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Contos-->O vôo -- 19/06/2004 - 22:51 (Sergio Marcondes Cesar de Araujo Lopes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Não conseguia sentir frio. Era cobrir-se com o cobertor, e passar a transpirar. Sua esposa já não acordava mais para reclamar. Isso se repetira por umas três ou quatro vezes ainda antes da meia-noite.
Era sempre assim, um calor menopausico, suor generalizado, pesadelos aos borbotões, falta de fome no jantar e uma percepção esquisita de que o tempo passava de maneira cruelmente lenta. Sempre que tinha que viajar de avião a trabalho, tinha uma véspera dessas. Era um horror!

Durval não pensava diretamente naquilo, na viagem, no vôo, no que exatamente o fazia perder o sono, a fome, até a vontade de viver. Era público e notório que o medo de avião era um mal do qual ele padecia como poucos. E era algo recente, coisa de cinco anos pra cá. Até então se pegara divertindo-se ao ver o sujeito do assento ao lado fazendo o sinal da cruz durante a decolagem e curtindo os friozinhos na barriga durante as turbulências. Não era capaz de se lembrar como isso tudo começara, mas era um fato, e bem real.

Sempre sentia isso. Na hora de marcar a viagem era como se estivesse assumindo um compromisso para um terceiro, como se não fosse ele que estivesse indo viajar. Marcava a viagem nas horas mais inconvenientes, vôos partindo às seis e meia da manhã, voltando às dez da noite, aeroportos longe da cidade, companhias aéreas fuleiras, passagens mais baratas. Parecia que ele queria se provar, testar a sua capacidade de autoflagelação. Sentia-se um islâmico maluco durante aqueles rituais fanáticos.

Mas, na noite anterior ao vôo, o bicho pegava. Seu humor mudava “do vinho para a urina”. Já chegava do trabalho incomodado e tentando fazer da noite dos seus, algo bem pior do que a que ele prenunciava para si mesmo. Reclamava de coisas que jamais notara, como a disposição dos porta-retratos na mesa da sala, o penteado de sua filha e de manchas no uniforme da empregada.

Bernadete já estava acostumada com essas súbitas alterações no humor de Durval. Elas vinham ocorrendo mais ou menos de duas em duas semanas, geralmente às quartas-feiras. Bastava chegar em casa e ver que os sapatos de Durval estavam no chão da sala de TV. Era um prenuncio de que ele queria briga, queria sangue, queria que ela se manifestasse contrariamente à presença daquele par de sapatos no chão da sala, para iniciar uma pequena revolução dentro de casa. Com certeza a manhã seguinte iniciar-se-ia no aeroporto. Sem dúvida.

Durante o jantar alterava sua conduta de maneira bastante previsível. Começava quieto, introspectivo, pouca fome e poucas palavras. A segunda metade do jantar era o palco para que ele apresentasse a todos a sua capacidade de implicar com fatos estabelecidos e elaborar questionamentos irrespondíveis.
- Junior, quanto você tirou na prova de português?
- Pai, as aulas começaram há um mês, ainda não fizemos nenhuma prova.
- Então, qual foi a sua média no ano passado?
- Acho que foi sete e meio, mais ou menos.
- Como não se lembra!!! Que absurdo! É como me perguntar quanto minha área obteve de receita no ano passado. Eu tenho que saber. É tudo o que eu faço. Além do mais, sete e meio em português quer dizer que você não consegue aprender mais que setenta e cinco porcento do que lhe ensinam de sua língua pátria. Você acha que vão lhe ensinar de novo isso que você não aprendeu? É mais provável que você fique como esses milhões de semi-analfabetos que desconhecem a aplicação da crase, falam “menas” e começam uma resposta com ‘é que nem’. Isso, fora a fortuna que eu pago para esse colégio. Acho que eu deveria pagar apenas setenta e cinco porcento da sua mensalidade, e você pagaria o resto. Arranja um emprego como office-boy, ou vai tirar xerox na empresa de alguém, e paga a diferença entre o que você aprende e o que ensinam na sua escola. E em física, como você foi?
- Pai, a gente não aprende física na segunda série, eu acho que é só no ginásio.
- Durval, não apoquente o menino! Ele tem apenas 8 anos e ainda não merece essa ladainha pré--embarque. Além disso, ele tem excelentes notas na escola.
- Tá bom, mas a gente ainda volta a falar desse assunto. Deixa o primeiro bimestre acabar e vamos analisar a sua performance.
- Senão seu pai vai lhe demitir, ou colocá-lo à disposição do departamento de RH para uma recolocação, filho.
- O que, mamãe?
- Nada, Júnior! É brincadeira da mamãe com o papai.
Bernadete tinha uma habilidade admirável no lido com essas situações. A destreza como ela desarmava Durval quando ele aparecia como o Sr. Hyde, e era capaz de transformá-lo na versão infantil do Dr. Jeckyl era algo que poderia ser usado nas negociações de paz no Oriente Médio.
Após o jantar Durval mudava sua rotina. Ao invés de dirigir-se à sala de TV e procurar por algum seriado americano, ou por qualquer transmissão esportiva, ele dirigia-se ao seu quarto, tomava um longo banho e deitava-se para ler. E isso era só em vésperas de vôo! Parecia que o Durval mantinha isso como um roteiro sagrado para noites pré-embarque. Lia em média quatro noites por mês. Permanecia lá, estirado na cama, monossilábico lendo aqueles livros estúpidos a respeito de carreira, negócios, liderança e outras balelas.

