hora de falar de mim. Meu problema inclui a depressão. O médico da colônia receitou um medicamento para dormir. Acontece que este medicamento aumenta os distúrbios da depressão e do sono. Não consigo esquecer habitar uma região magneticamente saturada pela presença humanicida, “full-time”, da eterna mãe do tempo: a morte.


Minha família de caiçaras emigrou do litoral sul de São Paulo para um território infeccionado por detritos tóxicos e cancerígenos de certos nichos industrializados da Baixada Santista. Nasci e cresci aqui, em meio aos depósitos clandestinos de lixo químico. Fazer parte dessa cloaca industrial é tudo que de melhor consegui em minha vida. Ouvi dizer que a parte mais politicamente correta da sociedade planetária está deste lado ocidental. Ignoro o que isto quer dizer.


É possível que a classe patronal e política, esteja tão alienada de seus subprodutos, que nem se dá conta de comunidades semelhantes à nossa. É como se não fôssemos humanos nem fizéssemos parte sequer da periferia da sociedade “black-tie”. Por isso nos denominamos colonos extraterrenos. Noutra colônia próxima, a população é de doze mil condenados, reais e virtuais. Somos vítimas da aspiração de resíduos químicos altamente tóxicos que agora fazem parte de nossas correntes sanguíneas: pentaclorofenol, hexaclorobenzeno e tetraclorobutadieno: causam câncer e mutações genéticas.


Não pense que tenho peninha de mim, que estou pleno de autocomiseração. Tal intenção não me serviria de nada. De que poderia valer a autopiedade e a compaixão para com Moema, minha mãe? Ela, que para não ter de andar na bitola, trabalhava como escrava numa fábrica de solventes clorados. Contaminou-se e aos filhos. A ela devo minha vida de infeccionado. De qualquer forma é vida. Amo-a pela coragem, pela persistência, pela esperança.


Toda a região de nossa colônia é abastecida pela água de rios contaminados. O pessoal da gerência colonial só bebe água mineral. Alimentamo-nos de pescados com 4.750 vezes mais hexaclorobenzeno do que os níveis limites aceitáveis. O patronato sugou nossas vidas, degenerou nosso sangue, virtualizou nossa identidade, aproveitou-se de nossa necessidade e ignorância. Que posso fazer, exceto ter esperança de que nosso sacrifício coletivo não tenha sido em vão.


Moema morreu com a pele cheia de erupções. O sangue e o leite maternos contaminados amamentaram a descendência de toda uma família de irmãs e irmãozinhos organoclorados. Vendo pelo lado positivo dos absurdos otimistas, não preciso nem comprar inseticida. Sou um inseticida ambulante. Meu sangue está empapuçado de HCB: 17,8 microgramas por litro. Não existe inseto, borrachudo ou similar, que se dê bem sugando meu sangue. Hoje se sabe que qualquer quantidade mínima de HCB (hexaclorobenzeno) causa câncer. Até 1975 a Organização Mundial de Saúde estabelecia que o nível de contaminação 0,6 microgramas por litro era letal.


Habitar nesta colônia alienígena nunca foi fácil, “brother”. Meu fígado é duas vezes maior do que um fígado humano tamanho família. Tenho atrofia nas mãos, lesões na pele e sou nanico. Estou cercado de milhares de irmãs e irmãos extraterrenos em condições de intoxicação semelhantes. “Tudo bem”, é desta forma que ironizo a situação. Fazer o quê ?


Habitamos nessa colônia tropical, sobre um depósito de lixo clandestino pertencente a uma empresa multinacional da qual você é um investidor: a Propriedade Privada Subliminar S/A. É um favelão maldito maravilhoso, com todos os confortos subjetivos que você conhece tão bem enquanto tvespectador. Também tivemos nossos momentos de artistas tvvisivos.


Você talvez não aceite essa realidade tão trivial: mas você também é um dos nossos. Não tão organoclorado, é verdade. Mas os processos nos oceanos pelos quais o carbono orgânico (fixado no plâncton) é transformado em carbonatos e depositado nos sedimentos oceânicos, não são bem compreendidos pela ciência terrena, ainda nos dias de hoje.


A concentração de CO2 aumenta à razão de 0,5% ao ano. As quantidades envolvidas altas, muito altas. A massa de CO2 a.a. corresponde a 14 bilhões de toneladas. A quantidade atual de CO2 na atmosfera é da ordem de 1 trilhão e 400 bilhões de toneladas. A rapidez com que o CO2 da atmosfera é trocado com os oceanos e os seres vivos, é, felizmente, muito maior do que a produção anual de gás carbônico pela queima de combustíveis fósseis: 340 bilhões de toneladas a.a.


Existe a troca de CO2 entre a atmosfera e a biosfera, onde estão armazenados mais de 8 trilhões de toneladas de CO2 e outros compostos de carbono. A atmosfera está sendo inflacionada como se fosse um balão que não se satura, cada dia mais, com produtos resultantes da queima de combustíveis fósseis. Todos os cientistas que investigam este fenômeno globalizado, estão de acordo com o motivo pelo qual, apenas metade do gás carbônico produzido pela queima de combustíveis fósseis permanece na atmosfera:


As trocas com os oceanos e a biosfera são assimétricas. A quantidade cedida pela atmosfera é maior do que a quantidade recebida de volta. A outra metade do CO2 prossegue dissolvida nos oceanos e retida na vegetação e no húmus. As avaliações do grupo International Commission on Radiological Protection não foram contestadas nos meios científicos.


Acontece que a necessidade de consenso não é dos meios científicos, mas dos políticos. Os políticos e os ignocratas do colarinho branco, todos sabem, vendem o Templo Terra para os interesses de produção das multinacionais. Criação e expansão de mercado acima de tudo e de todas as coisas.


Quanto a mim, vou prosseguir dividindo o aluguel deste “kit” modelo pombal, com outro casal ET. Ela, com sintomas de fraqueza geral e artrite, por vezes passa a impressão de que está agonizando. O médico diz que tudo deveria ser indolor, mas não é. O lado direito de seu corpo fica virado na direção do horário nobre das novelas de tvvisão. De tanto ficar por sobre este lado, a pele está em carne viva. O outro lado do corpo está pipocado de bolhas e outras irritações cutâneas, seqüelas da intoxicação, há muito se encontra enverrugado em igual situação crítica.


Quem se importa com as condições precárias de sobrevivência de uma ET? É isso que somos, devemos aceitar. Que fazer? O marido dela sofre de desdobramento da glândula tireóide. Esta colônia de extraterrenos é um genuíno circo dos horrores. Que acha você, irmão?


De mim para comigo sei ao certo o quanto sou ET. Desculpe tê-lo importunado com essas digressões alienígenas. Seu precioso tempo dedicado ao clube dos maníacos vidiotas, não pode ser desperdiçado com histórias do outro mundo. Não se preocupe: uma gota de verdade, um pingo de realidade no enorme oceano de imagens catódicas de seus condicionamentos inconscientes, não vai fazer a menor diferença, não é mesmo?


Talvez este texto possa servir para que você mantenha os olhos bem abertos. Seu mundo só é real na conceituação. Precisas, talvez, saber ser parte de um universo virtual. Os interesses envolvidos no sentido de que você permaneça com os olhos escancaradamente fechados, são fortes, muito fortes. E desejam você cada vez mais inconsciente e fraco. Olho vivo, o principal facínora desta história pode estar pagando seu salário.

















CELEBRIDADES BELÍSSIMAS


(PITUTUCAPIUPIU)





Coração: cada olho verte uma lágrima na pulsação. Estar aqui, ao mesmo tempo há um tempoluz de racionalidade e compreensão. Vejo gente a movimentar-se nos engenhos interurbanos.


Eu, signo, sigo ao encontro de estrelas longínquas. A pé. Aquela estrela ali, de repente próxima, pede que alguém saiba divertir-se um tanto com suas pulsões. O sorriso juvenil pode ter o efeito agradavelmente surrealista de um “yellow sunshine”, se direcionado ao ponto “sky”, como diria Huxley: as portas do inferno abrem-se do outro lado do fio de cabelo, assim como as do céu.


Vejo a adolescente. Coletivamente, verte o primeiro sangue menstrual, sangue novo para abastecer os rios de máquinas a movimentarem-se nos vasos sangüíneos dos motores a combustão. Há quem pense que a principal mercadoria dos postos é a gasolina e o álcool. É a secreção vermelha. A ainda menina traz consigo a nostalgia indefinida de uma arquitetura remota, de um futuro porvindouro acaso inexistente. Ainda.


Digo-me: Toda hora é hora de te querer/toda hora é hora de te amar/toda hora é hora de te saber/toda hora é hora de te sonhar/de dizer/toda hora é hora de contigo estar. A angústia desdobra-se, atinge o limite do insuportável. Quantos desastres, quantas dores, quantas infecções, quanto choro. Quantos olhos nos olhares, quantos pares flutuando entre repetições de semtimentos. Desconhecem o quanto terão de defasar, sem ti, a tua mente.


Para rimar com toda essa marola, agrada aglutinar-me em habitações próximas às ondas. Gostas de ver-me excitar, gosto de viver por ti. Cada passo teu vejo como uma onda do mar, caminhando. O mar de teu corpo, consciente, inconsciente, marolando em meu olhar, move-se como uma canção das ondas.


