"Na vida cotidiana, minha soi-disant sonhadora e solitária Charlotte era prosaica e gregária. Além disso, descobri que, embora incapaz de controlar seus gritos e impulsos emocionais, era uma mulher de princípios. Tão logo se tornou mais ou menos minha amante (apesar dos estimulantes, seu "nervoso mas impetuoso chéri " - um heróico chéri ! - teve algumas dificuldades iniciais, que, no entanto, compensou amplamente graças a uma fantástica exibição de carícias do Velho Mundo), a boa Charlotte inquiriu-me acerca de minhas relações com Deus. Podia ter respondido que, neste terreno, tinha a mente aberta; em vez disso, pagando tributo a um chavão hipócrita, disse que acreditava num espírito cósmico. Baixando os olhos para examinar as unhas, perguntou-me então se na minha família havia algum traço de uma certa raça estranha. Retruquei indagando se ela ainda desejaria casar-se comigo caso o avô de meu pai tivesse sido, por exemplo, um turco. Respondeu que não faria a menor diferença mas que, se algum dia descobrisse que eu não acreditava em Nosso Deus Cristão, aí então se suicidaria. Disse isso com tal solenidade que me causou um arrepio. Foi quando compreendi que realmente se tratava de uma mulher de princípios."
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[Vladimir Nabokov, em "Lolita", trad. de Jorio Dauster. Biblioteca Folha, pp. 76-77]
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