Até por não estar habituado com a leitura (lia sempre os mesmos 6 ou 7 livros, que nunca terminava e sempre retornava ao início), com um pouco mais de uma hora e pouco, fechava o livro e chamava Bernadete para a cama. Berna, geralmente estava no computador fazendo os relatórios de seus pacientes (Bernadete é psicóloga especializada em crianças e trabalha em uma pequena escola cuidando da rotina de seus alunos, o que explica a sua habilidade e eficiência no trato com Durval - o pai).
Lá vinha a Berna, com a boa vontade de sempre, encher o marido de carinhos e tocar finalmente no assunto que se mostrava o cerne da questão comportamental da noite de Durval.
- Você vai viajar pra onde amanhã?
- Eu?! Como é que você sabe? - Perguntou um Durval cara-de-pau pra burro.
- É só um palpite. - Respondeu Bernadete, dissimulada que só ela.
- É, eu vou a Florianópolis. Tenho uma reunião com uma empresa associada à nossa na hora do almoço. E devo retornar ainda pela tarde.
- E a que horas você deve estar no aeroporto?
- Seis e meia da manhã! Não é o fim da picada?
- Mas por que tão cedo, meu amor?
- O vôo decola às sete e meia, devo chegar lá entre nove e nove e meia da manhã.
- E não tinha nenhum vôo mais tarde, que chegasse em Floripa mais perto do horário da reunião?
- Tinha, mas era um vôo mais caro, e o pessoal na empresa está de olho nos custos. Acho que pode demonstrar meu comprometimento com a política de contenção de despesas da empresa. Sabe como é, né? Pensar como empresário.
- Pensar como empresário e viajar que nem peão. Faz sentido, mas não pra mim.
- Berna, não adianta me encher agora, já são mais de onze e eu preciso acordar às cinco. Vamos sossegar e dormir.
- Mas, se você quer dormir, por que me chamou até aqui?
- Para que você durma junto comigo.
- Ta carente, nenê?
- Não é carência, é amor.
- Pronto, ganhou. Vou escovar os dentes e volto pra fazer você mimir.

A noite era um inferno. Os pesadelos se revezavam, o tempo não passava, mas estava sempre perto da hora de acordar. Da uma da manhã para as três e meia era muito rápido, mas a partir daí, era uma longa e tortuosa noite.

Nessa noite especificamente, Durval acordara às três e vinte e três da manhã e não conseguiu mais dormir. Encarou os problemas térmicos. Rolou para a direita e para a esquerda, contou carneirinhos e outros mamíferos, tentou até acordar a Bernadete, mas tudo foi em vão.
Resolveu então dedicar alguns minutos a uma reflexão seria e minuciosa a respeito de seu problema com o transporte aéreo. Sim, não era só o medo de estar em um avião, ele tomara tal ódio pelo meio de transporte que passara a boicotar veladamente o avião.

Quando ouvia no radio ou na TV que houvera um acidente aéreo, comemorava em silêncio. Com a ascensão dos números de vítimas, além de tornar mais improvável que ele se tornasse uma, por uma questão de estatística, acreditava que o meio passaria a ser mais boicotado, evitado e também mais cuidadosamente mantido. Era muito bom saber que aconteceu com os outros, pensava ele, num raciocínio que jamais lhe promoveria em qualquer empresa. Já se flagrara no computador, fazendo encomendas internacionais de CDs e livros, via internet, e solicitando que sua remessa fosse efetuada via navio, cerca de 40 dias mais lento que via avião e poucos dólares mais barato, achando que com isso desprestigiaria o transporte de carga aéreo, e se fosse seguido, as fabricas de aviões dariam menor prioridade aos aviões de carga e tomariam maior atenção e dedicação aos aviões de passageiros, aumentando a segurança de Durval em seus périplos profissionais.

Durval começava a se dar conta de que precisaria de cuidados profissionais, que ele realmente tinha um problema, mas não seria nada que pudesse ser resolvido naquela noite, em meio ao suor e aos pesadelos, e aos carneiros que ele tinha, por hora, como únicas companhias.

Questionou seu medo, foi fundo no mistério que o assombrava há alguns anos. Por que ele temia tanto voar?
Seria medo de que o avião caísse? Obviamente que sim. Mas por que esse medo era tão irracional, tão natural e tão resistente às estatísticas e aos fatos? Isso sim, era inexplicável, um homem de 36 anos, curso superior completo, colesterol em dia, chefe de família, chefe de departamento em uma multinacional, bom filho, católico quase praticante. E nessa situação?! Ele não pode ter medos simples que outros não tem, e, com certeza os outros milhões que tomam aviões todos os dias no Brasil e no Mundo não fazem o mesmo esforço que ele para esconder esse pavor dos outros passageiros. Não pode ser possível que todo mundo no avião finja melhor que ele que está tudo bem, que nada pode acontecer de ruim.

Certa vez ouvira de um taxista no Rio de Janeiro a seguinte frase:
- Eu, andar de avião? Nem a pau! Você acha que eu tenho coragem de voar num troço mais pesado que o ar, movido por turbina e que foi inventado por um brasileiro?!?!?