Vendo-te vejo que, em breve, nada do que foi será. Quanto ao hoje, ao amanhã, ao futuro, passará. Passam: pensamentos, percepções, as ondas do teu caminhar. Teus passos, como um pássaro, frágil e necessário, nesse estado de embriaguez consciente, muta em milenar insuperação do que foi, do que é, do que será.


E tu nem atinas que tens, pelo menos, uns 45 mil anos. A canção está errada, pelo menos até agora. Precisa-se mudar seu sentido histórico. Em verdade, infelizmente, tudo o que foi será, igual a tudo que foi antigamente. Nada passa, tudo sempre impassará. A vida vem em ondas igual às ondas do mar, num indo e vindo finito e in.


Quantas mutações sapiens sapiens, milenares, serão necessárias para superar essa lei do eterno retorno mesmérico da mesmice? Quando será o amanhã, mais que manhã, mas realmente o futuro, um outro e novo dia? Virá? A memória de ontem tão insuficiente para definir-se hoje. Como criar-se, como criá-lo? Tudo que preciso dizer-te parece intraduzível em palavras. A lembrança do vocabulário precário, tão precária.


A sensação de estar nesse chuviscar vulgar de palavrinhas irrisórias da turma da esquina, na praça da alimentação no shopping center dos corações atrabiliários. Essa terra do transe em trânsito. Precisas ser mais que uma simples bijuteria de ourives. Necessidade de algo mais que adorno. Tens espírito, mente, és capaz de produzir fenomenologias.


Tua via de viver maior que um alfinete, um brinco, um berloque, uma frase de efeito numa sepultura esquecida. A volúpia do desejo de ser uma mulher. Tudo que almeja da vida, é suficiente? Sentir-se domesticada na flutuação das ondas de natureza eletromagnética da sala de jantar? Abre a janela da tvvisão para não se ver na vida.


Que supremacia é essa, domesticada como uma cadelinha, com o QI brega da mulher do louro, entre o fogão e o forno, o quarto e a cozinha, o sanitário e a máquina de lavar. O sangue quente, paleolítico. A ancestral matriarcal mais remota, ferve nos vasos. Vasos, traquéia, vagina: És a mais nova e ao mesmo tempo a mais antiga das fêmeas.


Vê-se já com os olhos no regaço, implorando proteção em qualquer lastro, a fim de parir a outra parte, os laços também remotos de uma companhia de nove meses. A criança verga-se sobre si dentro, fora dela. Mais uma garota, ou garoto, para a chácara supostamente pós-moderna.


Se trocasse a data de hoje de sua vida com a vida de sua avó, ou com a vida da filha que vai nascer, a única coisa certa que mudaria, exceto a idade, seria a paisagem exterior. A alma, o interno, a normose, a coisa normal de sua neurose, flutua na cristalização das gerações que se repetem sucessivamente há milênios.


A mente avoenga não cessa de agradar àquelas que sempre gostam de ouvir e repetir histórias velhas. É a raça descendente da mãe mitocondrial. Todas as fábulas fantasiosas são parte da vida real, de sua utopia.


Lave suas mãos pias na pia da sala, do banheiro. Lave as dívidas surgidas no inventário do amanhã. Lave as mãos para as mães Marias, as que venderam antecipadamente tudo o que foi, o que é o que será. Ser apenas uma onda no mar do consumo. Passos a caminho do supermercado do shopping.


Para consolar-se, não sentir um gosto de amargo em tudo quanto gosta, alheia-se a tudo o mais como se não existisse. Vai pensar nisso depois, quando chegar a idade, e o mais superficialmente possível, no dia de São Nunca de tarde. A identificação com as outras vidas xerox. Mesmo se existissem fora dela, e existem, hão de se tirar, como ela, o máximo proveito possível apenas e suficientemente do aqui e agora.


Talvez até haja reencarnação. Reencarnar uma nação. Renascer tudo igual. Terá, quem sabe, uma chance de vir outra vez, ser algo melhor. A esperança da argumentação pertinente: busca justificar-se. Um monte de pequenos ideais, tipo casar, ser dona de casa, ter filhos para festejar aniversários, não sentir-se sozinha nos casamentos, batizados, festas juninas, natal, Páscoa: tudo outra vez.


Precisas arranjar outras idéias nessas idéias um tanto quanto confusamente, ordenando-se. Precisa ler, mas essa cultura tv-sádica, em nada incentiva a leitura. Na tv é mais fácil, não tem de treinar a massa cinzenta. Ter de fazer um monte de sacanagens para conseguir um namorado, ser uma celebridade: tá na novela.


É assim mesmo: todo esse espaço pago, caro, para fazer a propaganda da célebre mediocridade. Não há tempo para instruir-se. Outra dimensão, quem sabe ao certo? Viver é viver para a velhice e a morte? A celebridade da velhice e da morte. O narciso juvenil em confronto com os pés de galinha. Na pior das hipóteses, o sonho dos mortos-vivos não pode parar, mesmo que tenha morrido na década de setenta. Não há outro jeito senão o jeitinho. O maldito jeitinho sociológico, brasileiro. A grande serpente da vida arde desde uma infinita distância na cadeia genética das gerações sempriguais. Como vencer a força desse sangue primata? Ela que tem de se gostar, de não se esquecer.


Por que cultuar o intelecto se ninguém valoriza isso? Sabe que corre o risco de ser outra energúmena sem nenhum desenvolvimento intelectual, dessas que fazem o país inteiro envergonhar-se diante do apresentador do programa show do milhão. Se conseguir ser um desses universitários que aparecem nele, e mostram que são quase tão ignorantes como a turma das placas, já estará satisfeita.


É infame a educação nesse país. Basta olhar aqueles professores que não sabem responder as mais primárias perguntas. No entanto são professores. Pergunta-se que tipo de autoridade detém o crescimento de uma nação. Que tipo de covardes estavam, até então, antes do governo do presidente Lula da Silva, por trás das celebridades dessa pátria?


Hoje, a garota da tv está muito intelectual para o próprio gosto dos “Big Brothers”. Se tivesse de trocar umas idéias que não fossem tatibitates, não teria com quem falar. Precisa se tocar de que é parte da maioria astuciosa. Lembra que o medo rege as relações. É de uma geração cega, surda e muda. Que nasceu para fazer a história repetida muitas vezes no passado: a realidade dos macacos chineses.


Aqui mesmo, nesta pequena cidade, muitos morreram por denunciar a corrupção do colarinho branco. Ninguém viu nada, nem ouviu. Todos ficaram calados. Outro dia leu um livro sobre um autor alemão, não lembra ao certo, o nome, Brecht? Ele dizia ser maldito o Estado, o país, que precisa de heróis. Ora, ela que pensava ser mais uma heroína da política de sobrevivência, como as garotas da novela Celebridade.


Quer saber é das novidades que interessam: se vai haver uma feijoada ou um churrasco no fim de semana. Um baile, uma festa, outra vez o shopping. Um forró para celebrar a elasticidade do esqueleto. Quem sabe possa azarar melhor aquele fulaninho. Um gato com toxicoplasmose gondii. Que é isso? Novo palavrão?


Medo de vir a ser tão somente uma querela, gemido plangente, aquarela desbotada no quarto de dormir da filha, num álbum de retratos, intuindo seu futuro pelo que já viveu.


A filha terá talvez o mesmo temor: ser lembrada pela pose puída, na fotografia colorida das lembranças no fundo do baú. O casamento da neta será um rolo, um microfilme na filmoteca da família. Mas a mulher sempre foi e será um ser mitológico. Ainda que, como Ícaro, vai adiantar fugir do larbirinto de Creta, com asas de cera? O sol as derreterá. Cairá no mar. Já caiu.


Não quer cristalizar no modelo da mãe mais primitiva. Não quer ser a garota do dia, de hoje, da hora, apenas na falsa atualidade da aparência. Vai ter que dá um jeito. Quer ser algo mais que uma configuração programada pela tv. Como conseguir isso? Não ter de ser tão padronizada, em série celebrizada, reputada pelas solicitações de consumo da telinha? Afinal, é a última palavra em tecnologia de ponta: manifestação sensual das tendências de venda, dos eventos condicionantes do mercado. Uma onda no mar não é tão pouca coisa. Ou é? O mar anda tão poluído! Inconforma-se.





PATRICINHA GLOBAL





(Num dia de outono)





Há mulheres que nascem, ou adquirem com a experiência, a palavra puta estampada na testa. Por vezes uma marca registrada atávica. Gostaria de saber porque toda mulher que conheço morre algum tempo depois de eu conhecê-la. Da última, vou contar sua história. Talvez o desabafo seja suficiente para sentir minha consciência mais leve, zen.


Falarei um pouco sobre quem sou, como penso e ajo. Costumo agir com certa ética, ainda que, quem tenha alguma, no capitalismo cromagnon, esteja condenado ao mais infame ostracismo. Tenho a mania de poetar. Sou utópico, talvez. Do contrário, como encontrar uma motivação pertinente para viver?


Viver, presumo, exige uma certa lógica moral, uma mínima coerência, um, ainda que ínfimo, decoro. Olho para os lados e vejo apenas pessoas que, para sobreviver, mergulham fundo nas mais abjetas dependências. Ela era funcionária pública, trabalhava no Tribunal Regional Eleitoral.


Depois de conhecê-la uma semana, seu discurso pessoal tornou-se mais previsível que a fala de papagaio de pirata. Apesar de ter cursado uma faculdade de Direito e estar cursando outra de Administração, seu discurso pessoal era o de uma adolescente que, com certeza, leu alguns livros, mas não aprendeu nenhum princípio pertinente que valha à pena aplicar em sua vida diária.


