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cronicas-->A FIGUEIRA -- 03/08/2003 - 09:35 (DANIEL CARRANO ALBUQUERQUE) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Tenho uma figueira no quintal. Impressiona-me sua resistência, pois já me pareceu estar à morte diversas vezes e surpreendeu-me em todas com a sua recuperação. Começou há doze anos, através de u´a mudinha de galho que plantei, incrédulo, não prevendo que, em pouco tempo, teria uma árvore de rica folhagem carregada de figos, inicialmente verdes, a primeira colheita premiando-nos com saboroso doce em calda feito pela esposa. Depois, o verde ia sendo substituído gradualmente pelo roxo e quando escapavam os frutos das bicadas dos pássaros, podíamos constatar quão doces e suculentas eram as suas polpas. Todavia, por desatenção justificada ou não, deixávamos de corresponder à generosidade do vegetal. O pobre sofria com o calor, quando ao solo ressequido, demorávamos a atirar a água e quando finalmente o fazíamos, ficávamos a admirar a imaginada alegria e alívio por parte daquelas folhas e caules. Perdi a conta de quantas vezes foi atacada por pragas. De todos os tipos. Uma das mais comuns, representada por minúsculos e numerosos insetos, deixava as folhas enegrecidas, encolhidas, ressecadas e condenadas a caírem precocemente, transformando-a em uma árvore desnuda e feia. Formigas quase destruíram suas raízes. Caracóis alojaram-se nas cascas de seus caules e à semelhança de visitantes mal educados, sugavam-lhe lenta e disfarçadamente. Pedantes larvas verdes de raias vermelhas devoravam, rapidamente e sem cerimónia, as suas folhas, deixando-as nuas como espinhas de peixe. Numa época em que deixamos a casa aos cuidados de outros moradores, quase foi asfixiada por um pé de maracujá, planta trepadeira que a envolveu e imobilizou-a como golpes de luta marcial. Salvamo-la a tempo, ceifando a intrusa. Em outra, por ocasião de uma obra no quintal, lhe foram jogados detritos, pedras, cimento e até cal. Ficou muito abatida, mas foi aos poucos se revigorando, o sol e a água medicando-a carinhosos, em todos os dias de sua convalescença. E a chuva de granizo? Só vendo para poder ter a exata noção do desastre em que se transformou.
E assim ela vem levando sua vidinha, entre trancos e barrancos, com donos desleixados que ainda se dão ao desplante de corarem de vaidade, na frente das visitas que lhes lançam galanteios: "Que beleza de figueira! Vocês estão de parabéns!" A mais recente das pragas foi a de maior duração. Atarefado, eu passava sempre por ela e diante da imagem triste daquelas folhas amareladas e "enferrujadas", prometia-lhe, sabendo intimamente que não iria cumprir, uma oportuna intervenção. Mas, um dia, vendo-a moribunda, sentindo-me terrivelmente culpado pela omissão, impulsionado pela situação de emergência, tomei a iniciativa, e ajudado pela minha mulher, arregacei as mangas e me pus a operá-la com serrote e faca, amputando todos os galhos doentes, ceifando todas as folhas e preparando uma terrinha bem irrigada. Ao final, olhamos para aquele "esqueletinho" e descrente pensei: "Agora é o fim". Muito pouco tempo, porém, foi preciso para me derrubar das minhas previsões pessimistas. O primeiro brotinho verde, pálido mas brilhante, deu o ar de sua graça e, aos poucos, foram aparecendo os outros, vagarosamente, as folhas surgindo deles, a natureza, em seu inequívoco milagre exibindo-se gloriosa, então.
Hoje, pela manhã, o sol removendo de minha pele, cuidadosamente, o frio que nela tem se instalado nesses últimos dias de inverno, dediquei-me a perder um longo tempo olhando e apreciando aquele pequeno arbusto. Admirando-o, respeitando-o, agradecendo-lhe. Aquele tronco sólido e comprovadamente resistente, aqueles galhos que insistem em ressuscitar, as raízes vigorosamente agarradas à terra solidária. Sem dúvida. Tem mesmo em comum. Não me importei com a hora. Fiquei ali, calmo e contemplativo. Tem tudo em comum. A minha família, meus irmãos, meus melhores amigos. As pessoas que passaram, fugazes, mas de quem ficaram doces e ternos resíduos. Troncos e galhos que vem resistindo a todo tipo de agressão e intempérie e, por mais cético que eu seja, acabo por me surpreender com sua abençoada resistência, sem alardes, sem bravatas, conformados, porém firmes e dispostos a rebater em novos confrontos. As folhas que crescem, fenecem e caem ao solo, incorporando-se sem que nos apercebamos às suas riquezas e revertendo-se em seiva que haverá de se tornar frutos suculentos a atrair os pássaros que com graça vem, a convite daquele banquete, alegrar, com seus trinados e seus bailados ricos de marotagem esta morada sedenta por cores, brilhos e sons. O povo de meu país, quanto mais carente mais generoso, com quem lido diariamente e como aquele enigmático vegetal, me é tão grato pelo tão pouco com que lhe sirvo, sem que se dê conta, ou sem que se importe com o quanto lhe devo. Generosa árvore, de pé, firme, esticada pelo sol, inquestionável exemplo de vida, a seiva sustentando-a para que me gratifique, ornamente minha casa e minha vida, agracie-me gustativa. Minha companheira, quantas chuvas de granizo, quantas pedras, quantos maracujás sufocantes, quantos momentos de sede por palavras e carinho negligenciados, as promessas anulando-se por conta de ações adiadas pelo cotidiano. Ainda assim, quanta vida, quanta sombra, quanta beleza, ternura, delícia e prazer, jamais rendidos. Os filhos, crescendo na velocidade dos ramos, invadindo, desejando saltar sobre os muros e sendo podados, malvadamente, nós impotentes em abrigar-lhes com mais espaço ou mais tempo. E a vida, limitada e limitando, frustrando-nos com a consciência do potencial nunca alcançado, o relógio ameaçador, as pragas nunca ausentes, os caracóis e as larvas sem descanso. Bendita pequenina árvore, camuflado sinal divino. Graças por abrir, ainda que fugaz, nossos medíocres corações.

Agosto de 2000 Daniel Carrano Albuquerque
E-mail: notdam@bol.com.br
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