“Vox populi, vox Dei” — A voz do povo é a voz de Deus. Será?! Durval, particularmente achava que Deus deveria ser um pouco mais direto com relação a certos assuntos, como por exemplo, esse.

Quatro e cinqüenta e seis. Durval resolveu poupar Bernadete do ruído ensurdecedor do despertador do rádio-relógio, um barulho insano, cientificamente repetitivo, que seria capaz de tirar qualquer um do coma mais profundo e pô-lo em pé, pronto para uma prova de cem metros rasos. Levantou-se e foi ao chuveiro iniciar um longo e lento ritual que se nascia no chuveiro e só terminaria no salão de desembarque do aeroporto no final da tarde do mesmo dia.

A sensação era estranha, mas não era nova. Sentia sempre a mesma coisa desde a época do vestibular. Toda vez que teria um dia difícil, desagradável, tudo funcionava em contagem regressiva Era na base do “só falta uma reunião, um almoço, uma decolagem, uma aterrissagem, e um táxi”.

Eram cinco e quarenta quando ele, já devidamente uniformizado - terno, gravata e camisa nova - entrou de volta no quarto para se despedir da Berna.

- Meu amor, já estou indo pro aeroporto. Sussurrou ele com jeito de quem quer mostrar que está sofrendo mas não quer falar.
- Vá com Deus, querido. E fique calmo. Vou fazer o jantar, hoje. Você está lindo!

Nada daquilo era importante. Jantar feito por ela? A Neide cozinha melhor, e ganha pra isso. Ficar calmo? Como assim ficar calmo? Trair toda a minha natureza só porque ela pediu? E esse papo de “você está lindo”? Ela nem abriu direito os olhos, e o quarto estava um breu. Preferia ter ouvido berros de “não vá meu amor, largue tudo e fique comigo”, “invente uma desculpa e não vá”, “estou tendo um mau presságio, é melhor você não ir hoje, meu bem”. Preferia uma cúmplice do que uma incentivadora.

Durval entrou no quarto do Junior e beijou-o no rosto, repetiria o mesmo ato no quarto da Julinha, quase que se despedindo, para o caso do pior vir a ocorrer.

Seis e vinte, aeroporto de Congonhas, uma miríade de executivos desfilando ternos, em sua imensa maioria de gosto duvidoso, e pastas recheadas de notebooks e documentos importantes. Pessoas que, no geral, sentem-se mais importantes na empresa por que viajam a trabalho. Que ridículo! A empresa paga a passagem e o cidadão perde um dia inteiro. E ganha milhas, para ir de um canto a outro do país para fazer uma reunião e voltar, geralmente de mãos vazias e uma sensação hipócrita de dever cumprido. Sentia uma certa raiva dos executivos empolados que cruzava no saguão do aeroporto. Na verdade torcia para que algum deles pisasse no seu pé, o que o permitiria aplicar uma surra inesquecível numa daquelas fraudes engravatadas.

Pegou a fila de “check-in”, e verificou que o seu vôo estava no horário. Era o segundo da fila quando recebeu em sua canela uma tremenda cacetada vinda da maleta do sujeito à sua frente, que além de não notar, continuou balançando a maleta. O sujeito, um gordo de temo marrom, camisa marrom, gravata marrom e meias e sapatos marrons, parecia extasiado naquela fila de check-in. Provavelmente ele enfiaria na mala de mão os talheres e os chocolates servidos durante o vôo, afanaria o jornal distribuído no avião e tentaria entrar na cabine do piloto durante a decolagem ou a aterrissagem.
Durval capitulou e preferiu deixar quieto.

Primeiro da fila, gordo sendo atendido, eis que uma voz vinda da caixa de som convoca os passageiros do vôo 792 com destino a Palmas, Tocantins, a apresentarem-se urgentemente ao balcão de check-in para não perderem o vôo.
Três sujeitos fazem de Durval a linha de chegada de uma corrida absolutamente nonsense em busca daquele balcão. Sem a menor cerimônia, os três postam-se à frente dele e procuram chamar a atenção das moçoilas que atendem os passageiros.

- Já vai, Senhor. Os senhores podem aguardar aqui mesmo, à frente desse senhor de camisa azul.

Na minha frente? - Pensou Durval. Camisa azul? O que há de anormal em minha camisa que a possa tornar característica de diferenciação? Camisa azul é chique, caceta! Cambada de bregas! Cafonalha!

Eram sete e dez, e havia três passageiros com destino ao Tocantins na sua frente. O que alguém pode querer fazer em Tocantins? Fazer de importante, nada! - Ponderou Durval.

O gordo agradece a moça e vira-se para sair da frente dos três atrasados, olha bem no rosto de Durval, aproxima-se, e com um ar inocentemente bobo lhe diz:

- Ainda bem que eu escapei desses caras, hein? Maior mico, né campeão!?

Durval esquivou-se da maleta que se dirigia à sua cintura e ficou prostrado, olhando aquele paquiderme se retirar.
- Mico!?! Campeão!?! Quem esse cara pensa que é? Gordo idiota, cretino, estúpido, trouxa, babaca, corno. Corno não, deve ser virgem essa bicha! Cafona!