Seus sentimentos e emoções eram claros como um copo de refrigerante, no qual se olha da superfície e se pode ver nitidamente o fundo, que se dilata ao ser atingido pela ponta do dedo, e dá a impressão de se abrir para uma penetração desejada, mais profunda, no real tornado ficcional do copo de cristal.


Na conversa falta um toque de atino, de sensibilidade. Apesar de entrada no quarto decênio da vida, suas compulsões não diferem das de uma adolescente com cultura de novela, partícipe de festinhas familiares, às quais comparece sempre muito bem vestidinha, dentro de modelitos copiados das vestimentas das atrizes dos seriados de fantoches sociais do horário nobre da tv.


Saída de um casamento com um tratante que lhe atormentou a existência de forma maquiavélica e sádica, carregava o carma de uma convivência que a fazia marionete dos desejos de seus chefes de repartição pública, que se alimentavam avidamente de seu corpo, como se fosse uma fossa da qual puxavam varas salpicadas de inclusões fecais. Talvez seja essa a condição da mulher moderna, que precisa rezar a ladaínha para os superiores hierárquicos, sem a qual não manteria seus “dê aí” e “dê a esses”.


Usufruía de sua condição de fêmea oferecida, ao mesmo tempo causava-me certa angústia vê-la como se fosse uma autômata sem profundidade psicológica, com uma alma tão raza, como o psiquismo de aparências do qual se nutria socialmente. Estava adaptada à sinecura e a secura dessas condições, de tal forma, que as vivenciava como se fossem as coisas mais naturais do mundo.


Afinal, que pode uma mulher fazer contra esse estado femíneo de representação? Sua “alegria”, uma satisfação entre aspas, era mostrada a todos como se fosse verdadeira afirmação do prazer de viver. Aceitou as regras do jogo de seu meio ambiental. E o jogo é jogado nos covis onde exerce a profissão de burocrata, e nos “psycho motéis” calibrados à cocaine.


Sentia-se parte das taras sociais, as antigas e as novas. O marido a estuprava de forma sistemática. Talvez tenha confundido esses estupros com “fazer amor”. Ter relações sexuais nessas condições de dependência de surtos psicóticos de agressividade por parte do esposo é abuso, quer se use ou não um eufemismo para definir as relações íntimas do casal. Tal convivência gerou nela um medo cada vez mais acentuado de morrer num desses surtos psicóticos que empatizava do cônjuge. Vivia sob a ameaça de um crescente pavor, de que ele pudesse fugir com a filha de sua proximidade, desde que ameaçava abandoná-lo se ele não concedesse o divórcio. A síndrome de pânico foi-se afirmando como uma arma afiada, a ameaçar cortar o único elo com a vida que ainda valia o esforço de preservar: a filha. Dedicando-se a ela sentia-se protegida, protegendo, amando e sendo amada, útil a alguém, não apenas vivendo para suas perversões.


Quem as defenderia nessas condições de domínio do cônjuge desequilibrado, delinqüente polarizado pelo consumo contumaz de drogas? Como uma mulher em luta desesperada pela sobrevivência poderia conseguir sair fora do curral familiar onde era tratada como uma vaca, e ao mesmo tempo ter uma vida intelectual, uma compreensão de valores mais altos da existência?


Como poderia preservar-se do assédio predador dos chefetes burocráticos, dependências mórbidas do emprego público e privado, dos condicionamentos que a faziam nivelar-se a uma subordinação cultural de empregada doméstica? Apesar de ganhar 10 vezes mais que uma criada, como poderia defender a educação da filha em condições de classe média brasileira, se não terminasse por entregar-se às pressões políticas e econômicas do emprego, rodar a bolsinha para o sustento da casa?


Como poderia investir, após estar sozinha, no apartamento, no carro, nas aparências, no vestuário que cobre o corpo com atrativos de fachada? Como seus hábitos libidinais poderiam ser diferentes dos de uma prostituta? Uma mulher é uma mulher e precisa saber se defender. Mesmo porque há a responsabilidade suplementar de estar criando outra, que também, numa sociedade machista, terá, mais cedo ou mais tarde, de enfrentar os mesmos tipos de pressão, e talvez passar pelas mesmas situações de constrangimento profissional que ela passou. A filha também será mãe. Do fundo do poço raso e cristalino de suas ilhargas.


Como um lobo colhido numa armadilha, sou prisioneiro de uma certa moral pessoal que o mundo dela acha que não vale nada. Mas que eu acredito ser parte importante do que vale preservar nessa vida. Ela, o túmulo de qualquer ideal mais alto, que valha o esforço pessoal de defender.


Como cobrar dela um imaginário mais dotado de valores, se sua convivência com a sobrevivência mostrou, ao longo da vida, que tais valores não têm valor, no sentido que não a ajudam em nada a sobreviver melhor? Valores éticos não pagam as prestações do apartamento, nem o supermercado. Nem a mesada da filha, nem a educação, o shopping, a alimentação, as roupas, o entretenimento.


Seu divertimento, em alguns fins de semana, era ir ao baile da música da moda, como qualquer doméstica de subúrbio dançarina de forró. A diferença era o salário de classe média. A mentalidade, a mesma, nivelada por baixo por uma cultura que sempre exigiu dela que alimentasse o perfil de meias verdades: o sorriso aberto, surpreso consigo mesmo pôr ser capaz de sorrir, carente, alto, afetado, de quem grita ao mundo que existe, está viva, produto do pânico anímico que se instalou no fundo do coração.


Do coração incapaz de pulsar segundo vigor moral mais consistente, com o qual não condiz o comportamento social do grupo que freqüenta. Apesar de aparentemente abastada, de mediana para média alta, possuía as mesmas rotinas mentais das classes niveladas pela cultura mais baixa.


Gostava dela, compreendia sua contradições, mas como justificá-la? Ela vivia no mundo real, eu, em parte, sem querer abandonar a utopia de uma mínima moralia. Ela, submersa na vaidade, numa política pessoal de aparências.


Eu, alimento-me persistentemente, de uma espiritualidade que rejeita entregar-se totalmente ao deboche de uma subcultura imposta por uma “elite”, entre aspas, política, econômica e financeira, com uma cultura social de fazer inveja ao clube onde se reúnem as empregadas domésticas do baile de fim de semana.


Uma “escol” que investe na cultura nacional das aparências, apenas nas aparências, que não mais consegue guardar um certo recato, decoro, decência. Ela se enfeitava tanto, parecia tão artificial como uma sala de baile decorada para uma festa, onde as pessoas vão se descontrair de suas mazelas, mas que, logo mais, terá a aparência e o desencanto de um ambiente desolado, desordenado, sujo, com o odor típico, saído da porta do banheiro entreaberta.


Talvez fosse exigir muito dela, o dedicar-se a algo mais que não fosse uma aposentadoria que permitisse afagar o rosto no travesseiro das rugas, com um sorriso cínico, triste, decepcionado, satírico, amanhecido. Um sorriso despido da necessidade de transcender as verdades de uma sobrevivência (malograda), dedicada ao ideal do salário e da aposentadoria a qualquer preço.


Como poderia uma vida abnegada às mentiras rituais, saber fazer valer uma certa e insubstituível transcendência, essencial e invisível para os olhos? A minha mulher não há de querer mostrar-se tão feliz da vida, tão banalizada por uma configuração artificial de mera exterioridade. Um pouco de espiritualidade, querida, na sua idade, em todas as idades, não vai mal.


Quem sabe seja muito tarde para plantar nela, em seu terreno transitório, nos invisíveis neurônios e sinapses de um cérebro simplório de vadia. O sistema nervoso central plugado nas festividades semanais tipo rala-bucho. Arrasta-pé da planta ideal, cujo adubo é a interdependência de humores artificializados a partir de uma soberba infantil, natural. Crescer para ela tornou-se tarefa não muito fácil. Crescer em idéias, não apenas na largueza do vinco entrepernas. Construir a ponte subjetiva entre esse viver terrenal e algum valor que pudesse afirmar para depois, para além, para a habitação alhures.


Quem sabe ela venha a intuir: se me perder, restará uma idosa infantilizada, usada e abusada, como sempre foi, por qualquer palerma da terceira, Segunda ou da primeira idade que dela se aproxime. Sua sombra e a própria voz argêntea lhe tirará o sono.


Não haverá Domingo para ela (que triste).


E sentir-se-á a menos amada e solitária das criaturas. A mais gasta e sem serventia das crias de sua geração sem pai nem mãe. Ao descobrir-se tão vazia de sentido, a própria voz irritará os ouvidos. Será aquela que para ela mesma, confundiu conquistas femininas com prostituição.


Descobrirá que tudo nela era esmerado apenas na aparência. Que seu consumismo de patricinha, depois perua de butique de shopping não deixou nenhuma marca, exceto nas caixas registradoras dos corações safenados.


E o ouro dos sentimentos que a faria a mais querida das mulheres, não passará de uma nuvem cuja forma se desfaz na memória, tão rapidamente, que, talvez, nem uma lágrima se permitirá descer pelas faces desprotegidas, onde a memória do tempo terá depositado a erosão de uma saudade e de um vazio impossível de preencher com a lembrança das vivências.


