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Roteiro_de_Filme_ou_Novela-->O ZANGÃO-CAP. I, II, III e IV -- 27/10/2006 - 12:49 (J. D. Lima Oliveira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Decididamente o dia não começara bem para o senhor António Ferraguda, um respeitável homem que rondava a casa dos sessenta, mas com a rígida máscara de uma tez sulcada por profundas rugas de duros dias de árduo trabalho, de sol a sol ou de chuva a chuva, como soe dizer-se, o que acontecia neste preciso dia de cáustico Inverno, e o transformava num precoce ancião. O senhor “Antone” ou “Tonho Lenhador”, como na aldeia lhe chamavam, preparava-se para a primeira refeição do dia ainda de ceroulas e grossa camisola de lá, tricotada pela “Tia Almerina”; Almerinda Sá, de seu nome de baptismo, mas a que acrescentava sempre “Ferraguda”, apelido do marido, embora não constasse da sua identificação oficial, para se distinguir de uma outra que morava no cimo do povo e não tinha outros pergaminhos para aditar nem problemas com a correspondência, pois que se soubesse ninguém lhe escrevia, ao passo que o filho militar da Ferraguda, o Jorge, o fazia com pontual regularidade, onde quer que estivesse, não sendo poucos os lugares do mundo por onde passava, na qualidade de sargento artilheiro da marinha e quase sempre embarcado em fragatas daquele ramo das Forças Armadas. Subira a pulso, degrau a degrau, desde grumete a marinheiro, esforçando-se a estudar, tendo chegado a 1º. cabo, ao fim duns bons dez anos de tarimba e depois a sargento por feitos gloriosos em campanhas de África. Propôs-se, logo que a promoção a sargento surgiu e com ela substancial melhoria no vencimento, ajudar o irmão mais novo, o Noé, no complemento de estudos, a fim de concluir um curso na capital. Para tal era necessário acabar o liceu na cidade sede de concelho da sua pequena aldeia. Este, muito inteligente, mas com uma idiossincrasia muito especial, reagia aos momentos mais alegres com amuos de notória melancolia e aos desprazeres com laivos de incomum satisfação e como não tinha grandes motivos para penar era vê-lo sempre cabisbaixo, olhar perdido no horizonte, um reconhecido tristimaníaco.
Como não demonstrava fisionomicamente as suas verdadeiras reacções, só quem muito bem o conhecesse identificaria o seu estado de alma. Mas o pai não se enganava, quando afirmava à sua cara-metade que o Noé “não era tolo nenhum; só não gostava da racha da lenha”. A boa mãe sempre o desculpava, afirmando-lhe serem os estudos que não o deixavam: - Tu não vês, homem, a carrada de livros que o pequeno transporta? – sentenciava ela. – Como queres que ele vá à serra contigo se tem tanto para estudar?
Na verdade o rapaz, que já completara o curso do liceu, preparava-se agora para a admissão à Escola Naval: “Que aquilo era difícil”, asseveravam-lhe, e ele não queria admitir que os seus pergaminhos fossem afectados, em virtude da sua óptima reputação como estudante e por gratidão ao irmão pela decisão de querer fazer de si um oficial de carreira.
Naquela manhã, porém, o senhor António Ferraguda precisava mesmo de ajuda e quando se levantou para matar o bicho, isto bem cedo, ainda mal rompera o crepúsculo, ao chegar à cozinha notou que, ao contrário do habitual, era o último a tomar aquela sempre revigorante refeição, composta de algumas talhadas de presunto, por si curado e das melhores reses alimentadas só a castanhas, farinha de trigo e hortaliças; meia canada do tinto do pipo da Ribeira, fermentado à parte, de uvas bem amadurecidas do tipo americano e que até era proibido comercializar sem a introdução de outras castas devido à alta graduação, umas boas fatias do magnífico pão amassado e tendido pelas ágeis mãos da Almerinda e cozido no forno sempre aquecido com carrascos escolhidos, onde predominava o tojo serrano, tão procurado para o realce do paladar de quaisquer assados e muito particularmente das bolas feitas com salpicão e toucinho, que o Ferraguda não deixava por mãos, ou melhor, por bocas alheias. Rematava o seu primeiro almoço com uma enorme tigela de sopa da pedra, que sempre ficava de um dia para o outro, nesta estação sem necessidade de frigorífico, que este só era bom no Verão e um débil remedeio, porque, segundo ele, tirava o gosto à comida.