Voltou sua atenção à trinca que ia a Palmas. Custava a crer que esses caras eram sérios. Dez minutos para o seu vôo decolar e ainda estava em quarto numa fila com seres que têm negócios no Tocantins. Até agora não podia ser pior.

Sete e vinte e cinco. Não agüentou. gritou, o mais discretamente que um grito permite, para a moça do balcão:

- Mocinha, eu acho que você se esqueceu dos que vão para Florianópolis. Eu preciso fazer o check-in, senão vou perder o vôo.
Sem olhar diretamente para ele, a moça respondeu com se fosse programada.
- Senhor, fique tranqüilo, o vôo está com um pequeno atraso. O Sr. não tem com que se preocupar. Tudo está com tempo de folga.

Durval olhou automaticamente para o placar com os horários dos vôos e notou, de primeira, que seu vôo havia sido postergado para as oito e vinte da manha. Fingiu não se incomodar e permaneceu sereno, aparentemente sereno.

- Fique frio, irmão. Você chega ao seu destino antes da gente, ainda. — Dirigiu-se a ele um sujeito magro, seus quarenta anos, cavanhaque e botas de caubói.
- Ah, tá! — Replicou um monossilábico Durval, que preferia a resposta que lhe veio imediatamente à cabeça:
- Irmão? Você acha que meu pai encararia a sua mãe, seu jacu de uma figa. Você acha que alguém lá em casa teria uma barbicha dessas, palhaço?! Se depender de mim seu destino será alcançado rápido e de forma dolorosa, seu caubói de uma figa. Não gostou? Vem pro pau!

Sete e cinqüenta. Durval deixa o balcão e, após passar três vezes pelo detector de metais que insistia em denunciar uma moeda que estava dentro do forro de seu terno, ele adentra a sala de embarque.

- Um cafezinho, por favor.
- Só tem chá.
- Um chá, por favor.
- Chá do que?
- Chá de qualquer coisa, minha filha, menos chá de cadeira, esse vocês já me serviram faz algum tempo. Eu não gosto de chá mesmo.
A moça do chá percebeu que estava prestes a pagar pelo erro de outros e, prontamente, entregou ao Durval um chá de camomila.

Durval olhou de forma panorâmica a sala de embarque e notou que não havia um único lugar vago para que ele se sentasse. Dirigiu-se a uma mesa de apoio, onde jaziam duas bandejas com salgadinhos incomíveis antes das onze da manhã (durante alguns segundos ponderou se havia alguma espécie de nutricionista supervisionando aquilo, ou ficava a cargo do pessoal de manutenção mecânica dos aviões) e lá colocou sua pasta e seu chá, para que ele procurasse por algum tipo de leitura para após o jornal de bordo de praxe.

Sempre tinha em sua pasta alguma espécie de leitura para momentos como aquele. Fuçou e encontrou uma “The Economist”, de dois meses atrás, porém mais virgem que uma freira. Retirou-a da pasta e reservou-a para leitura de bordo.

Fechou sua pasta e, de pé, deu outra panorâmica no lugar. Olhou mais uma vez com desprezo para os salgadinhos incomíveis e flagrou o gordo de marrom enchendo uma das mãos com uma espécie de enroladinho de salsicha, ou algo semelhante. O gordo deu-lhe um sorriso e, com um salgadinho na boca lhe disse:

- Esses aqui são o bicho! Você experimentou? — Durval pode ver pequenos pedaços de massa folhada voarem da boca do cidadão em diversas direções.
- Não, não experimentei não. — Queria dizer quem era o bicho ali, mas apanharia com certeza.
- Prove um, você não vai acreditar.
Durval sentiu um ímpeto quase incontrolável de lhe dizer que já não estava acreditando naquela cena bizarra mesmo, mas com um gesto desconexo procurou demonstrar que não iria experimentar, que não gostava daquilo. Achou que não foi antipático. Tinha certeza de que não havia sido simpático. Mas exigir simpatia àquela altura do campeonato era querer o tal leite de pedra.

Procurou continuar sua panorâmica do ponto em que tinha parado e viu um assento livre do outro lado da sala de embarque. Pegou sua pasta pela alça e dirigiu-se até lá, ignorando o gordo que parecia continuar devorando os enroladinhos e outros quitutes.
Sentiu sua mala pesada demais, mas creditou isso à sua má-vontade em estar ali, naquela hora e fazendo aquilo. Ouviu risos abafados e reparou em várias pessoas olhando em sua direção. Ouviu palmas aparentemente solitárias, imaginou que alguma celebridade estivesse ali, algum empresário, mas capitulou, e em um microssegundo desenvolveu um raciocínio que lhe levava à conclusão de que ninguém seria merecedor de palmas isoladas e risos abafados ao mesmo tempo. E era bem razoável que concluísse isso. Olhou para trás e viu uma cauda de tecido branco se arrastando atrás dele. Sentiu-se uma noiva. Centenas de rolinhos de salsicha rolavam para baixo das cadeiras e uma vasta gama de outros salgadinhos se dispersavam pelo caminho que ele vinha fazendo rumo ao seu assento vazio. As palmas eram do Gordo, que mexia os lábios de forma a deixar claro as palavras “muito bem” e fuzilava-lhe com um olhar dos mais sinistros jamais vistos por Durval. A toalha da mesinha de apoio havia ficado presa na pasta dele, e agora aquele monte de executivos sonolentos tinham um bom motivo para rir antes das oito da manhã, e teriam uma história engraçada para contar durante o dia.
Passado aquele momento trágico, Durval fingiu que não era com ele. Pisou em uma parte do tecido, que escapou da pasta e não se alterou. Desistiu de sentar-se na cadeira vazia e foi ao banheiro “dar um tempo”.