Memória dos incidentes de uma vida que julgava talvez ser, de alguma forma, boa de viver. Mas que, na realidade, tudo tão fútil e transitório, não terá passado de chuva de verão. E toda sua vida poderá ser resumida numa frase vã, tumular, de mausoléu.


E só então ela saberá que teve a mais preciosa das dádivas em mãos, e em vão tentará criar uma fantasia, uma memória, para justificar essa insuportável e radical futilidade. Essa perda inominável e irreversível de um valor mais essencial. E o sorriso sorrirá sem sentido toda vez que queira parecer simpática, e justificar a aparência dos gestos, a inteireza dos dentes.


Vai por certo querer tirar de algum lugar, por alguma mágica do lembrar, alguma sensação de prazer que possa fazê-la sentir-me melhor. Saberá que somente a morte poderá libertá-la dessa angústia supostamente incompreensível. E verá sem emoção pertinente, com tristeza nos olhos grandes (de uma mínima lágrima carente), o crepúsculo chegar e ir embora, sem intensidade, real ou aparente.


E a aziaga não virá tão cedo. Seus mais miseráveis segredos, sua mais guardada intimidade, ela saberá, afinal, que eram tão fugazes como enredos de telenovelas, ou as pantomimas do samba enredo da romaria dos mutilados em desfile numa escola de samba. Ela, que poderia ser, toda vida, todas as vidas, a estrela da vida inteira, terá escolhido a transitoriedade da fantasia, dos bastidores, a fútil imaterialidade do nada. E o próprio brilho dos astros será ofuscado pela aura negra da banalidade. E suas próprias confidências, dela para com ela, terão o sentido mesmo da inexistência. Saberá afinal, a diferença entre um amor escrito nas estrelas, e a intimidade de uma plêiade de burocratas barrigudos e sodomitas. Mas uma ninfa é uma ninfa, é uma ninfa, é uma ninfa.


Como uma personagem da literatura realista-naturalista, se verá finalmente como sempre terá sido: uma pequena burguesinha, com valores de aparência, tão decadentes como uma personagem de ficção, interagindo conforme as solicitações mais instintivas do meio ambiente. E ninguém pôde ou poderá fazer nada por ela. Não haverá um gesto de carinho que a fará sentir-se melhor. Nem uma palavra. Seu consolo será a empatia com as imagens da tv. Sua atenção, seu carinho reprimido, virá do mundo do faz-de-conta das personagens ilusórias, artificiais. Consolar-se-á olhando a paisagem desolada do interior vazio de seus melhores sentimentos inexistentes. Num torvelinho, o vento outonal açoitará as folhas das árvores no asfalto da garagem lá embaixo.


Restará dirigir a leviana e pueril massa corporal, aleatoriamente, pelas ruas e avenidas nuas da cidade deserta. E será apenas uma extensão a mais do pânico geral da metrópole. Extensão terminal de um solstício interminável.


A sensação de uma terra devastada, como na poesia de Eliot, ou o sentimento aleatório de delícia que confina com o pesadelo, como em Chesterton.





CRIATURA DO INFERNO


(Frankenstein globalizado)





Por vezes a mente libera a intuição da essência, fenomenologias, no estado entre o sono e a vigília. Pessoas que se dedicam às mais diversas atividades de criação desejam entrar nessa condição de percepção privilegiada da realidade, onde a criação flui sem as barreiras às quais se impõe o ego.


Esse reino duodimensional (do sonho e da realidade) manifestou-se diante de mim, através de uma visualização temerosa. Abri os olhos e a coisa caveirosa, de aparência descarnada, com uma epiderme muito fina, estava sobre um nicho que parecia um grande monitor de tv, a poucos centímetros da parte inferior lateral, à direita de minha cama.


Observava-me numa posição de serpente descarnada, de aparência supostamente humana. A princípio parecia menor. Quando, com um movimento brusco, de defesa, fixei-me na borda da cama, a coluna empertigada, a coisa afigurou-se crescer em tamanho e também se empertigou.


Rapidamente empunhei a maior das adagas próximas a ela, a espada, e, antes que a visagem esboçasse alguma reação, submergi nela a lâmina da fálica agaturra em cruz, que estava ao lado da lâmina menor que parecia um obelisco. A aparência repugnante da figura, aliada à invasão de minha privacidade, encorajou-me a empunhar o sabre e a introduzi-lo por sob a carne tênue, de músculos trançados, do lado esquerdo do corpo da coisa.


A lâmina penetrou sob as costelas do demônio em direção ao ombro esquerdo. A movimentação toda aconteceu em alguns segundos. Vi a configuração da comprida lâmina sob a pele, como se a folha laminada da espada tivesse encontrado a bainha apropriada.


A anatomia mefistofélica acolheu, sem reação, a agressão, como se já estivesse programada a aceitá-la. Fiquei a segurar a empunhadura da arma branca, acreditando que, se a soltasse, a simbologia fálica, perderia a possibilidade da interatividade que se seguiu.


A aparência era horrível, ameaçadora, a atitude passiva encorajou-me à fala: “Com essa aparência maldita, somente podes provir do martírio do inferno. Que fazes aqui, coisa medonha?”


— Eu sou Maya, a ilusão, o sofrimento, que vocês, humanos, chamam de realidade. Eu sou a espiritualidade pusilânime da “alma do mundo”, do mundo real e do mundo que os humanos chamam de virtual. Eles não sabem que são mais virtuais do que reais.


“Göethe já teorizou sobre você visão medonha. Fala excomungado, você é a alma coletiva dos inquisidores da Oposição que desejam queimar na fogueira da insanidade a esperança dos brasileiros?” E a coisa respondeu, cheia de enfado:


— Eu sou quem sou. Sou a hipocrisia, a submissão, o carnaval das dores, o mundo real, o mundo virtual do faz de conta. Sou a covardia, a patologia feral dos que desejam desestabilizar o governo da esperança que venceu o medo. Eu sou a violência das grandes cidades fantasiadas de suposta alegria, eu sou os discursos cínicos e vazios dos políticos do jogo do bicho. Sou a política das ditaduras subliminares da cultura do faz de conta. Sou a corrupção que mina a esperança dos “sem esperança”. Eu sou os Josés Nêumannes Pintos, das mídias que abusam da farsa armada pelos interesses dos bicheiros para tramar contra os interesses mais elementares da esperança do povo brasileiro.


E a coisa medonha, de aparência repulsiva, os músculos sob a pele fina, transparente, mais parecendo um desenho de uma faculdade de medicina na qual se estuda a anatomia dos ligamentos nervosos, continuou o discurso autoritário de auto-afirmação política:


— Eu represento a nostalgia do poder dos velhos coronéis da herança maldita dos políticos anteriores aos governos da esperança que venceu o medo. Eu tenho um coração imenso, nostálgico, tenho saudades amazônicas da dominação feroz dos antigos senhores da Casa Grande, hoje com representação usineira dos latifúndios caiados com o sangue de milhares de pobres diabos que lutam inutilmente por uma nesga de terra sob a cumplicidade caiada e calada da bancada ruralista do Planalto.


Eu forneço o meu apoio incondicional a todo candidato ou partido político que queira defenestrar o presidente Lula da Silva. O Palácio do Planalto não existe para manter a esperança do povo brasileiro. Muito menos a Explanada dos Ministérios ou a Praça dos Três Poderes. Sou saudosista da monocultura do café com os fazendeiros da produção de leite. A Casa Grande precisa continuar incorporando os membros dos Três Poderes corporativistas. A Senzala precisa expandir-se e fornecer mão-de-obra mais em conta do que nos tempos da escravatura.


Pelo visto a assombração havia lido Gilberto Freire.


— Eu sou fã incondicional da globalização. Da falta de literatura e inteligência, da educação e da cultura enquanto farsa social. Eu sou totalmente a favor da democracia dos processos de exclusão social.


“Prazer em desconhecê-lo”, respondi. A coisa ameaçou virar a cabeça em minha direção, mas apenas os olhos mexeram-se dentro das órbitas escaveiradas. Parecia um habitante do mausoléu sertanejo quando a caatinga padece na seca. E continuou o discurso vazio do conteúdo que não fosse a apologia do holocausto.


— Você é um escritor, precisa ser lido. Quanto mais leitores seus livros tiverem, mais você poderá faturar. Ganhar o meu respeito. Vem comigo, faça como o escritor que multiplicou seus livros com a facilidade de reprodução biológica dos coelhos. Seu oportunismo ficou íntimo de minhas necessidades. Eu sou ele usando a si mesmo em benefício próprio. Eu estou inserido falicamente em todos as classes sociais. Eu tenho os contatos que abrem as portas da percepção da dinheirama globalizada. Venha comigo, escreva de modo a agradar os meus gostos, a minha (suposta) sensibilidade. Eu sou os editores querendo vender o peixe podre dos discursos literários contaminados pelo oportunismo e a superficialidade. Eu admiro a banalidade com nomes diferentes em todos os lugares, fazendo-me passar por literatura. Eu pertenço a uma etnia que se ajuda a faturar em todas as partes do mundo. Eu sou agregado da sociedade ajustada às manhas neo-pós-modernas do faturamento global. Eu sou o filhinho privilegiado do sistema de castas que se estabeleceu nas sociedades pré-históricas atuais, dominadas pela hipocrisia, pela violência, pela anarcoditadura, pelas mídias do jogo do bicho, pelas intenções discursivas vazias de qualquer mínimo conteúdo social pertinente às mudanças. Eu odeio mudanças. Eu odeio Ética.