Apesar de bom garfo e de melhor copo, quase ficou sem vontade de comer. “Não é que o malandro já se escapou…” – pensou com os seus botões. Foi aos baixos da casa e confirmou que a bicicleta do filho já não se encontrava junto das carroças desatreladas. A mulher já saíra também para a cortinha, a fim de alimentar as galinhas e os coelhos. “Que vou fazer à minha vida?” – interrogou-se. – “E logo hoje que o dia ameaça grande temporal…”
Além da agricultura para consumo próprio e da bovinicultora para negócios, o Ferraguda fornecia lenha a quase toda a povoação. Tinha um jornaleiro que o ajudava no corte e carregamento dos carros, puxados a bois, animais possantes e destinados somente a essas tarefas, mas há dois dias que o rapaz, atacado de enfermidade, não aparecia ao trabalho. Tinha algumas encomendas de lenha e as pessoas não estavam dispostas a esperar mais tempo. Algumas começaram mesmo a cozinhar com gás, o que não agradava ao Tonho Lenhador, e outras já iam à serra por conta própria, trazendo em pequenos carros de mão e até em molhos, pequenos feixes de tojos e giestas para acender as lareiras, sobressaindo destas singularidades, apenas um denominador comum: Diminuição de rendimentos. E estes percalços não podiam ter, de modo algum, a concordância deste empreendedor chefe de família que vislumbrava necessário aumento de despesas quando o Noé fosse para a capital, apesar da prometida ajuda do Jorge.
Contrariado, mas não vencido, sentou-se no tosco escano junto à lareira, espevitou com a tenaz as brasas que ainda fumegavam – o lume nunca era apagado no Inverno – e começou a almoçar. Uma boa regada do americano avivar-lhe-ia a memória. Nada melhor que uma identificação com Baco para um bom discernimento de ideias. Pausadamente pegou na navalha, desceu o presunto encetado da fileira por cima da lareira e começou a fatiá-lo com parcimónia própria dum bom apreciador; que a “hora de comer” – filosofava sempre – “é a hora mais curta”.
Se bem pensou melhor aconteceu. Um tal Zacarias, vindo não se sabe de onde, andava por ali a tentar umas jornas, qual esfomeado lobo a descer ao povoado, tarefa que nesta época invernal é quase impossível. A agricultura parava, os animais não saíam das cortes, as matanças dos porcos já haviam passado. Uma das poucas pessoas que poderia arranjar-lhe trabalho era efectivamente o António Lenhador na sua função de fornecedor de lenha. Ora o Noé quando saiu na sua bicicleta para a cidade, a fim de tomar explicações de preparação para o acesso à Academia, exame que teria de efectuar dali a três meses, ia com um ar de descontracção notória, sorridente e a cantarolar uma canção em voga, “Tombe La Neige”, do cançonetista Salvatore Adamo. Entre outros, tinha de praticar também o idioma de Victor Hugo, e nada melhor do que fazê-lo em tom mais aliciante, pelo que adquirira a táctica de aprender as letras de músicas estrangeiras, muito particularmente as de origem francesa e inglesa. O seu porte alegre identificava a preocupação que transportava, pois sabia que o pai necessitava de ajuda na serra, mas conhecedor da presença do tal Zacarias na noite anterior e o local onde piedosamente o alojaram, saiu antes do progenitor se levantar e foi propor-lhe trabalho, amenizando assim em parte a ira do pai pela ausência do empregado. Não o fez, porém, de moto próprio. Aconselhou-se com a mãe, a qual explicaria ao consorte a razão dele ter sido nesse manhã o último a tomar o pequeno-almoço.