Do banheiro Durval ouviu o chamado para o seu vôo. Dirigiu-se ao portão de embarque e não pode deixar de notar os olhares de galhofa dirigidos a ele pelos que estavam no salão. Entregou seu cartão de embarque à mocinha da porta e dirigiu-se ao avião. Pasta na mão direita e “The Economist” na mão esquerda, lá foi ele rumo ao seu maior inimigo nessa encarnação, o avião.

É estranho como existe uma certa corrida velada rumo à escadinha de acesso ao avião quando se está na pista. Durval não se conformava com aquela demonstração mesquinha de afobação irracional. Lá estava ele, andando a passos normais rumo à aeronave, e ao seu lado um senhor lá pelos seus 55 anos, caminhando nitidamente apressado rumo à escadinha. Como o cidadão já estava a lhe ultrapassar, Durval sentiu-se no direito e na obrigação de acelerar um pouquinho seu passo. O velho não se fez de rogado e apertou o andar um pouco mais, no que foi prontamente respondido por Durval. Chegaram quase extenuados à fila de embarque, Durval uma cabeça à frente de seu oponente. Evitaram contato visual, e Durval foi um pouco mais bem sucedido em evitar ofegar, ali na fila.

Entrou no avião e não encontrou nenhum jornal no carrinho onde eles habitualmente aguardam os passageiros, logo ao lado da porta de entrada do avião. Não conseguiu se fazer perceber pela aeromoça e acabou sendo levado pelas pessoas que vinham atrás dele na fila rumo ao seu assento.

19F. Tentou olhar à distância e, aparentemente conseguiria viajar sem ninguém ao seu lado. Já era um conforto, poder se espalhar entre dois assentos, poder sofrer à vontade, transpirar sem vergonha de ser notado tão de perto.
Seu assento ficava bem sobre a asa, e até hoje ainda não conseguira desenvolver uma teoria de qual o melhor lugar para se sentar em um avião. Ouvira de alguns que os assentos da frente balançavam menos, de outros ouvira que, em caso de acidente os assentos do fundo seriam mais seguros. Ele bem que achava que assento nenhum em um avião pode ser qualificado de seguro.
Seu assento era o da janela, acomodou-se, guardou a revista na bolsinha em frente, e procurou relaxar. Passou a dedicar os momentos pré-decolagem a torcer para que ninguém sentasse ao seu lado. Olhava para os que entravam no avião e se regozijava ao vê-los se espremendo ao lado de outros passageiros.
O movimento de entrada já estava praticamente cessando quando, de repente, como que brotando do chão, surge ao seu lado o gordo de marrom, como um cocô gigante. Com um sorriso estúpido estampado no rosto feio, ele profere:
- l9! É aqui?
- Não sei, quer dizer, sei lá. - Respondeu Durval com uma dor aguda bem na nuca, uma sensação de mal estar que parecia ter chegado para ficar.
- É sim, seremos vizinhos nesse vôo.

Ao se acomodar na poltrona, o gordo deixou bem claro que Arquimedes estava realmente certo, e aquele espaço não poderia ser ocupado pelos dois ao mesmo tempo. Durval sentiu as pelancas do cocozão expulsarem o seu braço da divisão das poltronas e sentiu-se comprimido pelo corpanzil do paquiderme. Aquilo não iria melhorar. Com certeza não iria melhorar.

- Avião é o máximo, né? Que invenção!
- É, é mesmo. — Durval sentia-se constrangido de uma maneira inédita.
- Revista em inglês, hein! É sua?
- Sim,é minha.
- Chique, hein! O que você faz? Deve mandar, né?
- Como assim? Eu trabalho com equipamentos de telefonia.
- Paulo, sub-gerente nacional de vendas da Juntiar.
- Não, meu nome é Durval e eu traba...
- Você não entendeu, eu sou o Paulo, e sou sub-gerente nacional de vendas dos aspiradores profissionais Suckwell, da Juntiar, empresa nipo-neozelandeza, com mais de dois mil funcionários em mais de dezessete países.
- Ah, legal, parabéns! — Parabéns!?!? Durval perdera o pé do diálogo, começara a procurar o saquinho de vomito, sentia algumas náuseas. Isso não podia estar acontecendo. Não com ele. Não em um avião. Não esse sujeito.
- Obrigado. E você, manda ou não manda?
- Mando o que? Não entendi.
- Deve mandar, né? Modesto, se fazendo de desentendido. Qual é o seu cargo lá?
- Sou Diretor de Vendas. A empresa é a Zaptel.
- Diretor, é? Manda muito, então!
- Acho que vamos decolar. Preciso fazer minhas orações.
- Orar pra que? Isso aqui não cai nem a pau. E se cair, não tem jeito mesmo. Você acha que vai convencer Deus de alguma coisa agora? O homem lá não muda de idéia, meu!

A desculpa da oração fora infeliz demais, agora estava exposto às teorias religiosas do cocozão.