E a “coisa” continuou falando, por vezes não de um modo megalomaníaco. Parece que estava em pleno surto psicótico de autocomiseração. Perguntei-me: “Como um arquétipo da globalidade, tão cheio de poderes, vem dá espetáculo para a platéia de um escritor desempregado?”. A aparição ouviu meus pensamentos:


— Eu sou o espaço tvvisivo dos barões da comunicação social que sucateia todas as mentes nivelando-as por baixo e incorporando-as à patologia social dos interesses pré-históricos.


“Você é horrível, reagi, procura o Pitanguy para fazer uma plástica”, falei como se motivado por uma força natural, sem pensar se ia agradar ou não. A efígie da danação fez que não ouviu e continuou:


— Eu sou os nós que impedem a sociedade de se desatar. Para mim não procede operação plástica. Não há beleza possível na venalidade espiritual coletiva sem limites. Eu sou a estética do mundo sem a mínima morália da atualidade. Eu substituí os ideais da juventude que ousa fazer alguma coisa para sair da “alma do mundo” da fraude, da insanidade, das carências tatibitates, da sobrevivência encabrestada pelas ideologias de um padrão perceptivo caduco, aonde as pessoas já nascem velhas, fanatizadas por um simulacro de “educação” que as prepara para uma vida de velhacarias. Eu substituí a Guerra-Fria, pela guerra urbana da narcoditadura, na qual existe apenas um vencedor: a “elite” armada que fatura horrores com os horrores da violência. Eu sou a ignorância elevada a seu grau extremo, a ponto de fazer que não sei que para acabar com toda essa algaravia, basta descriminalizar as drogas. Mas eu não quero descriminalizá-las: isso levaria uma fortuna das mãos dos policiais, juizes, parlamentares e desembargadores do judiciário. Do judiciário dos magistrados que resistem “heroicamente” a aprovação do controle externo e à instalação de um conselho que garanta um mínimo de transparência às atitudes forenses das “excelências”, muitas das quais não passam de “majestades” togadas, fingindo uma suposta grandeza, enquanto por baixo da mesa são sócios majoritários da narcoditadura.


— Eu sou o “lobby” do Legislativo atuando em causa própria para que a descriminalização das drogas nunca aconteça, para que a maior parte dos salários de alguns conhecidos parlamentares, não vá para o ralo da legalidade, criar empregos em farmácias e em empresas de refino e distribuição de coca, de modo que a marginalidade não continue armada até os dentes, e a patomimesis social do criminoso cromagnon nato (a patologia da normalidade, ou normose, do Homo sapiens/demens sapiens), não prossiga em manifestações crescentes de uma bestialidade urbana inusitada.


“Deus do céu, exclamei, você é o terror generalizado. A própria pirilampagem, sua fala auto-afirmativa está sobrecarregada de decadência e autocomiseração.”


— Eu sou as taras cromagnon da nacionalidade nelsonrodrigueana, que faz circular o sangue vampirizado da desesperança nacional nos shopping center dos corações solitários.


— Eu sou o coração tenebroso da doença emocional da nacionalidade. Eu sou a patologia política das trevas, dos vencedores e de seus vencidos. Não tenho nenhuma intimidade com quem faz a campanha da Esperança que venceu provisoriamente o medo nas últimas eleições. Eu sou dos partidos políticos dos “sem esperança”, dos condenados pela venda da “alma do mundo” pessoal e coletivo, para a satanização globalizada via tv, Internet, Eu não consigo cooptar as pessoas que se reproduzem para manter uma mínima possibilidade de qualidade perceptiva. Eu detesto o governo Lula da Silva. Eu me sinto muito só quando sei que perdi alguém para minha mundividência. Por isso estou aqui, convidando você a escrever historinhas para adolescentes e prostitutas com “know-how” em sadomasoquismo. Eu gosto mesmo é de escritos tipo “Onze Minutos”.


“Isso não é um convite, respondi, isso é tentativa de cooptação subliminar”. Minha perplexidade me impedia de ser menos formal. Aquela coisa era tanta coisa, que por mais que eu quisesse mudar a direção do discurso supostamente autocomiserativo, eu não conseguia, simplesmente eu era, de alguma forma, sob veementes protestos pessoais, parte dela. Daquele organismo monstruoso que crucificava milhões, bilhões de pessoas, à cultura da mediocridade e da subserviência, e, ao mesmo tempo, falava em nome delas. "Quem é você realmente assombração?" Ao que se seguiu a resposta:


— Meu nome é legião. Eu sou pago, socialmente, para manter-me doente. Sou a legião interminável de almas penadas em precário estado espiritual e intelectual. Eu transito no medo, na insegurança social. Eu sou a violência que se multiplica nas sombras da impunidade. Eu sou a persuasão dos “comentaristas políticos” pagos para minar na mente popular, a esperança que venceu o medo do governo do presidente Lula da Silva. Eu sou a corrupção coletiva de todas as mentes humanas sob o controle de meus interesses particulares. Eu faço parte das “famílias” que concentram a riqueza material de um país em poucas mãos, e trabalho incansavelmente a impossibilidade de ascensão social a todos os que não se venderem aos meus interesses, via corrupção. Ao mesmo tempo, eu sou também a legião dos desafortunados que não acredita no dia de hoje, porque não há nada no dia de hoje em que acreditar.


— Eu sou aquele que quer minar os interesses dos governos da esperança que venceu o medo dos eleitores de votar em causa própria. Esses, eu ainda não consegui devorar totalmente, porque eles pensam, são organizados, têm ideologia, no bom sentido de trabalharem a vivência de idéias de mudanças sociais. Eu os odeio porque querem libertar-se de meu comando, comunicação e controle. Eu estou trabalhando arduamente para que, nas próximas eleições, o medo tenha a oportunidade de voltar com seus candidatos usuais, ordinários. Eu sou a legião dos que ainda querem que candidatos tipo Vulgo Corrupção, ex-governador do Piauí, voltem a se candidatar. E a ganhar as eleições. E se perderem as eleições, seus padrinhos políticos, a exemplo do “rei Mulatinho”, e seu Supremo de coleira curta, tiram do Executivo estadual o governador eleito e o substituem no tapetão, pelo seu candidato favorito. Aconteceu no Piauí, quando o governador “Mão Santa” foi substituído pelo favorito do “rei Mulatinho” que havia perdido, nas urnas, a eleição para governador.


Ganhei coragem e olhei outra vez a visagem, interrogando: “Ainda não compreendo por que eu...”


— Você é escritor, meu caro, do tipo que não é atraído pelas loucademias de letras que eu, a “alma do mundo” represento. Eu sou a representação coletiva de um país que não se quer sério. Não compreendo. Escreva para mim, coisas de que eu goste, que são do meu feitio. Que fazem parte de minha “fenomenologia” popular. E eu, que represento a burguesia internacional, e a pequena burguesia venal que só faz o que seus senhores do mal querem, em todos os estratos da população globalizada, preciso de sua colaboração. Eu necessito de unanimidade, e você está querendo dividir o meu eleitorado. Por isso vim manter essa conversa com você.


Euzinho, próximo à grandiosidade desse todo poderoso senhor globalizado das vontades de milhões, de bilhões de pessoas, que poderia dizer? “Eu também quero uma fatia de vossa excelência?!” Uma afirmação desse tipo pegaria mal. Que tipo de chilique aquela monstruosidade poderia ter? E a “coisa” continuou:


— Eu não preciso de motivações para a inteligência, porque não tenho nenhuma. Exceto aquela, suposta, que defende meus interesses globalizados. Não simpatizo com você... É tão mais fácil seguir o caminho da literatura que não encoraja as pessoas na luta pela defesa de seus direitos e de sua cidadania.


“Euzinho sou apenas um. Umzinho... Não se sinta carente de minha companhia, você já possui a alma do mundo, quase que em sua totalidade. Você não precisa de mim.”


— Você me provoca uma imensa solidão. Tenho medo que você cresça, se multiplique, e aí estarei ameaçado em minhas contas, em meus objetivos insaciáveis de cooptação globalizada. Sou supersticioso e penso em ganhar cada um dos filhos de meus filhos da nova geração, da outra geração, de todas as gerações... Eu só tenho agido em proveito de meus aliados sociais. Eu sou a auto-estima dos poderosos. Eu sou o supremo covarde que centraliza o desenvolvimento social de um país, de vários países, em acordos comerciais favoráveis apenas a uma das partes. Eu sou o sócio que deseja outros sócios apenas para tiranizá-los. Eu sou a ave de rapina dos pântanos globalizados pela suposta educação, saúde, habitação, pelo desemprego, pela massa falida da mentalidade nacional nivelada pela programação deletéria das tvs.


A “coisa” fanatizada pelo Ter, Ter, e Ter de repente voltou a dizer:


— Eu sou a fragmentação dos interesses sociais que não sejam exclusivamente os meus. Eu sou a luta em prol do desaparecimento total dos valores éticos, eu sou aquele que labuta nos “lobby” para manter leis inadequadas e socialmente destrutivas, que garantem a impunidade dos criminosos nas lutas intestinas pelo poder político. Minha ideologia é a prevalência da corrupção, da delinqüência infanto-juvenil, dos fanatismos ideológicos.