E foi assim que o Zacarias começou a fazer parte do clã Ferraguda. Ficaria como empregado definitivo, com direito a cama no sótão da casa e a alimentação. Na vertente salarial ver-se-ia mais tarde, porque seria necessário verificar o rendimento do caloiro lenhador, por estar habituado, segundo ele, a trabalhar apenas na rotina diária da agricultura, tarefa que de momento estava arredia do contrato. Mas vamos ouvir o interessante diálogo entre o Ferraguda e o novel aprendiz de rachador, reprodução quase fiel dos usos e costumes na contratação laboral da generosa gente serrana:
- Pois como ia dizendo – começou o Ferraguda – ficas a dormir nos terceiros. Comes connosco e aqui comida não te faltará. A jorna é paga ao fim do mês e de acordo com o teu trabalho. Para que não haja problemas, o vinho é dado por mim ou pela senhora “Almerina”. Embora o haja com fartura, Graças a Deus, é preciso ter tento na língua e em demasia é muito mau conselheiro. Se te portares bem ficas com trabalho assegurado, mesmo depois do outro melhorar. É que ele vive com a mãe e não pode deixá-la sozinha. Saímos sempre antes do sol nascer, porque daqui até à função na serra ainda é uma hora. Toma o mata-bicho e depois vai ter comigo aos baixos. Pelo caminho ensino-te o resto.
O Zacarias transformou num solilóquio sonante o que deveria ser efectivamente uma conversação de acerto de trabalho. Limitou-se, ouvido o discurso do patrão, a anuir com um gesto cabeceado de que tudo estava nos conformes. Haveria tempo para outros esclarecimentos, se fosse o caso, agora, porém, era necessário agarrar com as duas mãos esta bênção divina: Comida, dormida decente e trabalho. “Rachar lenha e carregar os carros não seria mais esforçado do que lavrar as terras”, supôs, e ele até hoje nunca deixara os seus créditos de trabalho por mãos alheias, embora em misteres bastante diferentes. E já estava disposto a seguir o novo amo, mesmo sem forrar o ávido estômago, que há uns tempos não sabia o que era uma refeição condigna, quando assomou à porta da varanda traseira, a animosa doméstica com um balde abastado de ovos, produção galinácea do dia anterior, observando-se alguns de maior calibre, anserinos, que esses iriam para o frigorífico, a fim de oferecer ao senhor abade no domingo seguinte, quando viesse proceder à eucaristia na igreja paroquial.
- Já sei que falou com o “Antone” – começou. – Agora toca a comer, que vão ser umas boas horas de trabalho. Têm que correr, pois o tempo promete…
- Deixe para lá, senhora “Almerina” – retrucou o criado. – O tempo está a piorar. Quanto mais cedo sairmos, melhor.
- Qual quê! Vossemecê não sai daqui sem o mata-bicho. Era o que faltava. Na minha casa a hora de comer é a mais curta, como diz o meu “home”. E vou fritar-lhe dois ovos, que os trago aqui bem fresquinhos, para juntar ao presunto.































II



Enquanto os lenhadores se aprestam para subir a serra, vamos ao encontro do Noé, que, montado na sua “Martano” de corrida, segue à velocidade que a estrada florestal lhe permite, de mais a mais fustigada pelas últimas intempéries dum Inverno que se vem mostrando de cariz molhado e frio, intermediando lustrosos nevões iluminados pelo ténue sol com bátegas assustadoras e furiosos trovões, a que esta gente se habituara desde sempre. Vai calmo e tranquilo agora, pelo que o seu semblante se transformou na habitualidade do rapaz sombrio, taciturno, melancólico, sintomaticamente alegre para o seu subconsciente, mas a que nem ele tem acesso em percepção clara, porque nunca se conheceu na normalidade a que comummente o ser humano está habituado.