Durval fechou os olhos e fingiu estar entrando em alfa. Enquanto isso, o avião taxiava na pista e punha-se pronto para a decolagem.

Essa era a pior parte, Durval fixava os olhos na luz de “apertar cintos” e esperava até que ela se apagasse, pois era um sinal de que o piloto estava certo de que não haveria movimentos bruscos, o que Durval associava diretamente à desgraça. Com a ausência de movimentos bruscos, o potencial de desgraças ficava limitado ao inesperado, o que já era alguma coisa menos incômoda.

Assim que o avião tirou as rodas do chão, Paulo deu um tapa na coxa esquerda de Durval que lhe ativou o mais automático dos reflexos musculares, fazendo com que sua perna se estirasse e o meio de sua canela se chocasse contra a parte inferior do assento à sua frente.

- Ai!
- Pô, Durva, o que foi? Você parece sofrer demais com avião, né? — Era inacreditável como essa besta era incapaz de se dar conta do ridículo de suas atitudes e do incômodo que ele era.
- Não, até que não. — Falou mecanicamente Durval, olhando de maneira fixa para a luz de “apertar cintos”, ainda acesa.
Nesse momento o avião fez uma curva bem fechada para a esquerda, o que fez Durval fechar os olhos e jogou o Paulo-Gordo-de-marrom-Cocozão-Subgerente-de-alguma-merda-que-já-não-lembrava-mais ainda mais para cima dele, gerando-lhe uma mistura de sensações desagradáveis que lhe faziam quase desistir da vida.

A luz se apagou logo em seguida, ao mesmo tempo em que, sem a menor cerimônia, Paulo pegava a “The Economist” de Durval e começara a folheá-la como um inglês analfabeto normalmente o faria - rapidamente em busca de figuras, imagens e propagandas.

O comandante anunciou que o vôo até Florianópolis deveria tomar cerca de 90 minutos, e adiantou que haveria, em breve, um serviço de bordo para os passageiros.
Nesse momento Durval concluía que estava sendo um bom negócio a troca da revista pelo silêncio do Paulo.
Não havia conforto algum para Durval. Esquecera-se de tirar o paletó, e agora isso seria inviável com a presença de um rinoceronte esmagando-o contra a escotilha. Mal conseguia mover os braços, e como não conseguira um jornal, estava sem leitura de bordo.
Olhou para a bolsinha em frente ao gordo, e viu uma dessas revistas da própria companhia aérea, pensou em pegá-la mas teria que pedir para o Paulo, pois seus braços, de maneira alguma chegariam sozinhos até lá. Desistiu, nada pagaria a reabertura do contato verbal entre ambos.

Foi nesse exato momento que a maldita luz do “apertar os cintos” acendeu-se, e o piloto anunciou:
- Atenção, senhores passageiros. Estaremos atravessando período com provável turbulência. Peço a todos que retornem às suas poltronas e observem os avisos luminosos de apertar cintos.

Como? Só isso? E quanto tempo vai durar isso? Qual o risco de acidente? O cara não vai nos reconfortar? — sofreu em silêncio um Durval pré-pânico.

- Xiiiiiii! Agora vai virar montanha-russa. — Previu o cocozão, devidamente ignorado pelo Durval.

Nada aconteceu no primeiro minuto. O gordo, impassível, folheando a revista como se estivesse na sala de espera de um consultório. Durval começava a transpirar nas palmas das mãos.
O que matava era a espera. Durval contava com a possibilidade do piloto ter se enganado, de não haver nenhuma turbulência. Era possível. Improvável não é impossível!

- Você não vai comer as balinhas de leite? — Perguntou um Paulo visivelmente preocupado com a insuficiência da quantidade servida na entrada.
- Não, você quer?
- Não, acho que não. Obrigado.

Durval estranhou, mas não se manifestou.
Já na segunda bala, feliz por estar saboreando algo, restabelecendo suas atividades vitais, Durval foi atirado mais para o lado do que já estava pelo braço gordo do gordo, que buscava de forma mais que selvagem o que sobrava das cinco balinhas distribuídas à porta, na entrada, antes recusadas pela besta obesa. Jogado para o lado, Durval viu ao mesmo tempo a subtração de suas balinhas e um generoso perdigoto bem viscoso dirigir-se, parte para sua camisa e parte para sua gravata.

- Acho que vou aceitar. — Avisou tardiamente o abjeto cidadão. - Tá esquisito esse negócio! Cadê a turbulência? Cadê o apavoro? — Perguntou o cocô, desavisado do risco que corria ao potencializar os medos de Durval.
- Não tá esquisito nada! Tá ótimo assim. — Esclareceu Durval, concomitantemente ao primeiro solavanco.
- Içaaaaaaaa! — Divertiu-se imbecilmente o gordo.

Durval retesou todos os músculos do corpo. Sentia uma espécie de cãibra no estômago. A boca seca já grudara a língua ao céu da mesma, suas mãos apertavam as próprias coxas, a respiração era irregular e razoavelmente difícil. Os olhos fixos na luz, como se ela pudesse apagar sem mais nem menos, e com isso cessariam os sacolejos, que agora estavam acompanhados de pequenas quedas e subidas, que causavam uma revolução nas entranhas de Durval, e pareciam causar orgasmos no gordo.