Eu sou a superprodução de armamentos, o aumento dos orçamentos militares. Eu sou a exacerbação do sentimento patológico de posse. O prato principal de minha dieta é o ódio e a indiferença à sociedade que não representa diretamente meus interesses. Eu sou investidor do “Reich dos Mil Banqueiros”. Tenho ações preferenciais da depressão das pessoas que sentem a barra pesada do medo social, do sofrimento físico e moral dos que se estressam por seus filhos e nada podem fazer para que tenham um futuro que não seja de carências. Eu sou investidor fanático da poluição da terra, da água, do ar. Eu sou o responsável pelas mudanças climáticas, pelo efeito estufa, pelo “el niño”, pelos “tsunamis”, pelo desflorestamento desvairado, pela extinção das espécies vegetais e animais. Eu sou o que investe incansavelmente no discurso demagógico da esterilização da esperança no ser humano. Eu sou a intervenção artificial na programação genética, em defesa das leis que garantem a impunidade dos poderosos e a destrutividade definitiva da paz social.


A “coisa” parou por instantes como se estivesse matutando argumentos para me convencer. Eu disse: “Sim, compreendo, a verdade é que todos parecem disputar famigeradamente você, senhor Mercado. Desculpe, não estou interessado nessas vantagens. Digo e repito: “Você já comprou a alma do mundo em grande parte de sua totalidade. Não vou fazer-lhe falta.”


A folha da espada mostrava agora a pele adensada da monstruosidade. Estava toda manchada. Os vários níveis de sujeira sugeriam que o senhor Legião, também conhecido pela alcunha de vossa excelência, o senhor Mercado, estava vestido com uma espécie de macacão de pele viva. Nela se viam milhares de logotipos, marcas de produtos que apareciam e desapareciam, substituídos por outros, a princípio com alguma intensidade, na velocidade aproximada dos carros pilotados pelos schumachers da Fórmula-1. O magnetismo da simbologia fálica da lâmina tentando atrair-me para dentro do organismo vivo da “coisa”. Seu coração mecânico parecia bater as horas de um tempo nem passado, nem presente, nem futuro, nem agora. De um tempo vazio, absorvido pelas atrações das mídias globalizadas. A “coisa” era toda entretenimento.


O “objeto”, em sua horripilante forma, dava-se a entrever em grupos de músculos posteriores à epiderme, à mostra a circulação do sangue venoso, arterial, como se todo o interior do corpo humano, protegido da visualização interna pela epiderme e derme, estivesse, na falta dessas, exposto, sem a proteção dos tecidos subcutâneos. Ela começava a desistir de tentar me convencer das vantagens de ser um escritor lagomorfo, leporídeo, em outras palavras, da espécie coelho, da qual provêm todas as raças domésticas que a humanidade conhece. Aquela coisa que desejava fanaticamente domesticar-me, exercer a colonização de meus sentidos, subvertendo-os aos interesses da globalização, estava sendo, agora, absorvida lentamente para dentro do grande leito de raios catódicos do monitor de tv que a trouxe à tona... Um pesadelo do qual eu gostarei de despertar. Sua voz, agora não tão nítida, ainda se fazia ouvir, diminuindo, gradualmente, de intensidade.


— Eu sou o “rei Mulatinho”, o comentarista Zé Ninguém, daquele jornal tvvisivo noturno que repete as mesmas provocações contra o governo do presidente Lula da Silva. Eu sou a cara cínica, espalhafatosa, de palhaço risonho, insolente, petulante, desonesto, desdenhoso, que quer se vender como inteligente, sério, criterioso, que se soma a outras forças da mídia venal que quer desestabilizar o governo da esperança que venceu o medo dos brasileiros de votar em candidatos que se identifiquem com suas causas sociais, com sua condição de cidadania roubada pelos tradicionais políticos do jogo do bicho, do jogo de bingo, do jogo dos “lobby” dos banqueiros da narcoditadura, dos jogos de palavras pagas pelos interesses da indústria globalizada da mídia que paga seu salário, e seus favores...


— Eu sou o eterno vigilante que garante que a liberdade não seja algo mais que uma quimera de dicionário. Eu sou a perversão da visibilidade social de meus próprios interesses sociais de sobrevivência "cromagnon". Eu sou a vergonha de disseminar a consciência de mim mesmo, de quem eu sou. Eu sou as artimanhas paliativas de uma sociedade genocida. Eu sou a política que paga os comentaristas da mídia tvvisiva, para que eles se tornem alguém com discursos que não têm outro objetivo senão fazer seus tvespectadores orgulharem-se de ser escravos.


— Eu sou as sombras da “alma do mundo” que odeia a dimensão solar do ser individual e do ser coletivo... Aquele que desintegra a vontade de cidadania e dignidade na mente das pessoas... Que transforma a sociedade numa patologia coletiva do consumismo desvairado... Eu sou aquele que quer sujeitar as pessoas ao único valor que considero e reconheço enquanto um valor social a preservar: a intranscendência bufarinheira das mercadorias do supermercado...


"De olhos escancaradamente fechados", fixei o lugar onde deveria estar a “coisa” horrenda. Não sei se impressionado pelo inusitado da agitação, vi apenas um ponto de luz fechar-se à altura da onde deveria estar o monitor de vídeo. O senhor Mercado desaparecera. Poderia ter sido sua presença uma mera alucinação? Uma ilusão? Um pesadelo?











O CONVITE





O Figueiredo convida-me para um fim de semana na casa de praia. Aceito. Chego lá numa sexta-feira, 20 de abril, vinte duas e trinta e cinco. No sítio, um tanto isolado, encontro um bando de pessoas algo estranhas. Mulheres falando sisudo, tatuagens nos ombros musculosos. Muitos dos marmanjos, excessivamente delicados, apertando-se, as manoplas alhures.


Umas tantas quantas pessoas já entradas na terceira idade, surpreendentemente energizadas. Aquele filho da mãe estará pensando que embarquei nessa grei? Fico na dúvida, será mesmo essa a casa do Figueiredo? Leio no verso do cartão o endereço, número: conferem. Ou será que, na realidade, essa é a turma dele? Não, não pode ser. Lembro de quando estivemos numa colônia de nudismo em Curitiba. O cara ficou tão excitado ao cruzar a ex-namorada, que teve de ficar de cócoras para o bráulio não ficar dando bandeira. Pode o cara estar a endossar essa sacanagem gls? Ou será que depois dos setenta, resolveu falar fanhoso, afetando os verbos? Não faz sentido. Resolvi entrar e conferir a balbúrdia. A coisa estava mais pra suruba punk. Nesse canto da sala duas namoradas concentradas num chupão de língua. Sentados no sofá, dois baita barbudos engoliam os pelos esbranguiçados dos bigodes, fazendo gracinhas com os dedos das mãos na cintura e ombros. Dançando em meio à sala e em parte da área do terraço, umas três dezenas de seres de libido “entendida”. O som mix dos metaleiros misturava-se ao sem cerimônia de carreirinhas da dona branca sendo aspiradas de uma bandeja grande de prata. Não, definitivamente, não pode ser a casa do Figueiredo. Ele sempre detestou drogas. Tão brusca mudança terá sido influência minha? Não sei. Muitas vezes ficamos de lero sobre a possibilidade de pessoas que lidam com criação literária destravarem a mente com uma cafungada de leve, ou com as brumas da cidadela mágica da maresia de um baseado. O Figueiredo sempre descartou a possibilidade. Achava que quem cria, cria na careta, na cara dura, não precisa de motivação neuronal.


Estou com a Daysinha, uma gata do vamos ver, do chega mais. Ela não se intimida com pouca coisa, já foi tirando uma nota de dez reais da bolsa e entubando uma tira de coca da bandeja. Não fosse a última, também não me teria feito de rogado. Apreensivo, não vejo a hora do Figueiredo chegar todo chamuscado de lantejoulas, me dá um abraço. Deus do céu, o cara pode até vir dando uma de beijoqueiro.


Os anos setenta possivelmente vão voltar na primeira década do Terceiro Milênio, ou na Segunda, mas ainda estamos em novembro de 1999. Dirijo-me até uma porta num muro interno que separa o pátio de uma área aberta. No descampado, mesinhas cercadas de cadeiras e tamboretes, comes e bebes à vontade, uma churrasqueira e alguns espetos de lingüiça, salchicha e carnes.


Um torpedo de marijuana circula de mão em mão. A fumaça tece desenhos fugazes no ar parado da noite de verão. Pinta um complexo de culpa. Quem diria, minha influência foi tão longe. Será que o Figueiredo resolveu aprontar todas, viver tudo que tem direito e acha que não viveu? Nunca é tarde pra ser feliz. Talvez tivesse a acreditar que a mente dele ia abrir que nem pára-quedas. Parece que ele levou mesmo a sério aquele dito que eu costumava repetir em conversas informais: “A mente é como pára-quedas, só funciona quando aberta”. Evidente que com outro sentido diverso.


Uma dúvida apazigua a consciência: ele não está em lugar nenhum da casa. Se todas essas pessoas forem da turma dele, com certeza jamais sentir-se-á um idoso abandonado. Isso mesmo Figueiredo, antes tarde do que nunca. A produção literária dele vai triplicar, quadruplicar? Toda essa lazeira de lazer vai mesmo abrir novos caminhos para a criatividade literária, ou ele vai começar ter palpitações cardíacas, achar que sou um grande filho da mãe, se é que todas essas mudanças devem-se mesmo à minha influência.