De repente sente uma oscilação profunda no guiador da bicicleta. Entrara numa pequena vala que a chuva fez em sentido horizontal à estrada. Os livros didácticos, que seguiam presos por uma mola na pequena bagageira por detrás do selim, caem e esparramam-se no meio de poças de água que abundam por ali. Dotado de desenvolvida perícia na arte do ciclismo, que granjeou durante os sete anos de treino a caminho do liceu, conseguiu equilibrar-se, tendo, porém, a sua reluzente máquina, ficado em estado lastimável: corrente partida, roda traseira amolgada, guiador torcido, para não falar da forquilha e dos raios de ambas as rodas, absolutamente inoperantes para seguir viagem. E ainda distava da cidade, e da casa do professor Raul, seu sustentáculo para dúvidas do curriculum de admissão à Naval, cerca de cinco quilómetros. Como já havia percorrido cerca de seis decidiu aguardar que alguém aparecesse e o ajudasse, pois não podia abandonar a bicicleta e muito menos transportá-la às costas. Ordenou os livros e apontamentos cuidadosamente, limpando-os da água e da lama e foi sentar-se num pequeno muro lateral que circundava um grande campo de lúpulo, agora inerte. E lá se verificou mais uma vez a metamorfose inoportuna do Noé. Olhando para aqueles ferros torcidos com uma dor de amargar, contrariado, como que perdido da consciência da própria existência pela abolição da sensibilidade, saca do bolso um apontamento, que não era mais do que a letra de uma canção de Elvis Presley e começa a cantar em surdina “Blue Christmas”.
Dada a transformação do humor se ter verificado em escassos minutos, teve cognição, pela primeira vez, da sua falta de coerência no acompanhamento das ideias e valores da realidade presente e por associação a disparidade do que até àquele momento tinha sido a sua forma de reagir perante fenómenos díspares que, como a qualquer ser vivente, o acompanharam no seu quotidiano. “O que poderei chamar a esta maneira de ser”? – perguntou-se. − “Não posso aceitá-la como doença e somente o meu cérebro poderá rectificar tal anomalia”. Compenetrado do problema patológico ou vício que tinha de corrigir passou a reconstituir todos os passos desde que se levantou até ao momento do acidente e notou a contenda do seu comportamento sensorial contrastado com o aspecto fisionómico da demonstrada boa disposição acompanhada de francos sorrisos que foi distribuindo pelos transeuntes com quem se cruzou, alguns dos quais estranharam a sua postura, tão diferente da circunspecta melancolia que, na sua personalidade estranha, sempre lhe assistia, por se tratar dum rapaz que não tinha motivos para tristezas. À sua mente surgiam a velocidade meteórica alguns comentários que sempre foi ouvindo aqui e ali, mas principalmente em casa, sobre a sua atitude comportamental e que logo auto-justificavam como sendo inerentes à sua desenvolvida inteligência.
Efectivamente o Noé desde criança demonstrava, pelas suas atitudes, ser dono de sabedoria genial daquelas que consensualmente se apelida de prodigiosa, um sobredotado que aos quatro já lia e escrevia naturalmente e daí o sacrifício dos pais em mandá-lo para o liceu, facto a representar óbvias despesas com livros e transporte, aliado à admissão de empregado para ocupar o lugar que lhe estaria naturalmente destinado como lenhador, em virtude do irmão, Jorge, ter seguido muito cedo, com dezoito anos, para a marinha. Teria o Noé apenas seis; a começar a escola primária.
