Medo.
Tentou não pensar, impossível.
Olhou os pés descalços.
Entreteve-se a lembrar do encanto que estes pés provocavam.
Mesmo a bola sendo uma bexiga de boi, os pés a dominavam completamente.
Medo.
A primeira vez que entrou em campo sentiu medo.
O medo não o impediu de chamar a si a responsabilidade do jogo e decidi-lo.
As pernas finas, cambitos.
Ágeis a subirem em árvores, em driblarem os adversários, a pularem o frevo; firmes a sustentarem o corpo de criança.
A fogueira reacendeu-lhe o medo.
Desviou o olhar.
De nada adiantou.
Tudo em volta lembrava o medo.
Até o mato, o imbuzeiro.
O medo da primeira vez que se embrenhou no mato.
Medo que não o impediu de caçar o bengo, como os antigos chamam o preá.
O mato passou a ser seu território, seu domínio, seu nsi, como dizem os antigos.
O medo ao subir na primeira árvore.
Agora, nem mesmo precisa de corda nos pés para subir em coqueiro.
Como se um raio lhe caísse sobre a cabeça, ele entendeu!
Agora ele entende.
Quando os antigos diziam que ele tinha medo no bõdãso (sangue), ele não entendia.
Pois sempre o trataram como um ambeko (menino) capaz de arago (lutar), um futuro guerreiro xucuru.
Agora ele entende que não era de marau (ficar com raiva), mas brigava se necessário.
O medo jamais o impediu.
Agora ele entende.
O medo e sua superação, esta a sua vida.
Ele entende e se dirige para a fogueira.
Pés descalços? não importa.
Pernas finas? cambitos? não importa.
Determinado, caminha lentamente, cabeça erguida, em direção à fogueira.
Agora ele entende o que é estar encantado.
Possuído pelos ancestrais que o conduzem à fogueira.
Os abanos tiram a cinza e deixam apenas as brasas vermelhas.
O encarnado das brasas o chama; encarnado, a sua cor predileta.
E o batuque.
Agora entende aquele frevo que diz:
"entra na cabeça, toma conta do corpo e acaba nos pés".
O batuque dos presentes parece ser o toque dos ausentes.
O batuque toma conta do corpo.
Rodopia sobre as brasas.
O seu ritual de passagem.
Segura as lágrimas de alegria e emoção.
Um guerreiro xucuru não pode chorar.
Não na noite do seu toré.
A sua primeira dança.
Aos quinze anos, a sua verdadeira noite de São João.
Agora já é um velho caboclo.
Velho caboclo! Velho caboclo! Velho caboclo!
Pois é assim que o chamam as vozes dos ancestrais:
- taiepu taispu! taiepu taispu! taiepu taispu!
Manoel Carlos Pinheiro
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