Noto que alguns olhares começam a ficar interrogativos, hostis, como a sugerir: “Que é que esse careta faz na minha festa?” Pego a Daysinha pelo cotovelo, sem maiores explicações vou puxando ela pra fora do ambiente, que me parece, pode ficar meio sobre o carregado. Entramos no carro e trato de sair fora. Lembro agora que aquela casa o Figueiredo vendeu há pelo menos seis meses.


O cartão com endereço é antigo. A praia dele é outra, a casa também. Obrigado, Figueiredo, por se manter o mesmo. Ufa, estou mais leve, sem responsabilidades sobre a suposta nova conduta do meu amigo. Em minha juventude fui preso, acusado de subversão e suposta corrupção de menores. Faltava agora, ser taxado de corruptor de meus amigos da terceira idade.





BabyBabí


“O Homem vive em múltiplos mundos.


Cada mundo tem uma chave diversa.


O homem não pode passar de um ao outro sem essa chave.


Sem mudar a intencionalidade e o correspondente modo


de apropriação da realidade.”


Karel Kosik


(Dialética do Concreto)





O garçom atende o casal até passar a cobrança da conta para o substituto noturno. Este, altas horas, estranha a demora de Dina e Xan em fazer algum pedido a mais nos comes e bebes. Normal estarem namorando abraçados, romanticamente, às três da manhã. Chove. Chato, está passando da hora de sair da jornada de trabalho.


Rumina: esses pequenos burgueses filhos da puta, nunca pensam nos outros. Acham que são os donos do mundo.


Chega até a mesa com a bandeja na mão, depositando-a frente ao casal, sugere: "Senhor, a conta, estamos fechando o restaurante."


Depois de observar a face do rapaz, baixa as pupilas ao olhar a moça pelo lado direito do rosto de Dina. Com seus botões, rumina subjetivamente o refrão da canção: Alguma coisa está fora da ordem. Fora da nova ordem mundial.


Os olhos demasiados abertos, esbugalhados, parecem fixar uma esperança inútil, uma longínqua realidade, possibilidade que, existindo, em nada vai mudar a lucidez da opção por uma possível, talvez inexistente, outra dimensão.


Excitados pelo "bright", teimam em permanecer adolescentes. A idade de ambos soma sessenta e nove primaveras. A atitude lembra a impulsiva libertinagem coletiva dos anos setenta. Após cinco anos de convivência, Dina e Xan comemoravam, a poucos momentos, a insustentável leveza do ser.


As condições econômicas favoráveis à rotina de mera dissipação. O delírio motiva a vivência da utopia, neles, mais forte que a realidade.


O gerente não consegue esconder a perplexidade. Tenta compreender por que um casal jovem, sarado, com tudo em cima, os caminhos abertos pela evidente condição social, apronta uma atitude radical dessas. Alguma coisa mudou, não apenas na rotina da casa, dentro dele mesmo, após o impacto interior causado pelas fotografias.


Uma tragédia a Peri e Ceci, a Bentinho e Capitu, a Tristão e Isolda? À Marília de Dirceu? A Romeu e Julieta? A novelas do horário nobre?


Dina levanta a voz, meio excesso etílico, o travo da cocaine nas mucosas, depois de um breve chupão de língua, o diálogo:


— Cara, divertido segurar essa onda... Sair fora das regras da gramática normal dessa vida... Vã. “Vã como a sombra que passa”: Que Bandeira.


— Minha Estrela da Vida Inteira, replica ironicamente a frase de Dina: "gramática normal dessa vida vã". Não fosse o Bandeira, seria lugar comum de Oficina da Palavra.


— Sem essa, carinha, piração normal é diferente. Não corta o barato, sente a poesia deste momento.


— Sem autopiedade, beleza? A vantagem da gente é poder contar com esse clima emocional energizado. Ter a manha de sair fora numa boa. Dina afeta as palavras, enrolando a língua após aspirar a branquinha a partir da ponta da unha grande.


— M a n e i r a m e n t e, tá sabendo?, sem culpas, sem rusgas, sem pulgas, sem pontos de fuga.


— Quem vai gostar são teus irmãos, cara, o bolo da herança vai ficar maior, provoca ela. Xan sente um frêmito friozinho de gozo, calor de desejo, percorre a espinha, subindo, degrau por degrau, nas saliências discóides da coluna vertebral. A sensação ascendente chega ao nicho mais propício da alma do mundo. Xan repete baixinho:


Nos confins inconscientes da mente



uiva o lobo da madrugada


do focinho cai a baba


feroz inveja do fremir das asas


do anjo dessa manhã noctívaga.


Dina, displicente, imita o movimento sonoro da voz em câmera lenta do companheiro. Ela replica, fazendo uma careta, no ritmo de uma sonoridade à bossa nova:


— Chega de pastagem, a realidade é que sem delírio não pode ser...


Ele olha para a namorada, ciente do ritual, deposita a cápsula dentro da taça de vinho, enquanto afirma:


— Quer vir comigo vem sem crise. Limpa, cabeça feita por você mesma. Vem sem culpa, não força a vontade. É querer ou não conhecer, “in loco”, a fonte donde jorram todas as onomatopéias, tá sabendo?


Xan sente a temperatura ambiente esfriar, a pressão arterial baixar rápido. Reage à inversão térmica do corpo, tentando persuadir Dina a ignorar a cápsula por sobre o guardanapo de papel, ao lado do prato vazio:


— Não venha, Di, se não quiser. Ele volta a sentir-se melhor. Já agora eufórico outra vez, energiza-se com outra cafungada. A pressão acima do normal. Esquisito esse efeito da droga.


Dina sabe que é impossível estar com Xan e não se influenciar com sua visão da alma do mundo. A mimese agora mais forte. Ambos criam e recriam os pensamentos. Deles fluem fluidos da imaginação, dos gestos eróticos. Comunicam-se sem palavras. Nela, a dúvida: Ingeriu ou não a cápsula?


Dina, calcanhar esquerdo sobre o assento, puxa e repuxa alguns pêlos da xota, sobre a calcinha, enquanto interroga Xan com o olhar:


— Tô toda torta de querência. Chega mais, chega mais, vem rosetar no banheiro, vem... Xan responde:


— Você, manhã do todo meu...Você, que cedo entardeceu...Você, de quem a vida eu sou...Eu sei, mais eu serei...Dina, em contraponto:


— Foder, minha calcinha azul...


— Foder... O seu cuzinho blue...


— Foder... Com essa vida eu vou...


— Eu sei, mais foderei... Xan muda, de repente, a direção das notas musicais:


— Ideologia... No que Dina, à Cazuza, canta:


— Eu quero uma pra foder...


— Ideologia... Eu quero uma pra foder...


No banheiro, de pé sobre o sanitário, rola um fuque-fuque à capitalismo selvagem: Fode, amor, sem medo de ser feliz. Esse mercado de xotas, essa ideologia de meretriz...Assim amor, isso mesmo, sem medo de ser feliz. Sim, sou aquela balzaqueana com voz de Barbie, cara de bonequinha e cabeça de bundinha.


“Fode pra valer, como essa realidade de tv. Fode toda essa geração xuxada, desencana. Fode essa bunda fofa. Dana com essas atrizes desses conglomerados da telinha, que divulgam as políticas das máfias, que globalizam as cabeças das crianças e jogan a juventude, no caldeirão fervente do delírio, das drogas, da pornografia, da ultraviolência.


Xan inverniza no tom agreste da namorada: Consumo e vaidade. Você é aquela lourinha vagabunda, toda charminho e consumismo. Com cinqüenta e gesticulando ridiculamente, pra mostrar que regrediu ao estado aborrecente do namorado.


— Assim, fode essa vaidade de fancaria tvvisiva, essa prepotência brega, essa indecência dos auditórios do tio Faustão, do tio Sílvio. Sou uma dessas lourinhas vagabundas da banheira do Gugu, globalizando o cuzinho pela tv.


Xan, faz o jogo sadomasô e pergunta a Di:


— Então, vadia, quantos pontos no ibope desse cassino pornô e suburbano? Esse programa tá ganhando do Gugu e do Faustão.


— Mais uma meu cravo, tua rosa continua aberta. Fode. freudianamente, o vinco, a fresta obscena dessa sua realidade. Essa balzaca gostosa. Dá mais uma em tua galeguinha (imitando conhecida vozinha infantilizada): Isso meu baixinho, mais umazinha no buraquinho de vermes de tua galeguinha...essa marrequinha brega do showbiz.


— Minha modelito de Niterói.


— Tua Gabí, cara, tesão fogoso. Wauuuuuhallaaaauu.


— Galeguinha sem vergonha, gostando do baixinho?


— Vê se não choga agora. Pênis filho da puta, não fica comovido agora. Pênis filho da puta, não te comove agora.


— Não, não. Sem essa, quando gozar, vou gozar fora essas crianças de samba canção. Vagabunda, você quer gerar uma cria com alma de samba canção, nesse mundo porco, nesse mundo cão? Putana tvvisiva, toda essa descendência de sanitário.


— Ahahahah, a carne dura, a carne viva.


— Tô com fome de vagido, vagina. Dessa buceta sagrada, maldita. Sistina. Apetite em você, minha guguzete que topa tudo por dinheiro.


— Sente meu mal hálito de mulher, de vaca, de menina. Mói, rói, dói, sabe sim, sim, sim, sim, sim. Tudo, tudo enfim, dê tudo estou pedindo, filho da puta. Tudo, tudo, tudo que puder, filho da puta escroto.