Por ali ficou sentado, agora num esforço tremendo para coadunar o semblante à realidade dos factos. No intuito de iludir a tentação de voltar à costumada alegria incabível, desinteressou-se da letra do “Blue Christmas” e pegou no Volume III da História Universal, com a finalidade de coligir uns trabalhos em atraso, mas ouviu ao longe o ruído de motor, embora no sentido inverso ao que se propusera seguir. De qualquer modo era uma esperança e sentiu uma sensação de alegria, pela primeira vez adequada convenientemente aos episódios que decorriam. Aproximou-se da berma com o intuito de sinalizar um pedido de boleia para si e para o velocípede e assim regressar à aldeia, donde telefonaria ao professor Raul explicando-lhe a sua odisseia.



















III



Neste entremeio vamos na peugada dos lenhadores, que devem estar muito próximo do local de trabalho, pequena clareira num ponto meão da serra, onde o Ferraguda construíra um coberto que lhe servia para arrecadar as ferramentas do seu ofício e depositar lenha excedente cortada, resguardando-a dos amigos do alheio e também das intempéries, prejudiciais à sua boa combustão.
Tinham saído logo que o Zacarias terminara a sua primeira refeição, com dois carros, cada um puxado por uma vaca, apenas com um fardo de palha e uma canga para dois animais, para o regresso. A subida para a serra era muito acentuada, por isso mais demorado o trajecto quando os carros eram atrelados a apenas um bovino, razão pela qual o atraso era notório. A velha estrada florestal estava por outro lado em péssimas condições de acessibilidade, com árvores caídas no seu seio, quais abatises a impedirem a progressão do inimigo, e tornava-se medonha aos olhos do Zacarias que, embora habituado ao meio rural, nunca se tinha enfronhado em tarefas tão árduas, como a de subir uma serra pelo meio de tão denso pinhal, envolvido em tojos gigantescos e urzes em maciços circundantes, a camuflarem as prestativas pináceas, que eram atingidas pelo intenso e furioso vento nas copas, arremessando para bem longe os galhos mais frágeis ou tombarem sacudidas arrastando outras consigo, formando um espectáculo desolador.
Como vês – disse o Ferraguda, quando já avistavam no alto o armazém – este trabalho não é pêra doce. É mesmo para homens de barba rija. No princípio é pior, depois acostumamo-nos. Tu com certeza já estás habituado à serra. Se não a esta, a uma outra qualquer. Ao fim e ao cabo são todas iguais. Desta dizem-se para aí muitas patranhas, mas eu não acredito. Ando por aqui há muitos anos, praticamente fui aqui criado, e nunca vi nada. Mas também preparo as coisas de molde a chegar sempre de dia à aldeia.
- Oh senhor António! – respondeu o Zacarias – Não me diga que esta serra também tem mistérios. É que lá perto da minha terra temos um monte, que até é bem pequeno, e diz-se que andam por lá almas penadas.
- Almas penadas, almas penadas… – volveu o patrão – A coisa aqui é mais séria! Como já tiveste ocasião de ver, esta serra é muito fechada e este carreiro onde vamos, a que lhe chamam de estrada florestal, mas que tem sido aberta pelos meus animais no dia a dia a pisá-la com os carretos da lenha, tem a fama de esconder assaltantes, que se disfarçam de caretos. Embora nestes últimos anos, que eu me lembre, nada haja de falatórios, outros tempos houve em que desapareciam rebanhos inteiros da ”corriça” que existia lá mais para o alto da serra. Eu quando era mais novo ainda fui algumas vezes ao local com os animais que o meu pai tinha e lá os deixava, de um dia para o outro, a fim de pastarem, logo cedo no dia seguinte. Nunca nos faltou nenhum, mas o meu avô, que por um acaso também era “Antone”, contava histórias de arrepiar. Lembro-me que antes de eu ter ido para a Argentina e foi a última vez que ele se abriu comigo, mas eu já era um homem, já tinha dado a tropa, Deus lhe fale com a alma, que era um santo homem, me aconselhou a que tivesse muito cuidado com a serra, principalmente de “noute”, porque aparecia e ele teria tido a experiência, um monstro que abocanhava qualquer animal. Os ditos ficavam paralisados à frente da besta e esta levava-vos presos pelas mandíbulas até ao lugar da serpente. Ali aparecia um outro vulto, de fato branco, que os metia por um alçapão escavado na terra. Diziam que era o “Zé Palermo”, um famigerado assassino que tinha sido desterrado há mais de um século para África.