- Não dá pra dizer que isso aqui não dá prazer!
Por um segundo Durval se abstraiu de seu drama, e se perguntou se esse sujeito já havia tido um orgasmo, com sexo, ou isso era a sua maior fonte de prazer. Não queria morrer ao lado daquilo.

Parou. De repente o avião parecia deslizar sobre um carpete, parecia flutuar firmemente rumo a Floripa. Como se não houvessem passado por nenhuma turbulência. Ao mesmo tempo a luz de “apertem os cintos” se apagou.

Aquilo era fonte de uma sensação de alívio que não tinha paralelos para Durval. Seu corpo relaxou, parecia que ele estava desmontando. O Gordo continuava a folhear a revista, como se estivesse em um ônibus leito, parado.

- Acabou? — Perguntou o gordo
- Não, foi você que se acostumou demais à turbulência. — Não agüentou mais Durval.
- Você não está bem, né, campeão?
- Estou sim, estou bem mesmo.

O clima entre os dois piorara significativamente, a ponto de Paulo devolver silenciosamente a revista a Durval, que por sua vez fingiu não reparar na devolução.

- Senhor, alguma coisa para beber? — Perguntou a aeromoça estendendo o braço e entregando a Durval uma bandeja com o que deveria ser um café da manhã.
- Um suco de laranja, por favor.

Durval deixou de lado as bolachinhas e afins. As duas míseras balas de leite que salvara da fúria faminta do seu vizinho balofo já lhe foram boa fonte de reposição de energias. E foi direto ao sanduíche quente, uma espécie de misto com tomate, e um molho até que bem saboroso.

O tal Bauru servido pela aeromoça era quase desonesto! Um sanduíche considerável sem-vergonha, num pão massudo, e com um recheio que apresentava um apresuntado colado em queijo tipo chedar, em temperatura muito acima do recomendável.
Durval queimou o céu da boca na primeira mordida, tentando subitamente minimizar os efeitos maléficos do calor da comida, com a tradicional bafejada vaporosa para cima, tudo num processo que visava o máximo de discrição possível.

- Nossa Senhora! Isso é horrível! Quase como chutar o pé da cama no escuro, com o dedinho do pé! O apressado come quente, ou cru. Já dizia minha avó.

Durval decidiu que aquela era a hora. Não era mais humanamente possível aceitar aquilo. O cara estava lhe aplicando uma surra de chatice.

- Por favor, peço-lhe a fineza de não mais dirigir a palavra à minha pessoa. Não quero mais ouvir sua voz, nem ver seu rosto. Nem hoje, nem nunca! Eu odeio o senhor! Desculpe, mas é verdade!

Aquilo fora constrangedor demais para Durval! O gordo assimilou bem o golpe. Ficou mudo por um instante, contemplando Durval, antes de nitidamente investir uns segundos olhando ao redor para ver se aquilo fora notado pelos outros. Durval partilhou da mesma curiosidade, mas ambos ficaram sem a certeza de que aquilo ficara entre eles.
O silêncio perdurou mais uns minutos, quando Paulo levantou-se e disse em voz nem baixa nem alta:

- Viajar com nego cagão é uma merda! Vou mudar de lugar antes que a moça dê chilique!

A frase ecoou no ouvido de Durval que, firme, procurou contabilizar e marcar os que poderiam ter ouvido. Duas pessoas demonstraram claramente ter dado trela ao que dissera Paulo.
Durval custou outro tanto em minutos a ocupar um pouco mais de espaço na poltrona, sentindo como que liberado para respirar. O constrangimento estava começando a ser substituído por uma certa satisfação. E também, vergonha de quem? Desses panacas papa-milhas? Desse bando de colecionadores de “tolhas de papel umedecidas”? Não iria se colocar em tal situação.

As coisas estavam começando a ficar menos desagradáveis, menos infelizes, quando a maldita lâmpada tornou a acender. Assim, de sopetão, mais uma vez sem aviso prévio algum. Mas, desta feita não tardou a surgir a causa do sintoma. O avião desceu abruptamente de forma a forçar o encontro entre as balas de leite e o sanduíche frita-bocas no estômago do sujeito. Durval sentia seus músculos se retorcendo, seus braços apertavam a poltrona em sua frente como se fosse o manche do avião, como se Durva fosse resolver ele mesmo, por ali, a situação do vôo.
Foi um momento de sofrimento ímpar para Durval. Naqueles dois minutos eternos, tudo o que ele fazia era apertar o encosto da poltrona da frente e procurar expressões nos rostos das pessoas.
Primeiro fixou-se na moça que ia ao seu lado, logo do outro lado do corredor. Ela estava tensa, e com um riso nervoso soltou um “putz” seco e simples para Durva, sem que ambos se preocupassem com o que ele queria dizer. Em sua ânsia pela busca de uma pessoa calma, ele reparou então num cidadão de meia-idade que ia logo atrás da moça. E pra que? Capturou a imagem do exato momento em que o senhor fazia o sinal da cruz.
Pronto, se a idéia era de que ele morria de medo de avião, e os outros não, a coisa devia estar russa, ou pior.
Sua última esperança era a de encontrar a aeromoça, de ver uma pessoa serena e calma, sabedora do futuro, transmissora de paz e boas notícias.
Quando localizou a própria, ela estava sentada num banco reservado à tripulação, e o que ele pôde ver foi quase uma imagem de museu de cera. A safada estava petrificada, olhando para o nada, e sem expressão qualquer.
Isso já estava insuportável!
Finalmente mirou um bastião da serenidade, um zen-budista, de blazer azul e camisa azul de colarinho branco. Sua visão foi a de um oásis em pleno Saara. O sujeito era o sinal mais claro de que ele não morreria ali. Estava a salvo.
Na verdade, isso era mais que sincero da parte de Durval, que acreditava que num avião, não bastava o destino de um definir o acidente. Tinha que ser uma conspiração entre os destinos de todos os ali presentes. Portanto, somando isso à sua outra teoria, quase consenso na cabeça de Durval, de que a pessoa pressente sua morte, estava provado que ele não morreria. Festa!
Festa nada! Isso era impressionante naquela confusa personalidade! Ele, ainda assim permanecia apavorado. A experiência do quase-acidente era independente do fato notório de que nada aconteceria. E aí entram também as estatísticas, que não impedem Durval de jogar na Mega-sena toda semana, mas o não inibem em dar vexame na aeronave.
Passou, num átimo a odiar aquele sujeito calmo. Já que não ia morrer, mesmo que tendo nesse cara o portador da boa nova, esse aí estava apenas se recusando a dividir a dor dos demais humanos que sofriam a experiência da “perspectiva-do-certo-não-acidente”.