— Implora lourinha, gosto de ouvir essa bucetinha delirando, com aquela vozinha de prostituta da Babilônia, toda inocentezinha, entupindo os baixinhos de tudo quanto é artigo do dia.


— Pega de jeito, sem medo de ser feliz, tudo... Amor, tudo. Sem medo de ser feliz: gostoso, pega, aperta, essas nádegas nuas, essa bunda tua. Baixinho gostoso, fode, fode mais, ahhhaaahhahhmaaaaaiiiissss. Assim, demais, ahnnn, aiiihhh, demaisss. Vai mais, com força, esmigalha, avacalha, entranha, fundo, assimimim, booomomomomom. Demaismaiiiiiis. Haahhahahhhahsssimim.


Voltam à mesa e ao lero mais ameno:


— Tô empolgado com a perspectiva do inusitado, do diferente.


— “Tudo aquilo que tem vida e movimento será nosso alimento. Ele nos deu todas estas coisas... As ervas verdejantes. Mas não comereis a carne com sangue.”


Habituaram-se a dar força aos diálogos, a gostar desse jeitinho de fazer rolar o balanço das horas. Agora é tarde pra voltar atrás. O projeto dionisíaco, em curso. Desfiam e desafiam inexplicável tesão.


Xan carrega nas tintas ao desenhar o corpo dela na espaçosa toalha de papel, com muitos motivos diversos, como num mural à Picasso: o horror, a dor, com todas as cores e expressões de perplexidade, vistas e vidiadas numa sacanagem globalizada à “Guernica”.


O horror atualizado das caretas distorcidas dos desenhos desdobra-se em cenas dos programas policiais, das intermináveis novelas institucionais. Ela aparece coadjuvante de membros das respeitáveis quadrilhas do colarinho branco que avassalam o capital social do Planalto, de dentro dos gabinetes parlamentares.


Como se fosse um médium do astral coletivo da decadência nacional, da ponta da caneta preta de Xan, desenham-se personagens pornôs à “black-tie”, a contracenarem com todas as inocentes e festivas carinhas e bundas das ninfetas, tipo das que se vêem diariamente nos “talk-shows”.


Do bico de tinta brotam rostos em franca cupidez... A plástica dos assassinos presos, dos horrores domésticos nos bairros de classe média, nos periféricos. O estilo, mescla dos murais de Portinari e Picasso.


Dina imagina as mulheres na intimidade do mural social, ao mesmo tempo sádico, violento e pornô. Desdobram-se, as personagens, em sensualidade cumulativa: Os corpos pesados com as cabecinhas de bagre. Tipo as enormes giras morenas, sintetizadas na pele de barro do quadro Abaporu, da modernista Tarcila do Amaral.


Xandre está a persuadi-la a ficar. A disposição de seguir sozinho:


— Boa, essa Guernica Dionisíaca: Sexo, drogas, e o Plasma Vermelho daqueles dias. Mal vejo a hora de estar no Everest. Depois, flutuar pelos cimos da Gávea.


— Se puder, me acompanha pelos Pirineus e o Everest. Batendo delicadamente com a palma da mão no rosto dele, ela diz: Pára de me vidiar...


— Breve vamos estar a esquiar por entre as nuvens, nas estreitas frinchas das cadeias de montanhas do Oriente, entre quatro e oito mil metros de altura. Me acompanha, cara, não vai amarelar.


— Quem sabe vou chegar à “Via Láctea” pelo “Caminho de Santiago de Compostela”.


— O de Buñuel ou o do Paulo Coelho?


— Gosto em você, este estar longe da “inteligência” da platéia da Adriane Galisteu. Vem com tudo, tudo é teu, vem coelhinha emergente, com essas pupilas meigas à Gabí das Barcas.


Xan busca uma última saída para o impasse dionisíaco. Cria a ficção de verem-se, uma década depois dessa noite. Faz de conta que parou com a seqüência que vai chegar ao auge, quando ingerirem o alcalóide da noz-vômica, cristalino, incolor, o comprimido estimulante nervoso, de uso tóxico e deletério: a estricnina.


Xan supõe a ex-patricinha, uma década depois, agora senhora perua a caminho dos cinqüentinha. Não gosta da projeção. Ela faz várias poses. Ele a visualiza de muitas formas possíveis diversas, como se estivessem no mesmo local, uma década depois.


Pinta certa compaixão: tão nova, gostosa, vai embarcar nesse astral? Quis afirmar-se, mas as palavras saíram sem muita convicção: Deve gostar mesmo de estar comigo, ou está saturada dessa cultura de circo dos horrores. Prossegue visualizando em direção a um ponto além, como se querendo atingir uma distância , infinita, virtual.


O olhar dela adivinha uma luz no fim do túnel, enquanto ideoplasmiza: Uma pedra torna-se uma planta. Uma planta um animal. Um animal um homem. Um homem, o espírito de Deus.


Dina defende-se do golpe emocional, como se gritasse do fundo da alma, em defesa própria: Ninguém planeja, os instintos, existem. A vida enquanto tempo de ser pensada, planejada, plantada e colhida, inexiste. Nessa beligerante cidade cinza, tudo é compulsão. E o pulso ainda pulsa.


Ameniza ele:


— Homens vazios dos bares cheios. Lero-lero crepuscular. Esperteza noctívaga à antiga. Neurônios diluídos na fermentação etílica. Madrugadas de delírios insones.


— No geral dá pra se divertir... Mas posso escolher outro astral...ou nenhum. Sem essa de estar no papel de mãe e avó. Cristalizar revista Cult é dose. Não consigo, tá sabendo?


— Estou nessa apenas por uma questão de cheiro, ameniza Xan, não gosto do odor memorial, delirante, de naftalina da alma do mundo.


"Hanny baby, não diga que vai ter saudades do coração satânico da alma do mundo", ideoplasmiza Xan.


— Com certeza, ela responde como se tivesse ouvido a pergunta. E fala, não importando o significado apenasmente dela: ”A Primeira em cada Zona era da cor da lua. A Segunda, amarela como ouro; a Terceira, vermelha; a Quarta marrom, que se tornou negra pelo pecado.”


Para mostrar estar seguindo esse movimento interior que dispensa palavras, Dina gere a vontade de maneira natural, espontânea, telepática, não apenas pensa, faz questão de pronunciar:


— Limpa, estou limpa querido, totalmente livre de inclusões e impurezas. Tenha certeza: Se pintar uma saudade, vai ser do tesão satânico do coração selvagem da alma do mundo.


Olhando para o companheiro com divertida e tranqüila convicção:


— Tô fora da sala de jantar, do padrão Globo de qualidade. Da Direct tv.


Xan pousa serenamente as mãos sobre a cabeça e a cintura dela. Sente as luzes todas se apagando.


— Frio, muito frio.


A mente começa a mergulhar em luzes e imagens inéditas. Sorri ao dizer:


— Se algum dia voltar a essa Terra, vou lembrar que pintei um mural nas cores e traços...


O detetive da jurisdição é chamado para atestar se estão mesmo mortos. Mais tarde, pela cor da pele, o médico legista assina o óbito por envenenamento. Estricnina, à primeira vista.


O dono do restaurante, antes do fotógrafo policial, fotografa o casal. Nunca vira tal ternura em nenhum lugar. Não haveria de vê-la, acredita, em nenhum outro ambiente. Olha outra vez, com ares de estranhamento, os corpos inertes. Quem sabe poderia vender umas cópias, oferecer de brinde aos fregueses no próximo aniversário do restaurante.


Ao observar a imagem do casal, nas fotos da polaróide, experimenta certa sensação inusitada, transcendente, de paixão. Uma oferta essencial, que não está nos anúncios, nem se compra nas butiques dos shopping-center dos corações solitários. Não adianta negar, a coisa, o sentimento está lá, em imagens fotografadas. Como a máquina captou essa emoção? Ele, um cara tão vivido, tão carente dela. Não sabe, mas aí está. Estranho como uma rosa no asfalto da Paulista.


Permite-se embalar pela suavidade de cada segundo, como se só agora houvesse despertado para a bela e admirável intensidade quântica do pendular tique-taque.


Nas noites seguintes surpreendendo-se a bisbilhotar a onomatopéia cadenciada, a orbital balança do tempo, a tremular na freqüência cardíaca do marcapasso: taque-tique-taque-tique-tique-taque-tique...Sente-se muito distante da possibilidade de imaginar como aconteceu. Porquê ? Pinta um branco na cabeça só em pensar no que poderia ter passado pela mente do casal.


Sente-se privilegiado. Talvez tivesse capitalizado essa essência incapitalizável. Vai aproveitar e oferecer de presente para os principais fregueses que constam do cadastro da casa, no dia do aniversário de cada um deles. Uma cópia da foto desses namorados. A beatitude reflete-se através das pupilas solares. Sentindo um aperto no coração, com sotaque mineiro exclama, olhando para a foto: “Que coisa, sô!.”


Conhece um repórter da imprensa escrita que lhe deve favores. É bom de redação, vai criar uma ficção em cima dessa imagem estranha de inusitada ternura e intensa sensualidade. Não, nada disso, basta uma legenda nas fotos. Talvez uma frase de efeito, nada mais.


Pergunta-se: poderia haver algum problema jurídico? Telefona para o advogado, a linha está ocupada. Lembra de palavras lidas alhures: "Os amantes se perdem, o amor não se perderá jamais". O inefável amor presente nessas fotos.











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