- Mas como pode ser isso? – perguntou perplexo o criado – Então se existe no cimo da serra uma corriça para o gado é porque também tem lameiros.
- Estou a ver que não és parvo nenhum – volveu o senhor António – estás mesmo com boa atenção à conversa. Por um acaso tinha-os e “bôs”. Mas como te ia dizendo, “ora deixa-me ver Antone”, cogitou, e a seguir em voz audível – eu fui lá muitas vezes e ainda me lembro de três ou quatro lameiros que era uma pena vê-los só para serventia do gado. É que lá há uma boa nascente e até parece que é a água que “bobemos” aqui vem de lá, só que fica deveras muito longe para levar as ferramentas e sementá-los.
Queira fazer o favor de desculpar, senhor António, mas eu não estou agora a entender – ripostou o Zacarias. – Eu não falo em construção, falo em lavoura.
- Oh meu rapaz, estás a achar que eu falo chinês, que sou maluco ou quê? – interrogou o interlocutor. – Diz-me uma coisa: Tu afinal és de onde?
- Eu sou dos lados do Porto, mais propriamente de Rio Tinto. Vim para a apanha da azeitona e da castanha e por aqui fui ficando, até que acabou o trabalho. Como por lá também não há grande coisa para fazer e eu fiquei a gostar desta gente, ainda não voltei à minha terra. Tenho referências boas, senhor António, que lhe posso mostrar quando for buscar a minha mala, que deixei à guarda dum amigo em Seixedo. Foi ele que me indicou que nesta região havia a possibilidade de trabalhar no Inverno, no corte de madeiras ou na pastagem do gado. Mas por que motivo é que o senhor quer saber? – indagou, por sua vez o Zacarias.
- Olha! Desde que trabalhes não me incomoda nada saber quem tu és. Tens aspecto de pessoa séria e para mim é o quanto basta. Eu nunca me engano com as pessoas. Já tenho muita tarimba do mundo, já passei as penas de Cristo na longínqua Argentina, mas graças a Ele agora não me posso queixar – respondeu o Ferraguda, que simultaneamente se benzia. – Nós aqui dizemos sementar as terras, que é a mesma coisa que agricultá-las, não falei em cimentar, percebeste? São palavras que vêm de longe. Nunca ouviste dizer que “cada terra tem seu uso e cada roca o seu fuso”? É isso aí…Com esta treta toda nem acabei o resto do conto sobre a serra, mas fica para mais tarde que chegamos ao local de trabalho.
- Gostava mesmo de saber, senhor António, porque há coisas aí que não consigo compreender – anuiu o Zacarias.
- Como por exemplo… – ripostou o Ferraguda.
- O senhor entende como foram surgir esses campos lá para o alto da serra, se até este lugar onde nos encontramos apenas vimos mata quase inexpugnável; floresta densa onde não se vê a dois metros nas laterais, onde eucaliptos se confundem com carvalhos, pinheiros e giestas, onde, parece, os bichos têm medo de morar?!... – expôs o Zacarias, que continuou: - Quem poderá ter-se dado a tanto trabalho para desbravar a mata num sítio tão longínquo, desolado e inóspito? Salvo se existir ou tivesse existido outra via de acesso ao local por caminhos mais favoráveis…
- Espera aí, rapaz! – interrompeu o Ferraguda. – Tu tens um palavreado, que até pareces o meu filho Noé a falar. Parece que estudaste!
- Desculpe, senhor António, animei-me com a história. De facto estou a falar mais do que o costume. Se calhar foi o medo que me abriu a boca. Quanto a estudos tenho a instrução primária, mas gosto muito de ler e sempre se vai aprendendo mais alguma coisa.