O fim não veio, e a turbulência passou.
Depois disso, Durval foi brindado pela doce voz da aeromoça ressuscitada, que anunciava o iminente pouso da aeronave.

O procedimento de pouso foi lento, meticuloso em torturá-lo, com suas balançadinhas alternadas para a direita e depois para a esquerda. Durva procurava tentar ter em mente que não se lembrava de nenhum avião que caíra sobrevoando a cidade. Curtia, cada vez que os carros pareciam maiores lá embaixo, como se fosse um menino, apavorado, em seu primeiro vôo.

Um tranco bem acima do normal selou a viagem. Durval recostou a cabeça no banco, olhou para frente, para o alto, em busca da lâmpada, como que para zombar da mesma por errar em seus prognósticos macabros para aquele vôo, e começou a nausear.
- “Tudo menos isso”! “Não agora”! “Agora não”! “Merda”! – pensava o pobre homem enquanto a bala e o apresuntado se engalfinhavam em seu esôfago. Um dos dois pegando fogo, e o outro usando esporas!

Fez barulho! Teve sonoplastia de destaque a cena dantesca que se seguiu! Não queria acreditar no que lhe era intimamente óbvio, e acabou não se prevenindo para o jato que lançou goela afora. Recuso-me a dar mais detalhes, além de frisar que, não alcançando o saco plástico específico para essa situação, ele despejou a éca em duas páginas da Economist. E mais que isso.
Enfim, arruinou sua imagem com aquele pessoal. – “São todos uns ridículos”. - Ele teimava em repetir silenciosamente.
Mas, o fato era que ele desprezava cada um daqueles imbecis. “Gentinha com complexo de Ícaro”! E que todos juntos o desprezavam. Isso doía um tanto.

Limpou-se apressadamente com o resto da revista e embarafustou-se por entre os que pareciam competir para sair do avião.
Isso era outra peculiaridade que abominava nesse público voador - O fluxo de saída do avião. Aquele monte de trouxas, competindo para ver quem chega antes no estacionamento, ou à sala de bagagem seis segundos mais rápido que o outro. E nem chega nas suas malas. Vão a um salão, onde vão esperar mais e juntos, desde o primeiro até o último a sair do avião. E os que vão sem bagagem despachada, espertos na sua praticidade, só com a de mão, passam a semana toda com duas calças, um paletó e duas camisas, além de várias gravatas para tentar tapear os que não possuem olfato.

Iniciando a descida pela escada do avião, Durval viu de relance o tal Paulo Cocozão saindo da cabine do piloto, meio que sorrindo muito. Não deu pra Durval ter certeza. Mas eram fortes os indícios de que o cara estivesse feliz.

- Que merda! – Pensou Durval, que por um milésimo de segundo imaginou se Paulo não poderia ter sido, pelo menos de leve, uma das causas do pouso de albatroz vivido há pouco.

Desceu direto para a porta em frente, sentindo de leve, mas nitidamente, um certo odor azedo vindo da sua parte mais baixa. Torceu para o Paulo ir buscar bastante bagagem e tomar o sétimo táxi após o seu.
Pelo menos o homem foi em busca de algo na sala de bagagem, e não foi mais visto por Durval.

Já no táxi, Durval procurou avaliar bem estrago ocorrido em sua roupa. E não era das mais animadoras a situação da indumentária do moço. A calça estava imunda desde a cintura até o joelho esquerdo, e a camisa e o paletó estavam com manchas indisfarçáveis na área do peito.
Decidiu ir a um shopping, comprar calça e camisa, e decidiria durante a compra o que fazer com a roupa vomitada.

A reunião foi, como quase todas, prescindível e boba. Durval apenas teria que escrever um relatório sobre um produto, e tudo estaria resolvido. Tudo aquilo, aquele pesadelo vivido nas últimas vinte e quatro horas, foi por quase nada.

Mas, agora era encarar a vida com serenidade. Trataria de escrever o tal relatório ainda naquela tarde. Tempo não lhe faltaria, no ônibus de volta.
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