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Contos-->Sem a mínima precisão semântica -- 03/06/2004 - 18:07 (Isabel Fontes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Por vezes, penso, no que raio me leva a acordar todos os dias? Tento distrair-me com as luzes lá no alto e com todos aqueles anúncios com cheiro a morte. Ando sempre numa velocidade vertiginosa, para lá da ordem. Ás vezes, chego mesmo a desejar um deslize, um pequeno azar com a embraiagem ou com a direcção do volante, qualquer desculpa para poder faltar uma vez. Uma única vez, sem sentir a culpa que carrego todos os dias, nem que para isso tenha que ficar imóvel numa cama de hospital.
Por vezes, penso, o que é que venho aqui fazer todos os dias?
Enquanto empurro a merda do portão que todos os dias se queixa de ser aberto. Preparo o meu sorriso, já de plástico, para quem quer que me veja ao entrar, o sorriso que preparo todas as manhãs ao espelho da casa de banho antes de entrar no duche. Chego sempre a tempo de ouvir as lamúrias do vizinho do lado, encolho os ombros, abano com a cabeça e dou uma resposta sem a mínima precisão semântica.
Chove?
Por vezes, penso, mas afinal que faço eu de tão especial aqui?
Dirijo-me para a minha secretária. Enquanto atravesso o corredor, encontro um colega a quem cedo um aperto de mão cordialíssimo e o sorriso já programado. Sempre demasiado atempado. Antes de me afundar no cadeirão, com um cheiro a pele rasca, ainda tenho tempo de enfiar a cabeça no túnel de segredinhos e mal dizer que sobrevoa como uma nuvem escura aquela sala do posto de comandos. Demasiado pesado. Ainda a tempo de preparar a minha íris, tal qual os violinos aguardando o arranque do mestre, para mais um dia de fuinha em frente ao computador.
Por vezes penso, mesmo antes de começar a roer as unhas, na lógica de todas as reuniões?
Mesmo antes de me debruçar sobre os assuntos cujos conteúdos nunca relato a ninguém, ordens da direcção, senão à estátua que fica do outro lado da janela mesmo por cima da minha cabeça. Costumo andar ás voltas na cadeira a tentar perceber se algum dia chegarei a entrar na órbita do cimento que me rodeia e todos os dias reparo que o parapeito da minha janela mais uma vez foi esquecido pelas empregadas de limpeza. Será que faço parte de um sistema novo de munições onde o excesso faz rebentar?
Quando começa a época da chuva? Será que nunca chove?
Talvez quando chover possa limpar do meu couro cabeludo estes pensamentos que me absorvem e me consomem todos os dias, talvez consiga dissipar tudo o que há de mal em mim e consiga ver para além do muro que existe à minha volta. Talvez depois consiga abrir o portão sem ele fazer barulho e passar despercebido por todos sem ter de ouvir os mexericos a furarem-me os tímpanos todas as manhãs. Vou tentar abstrair-me dos comentários de toda aquela gente que não consegue estar satisfeita com o seu trabalho, com os seus chefes, com tudo o que fazem na vida medíocre que levam e falam pela calada.
Só quando chover, vou poder deitar fora todos os meus casacos escuros e chapéus de varetas partidas, quebradas por tácticas de olhares e ritmos vocais que consumo diariamente sem pedir. Talvez até deixe de fumar e apagar este rasto de fumo que os faz chegar sempre a mim. Só quando chover, vou poder estar apto a ver o céu sem nuvens e conseguir vislumbrar as estrelas que nele pairam.
Mas, até lá, vou continuar a praticar o meu sorriso de plástico, abrir o portão que teima em ranger, a ouvir a voz estridente do meu vizinho e perguntar sem a mínima precisão semântica, chove?

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