- Vamos lá ao trabalho, que se faz tarde – continuou o Ferraguda. – Toma lá esta chave e abre o portão do coberto, enquanto eu desatrelo os bois.
Passando para a mão do criado uma enorme chave de ferro, meio carcomida pela ferrugem, foi retirar as cangas às alimárias, dirigindo-as para um canto do pequeno outeiro circundante, onde colocou parte da palha para se fartarem. Encostou um carro perto do portão e começou por tirar os fueiros e passar um pouco de sebo nos eixos das rodas, pois notara que mesmo sem carga começavam a chiar. Entretanto o Zacarias apreciava toda a parafernália da modesta indústria do lenhador, verificando que ali havia muito trabalho produzido. Numa grande parte do armazém viam-se algumas toneladas de toros, devidamente ordenados por tamanhos e espessuras, numa outra urzes, giestas e pequenos galhos e ramos de caruma e quase junto ao portão um espaço que acomodava serrotes, serras braçais, machados, um banco de carpinteiro, etc., além duma pequena mesa e duas tarimbas.
- Pronto, meu amigo, vamos à função – ordenou o Ferraguda. – Temos meia hora para carregar este carro. Depois eu sigo com ele para a aldeia e tu ficas a encher o outro.
E logo começaram a tarefa do carregamento. Não havia muito tempo para conversas. Eram quase dez horas e por muito lesto que fosse o Ferraguda, não estaria de volta para o segundo carreto antes das duas da tarde e num dia tão carregado de nuvens a noite apareceria lá pelas dezassete, às vezes mais cedo.
- Traz esses paus mais pequenos para acabar a carga, e uns ramos de urzes. Fica aí a tua merenda. Quando tiveres fome, almoça. Logo que eu esteja de volta, é só atrelar e seguir. Está também uma garrafa de vinho – concluiu o lenhador. – Se tiveres tempo vai treinando a cortar esses toros maiores. Utiliza aquele serrote do meio – disse-lhe – apontando para um tosco expositor pregado à parede.















IV


O rumor contínuo que percepcionara ouvia-se agora à sua direita, bem no alto. As características do som a aproximar-se iludiu por momentos a sua faculdade sensorial. Não se tratava de qualquer veículo automóvel, mas de potente aeronave escondida acima das densas nuvens.
Folheou o livro didáctico que tinha entre mãos e tentou fixar-se no capítulo da segunda guerra mundial, mais propriamente na neutralidade assumida por Portugal, que fez publicar uma nota oficiosa na imprensa e a qual agradou aos governos beligerantes – Inglaterra e Alemanha. Perguntou-se por que razão não defender o Portugal continental na época e agora ir-se à procura da guerra nas remotas terras africanas. Não entendia. Em diagonal, como gato sobre brasas, leu o texto, que aliás conhecia, e deixou deambular a mente ao sabor de recordações ingentes, que, de certo modo, o atormentavam e o deixavam com a dúvida atroz de algum dia poder vir a compreender o significado da celebra frase “Para Angola já e em força”, à revelia, ao que constava em surdina, de todos os nossos aliados da NATO e a reprovação de todos quantos eram obrigados a avançar. Sentado no muro deixou então expandir o subconsciente e começou por analisar a sua própria situação. Embora de olhos fixos no livro aberto os caracteres impressos nada lhe diziam e parecia transformarem-se em granadas, bazucas, carros de combate e bombardeiros lançando as suas estrepitosas e estridentes bombas. Não que tivesse conhecimento directo do modo como se desenvolvia a guerra em África, mas por algumas conversas tidas com o irmão, que o ia incentivando com as palavras menos adequadas, ao mesmo tempo que o informava da forte possibilidade do términos da guerra antes da conclusão do curso de oficial da marinha.
O Noé era um rapaz bastante dedicado ao estudo e não obstante aquela idiossincrasia que o levava a sensações psíquicas antagónicas com as realidades do momento, tinha um poder inato de análise circunstancial ao mundo que o rodeava. Quantas vezes notara que o irmão ocultava-lhe muito sobre a sua vida de marinheiro e das suas tribulações quando em combate nas colónias. Ele, por sua vez, também não ia além das perguntas convencionais, mas ficava sempre com a ideia, por intuição, que aquela guerra não teria razão de existir. Vivia numa cidade do interior, onde as tertúlias estudantis, a frequência de café, a convivência inter pares era para ele praticamente inexistente. No final das aulas regressava a casa, limitando-se a estudar e a ajudar o pai quando as suas obrigações lho permitiam. Tinha, pelo contrário, receio de abordar quaisquer questões que pudesse definir como implícitas à política do Estado Novo. Conhecia o que lhe fora ensinado a partir da escola primária e o que os seus livros de estudo deixavam transparecer. Os jornais e a rádio não o elucidavam convenientemente, mas iam falando em mortos na Guiné, em Angola e em Moçambique. Sentia medo! Nunca tivera propensão para actividades bélicas, mas era a elas que estava predestinado desde que aceitara a ajuda do irmão e sem vislumbrar hipótese de sair airosamente deste imbróglio, pelo entusiasmo que o irmão demonstrava e o orgulho que sentia por antecipação. Ele, sargento, iria ter na família um oficial de carreira…
Grande admirador de René Descartes sabia de cor algumas máximas do filósofo e tinha sempre presente que em relação ao Poder “deveria obedecer às leis e aos costumes do país, seguindo a sua religião e as opiniões mais sensatas. Aquelas que lhe parecessem mais moderadas e distantes dos extremos, onde raramente se encontra a verdade”.
Ora aquela guerra estava para a sua índole analítica num extremo total e absoluto e a particularidade de se haver comprometido a seguir uma carreira das armas começava a inquietá-lo persistentemente por estar a escassos meses da sua integração num estabelecimento militar. Sem possibilidades de aconselhamento restava-lhe apenas amofinar-se. O seu pai, bom homem e grande amigo, até poderia ser um bom conselheiro, mas não seria isento nas suas opiniões. Por sua vontade os filhos nunca sairiam de casa.
A escolha entre o serviço militar obrigatório e uma licenciatura para oficial da marinha tinha sido decidida há muito em conselho de família. Na pequena cidade e pior na aldeia falar “na guerra que nos fora imposta” não seria muito aconselhável. Contava, por isso, apenas consigo para interpretar a sensação esquisita que ultimamente sentia e que começava a interpretar como a do medo que o consumia e minava.
Atravessar a fronteira clandestinamente e fugir, como alguns seus conterrâneos o haviam feito, nunca passara pela sua imaginação, estava nessa situação neste preciso momento e com a surpresa de não a repudiar, o que se lhe afirmava como modernidade e extroversão, ele que sempre evitara extremismos, como seguidor dos pensamentos de Descartes. E foi para ele que novamente dirigiu o seu raciocínio, evocando a segunda e terceira máximas: “ser o mais firme e decidido possível nas suas acções e tão obstinado numa decisão apenas provável como se ela fosse comprovadamente certa e procurar alterar-se de preferência a si próprio que às circunstâncias, e mudar primeiro os seus desejos que a ordem das coisas”.
A ordem das coisas e as circunstâncias não podia, evidentemente, mudar, mas alterar a maneira de agir estava plenamente ao seu alcance.
“Será que Descartes consideraria um extremo pretender alhear-se duma guerra que não apoiava”? – interrogou-se.
Estava nesta luta psíquica quando ouviu o cláxon de um “jeep” que acabava de estacionar à frente do muro. Surpreendido, mas bastante satisfeito, como o demonstrava o sorriso aberto que se desenhou na tez, autêntica revelação da sua agora normal maneira de exteriorizar-se, desceu e dirigiu-se ao veículo.


















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