A atendente anotava meus dados. Todos aqueles que estamos acostumados responder de praxe: Nome, idade, endereço, etc. Quando perguntou minha profissão, resolvi responder que sou filósofo. Gosto de desconversar quando me perguntam algumas coisas. É uma brincadeira que faço, mas as pessoas que pensam que me conhecem, não sabem quanto falo de verdade quando brinco.
Já no consultório, o médico me cumprimentou, e pra quebrar o gelo como sempre fazem, puxou conversa:
- Curioso... É a primeira vez que falo com um filósofo... – disse olhando meus dados.
Fiquei calado, porque eu sou também estranho nisso, e nem sempre respondo quando falam comigo, ainda que eu me esforce. Ele continuou tentando fazer com que eu falasse:
- Que é mesmo que um filósofo faz?
- Sabe que eu nem sei ao certo, doutor...
Ele levantou os olhos e me olhou intrigado. Perguntou:
- Onde o senhor estudou filosofia?
- Não estudei filosofia.
- Mas na sua ficha está dizendo...
- Mas quem estuda filosofia não é filósofo.
- Como não? Não estou entendendo... – disse ele já bastante interessado na conversa.
- Quem estuda filosofia deve ser outra coisa... Talvez seja filosofista, não sei... – eu disse.
- Mas o senhor é filósofo?
- Não. Eu não disse que sou filósofo.
- Está escrito na ficha que é.
- Então, escreveram errado. Não perguntaram quem eu sou. Perguntaram a minha função, e respondi, filósofo...
- Mas não é a mesma coisa?
- Não. Essa pode ser a minha função, - eu respondi - mas nunca o que sou.
- E não é a mesma coisa? – ele insistiu.
- Claro que não. Ser é uma coisa, a função é outra. O senhor, por exemplo, não é médico. – Fiz uma pausa, fazendo suspense, pra que ele pensasse de mim o que quisesse antes de argumentar: - Essa é a sua função. A sua profissão. Mas o senhor não deixaria de ser a mesma pessoa, se deixasse de fazer o que faz por profissão. Quando se aposentar, não deixará de ser quem é, só porque se aposentou. Nem será um aposentado. Ninguém “é” aposentado. Aposentadoria é muito mais uma situação que mesmo uma função...
O médico me olhou pensativo e depois de um tempinho disse:
- Como é “ser um filósofo” então?... Como é que se torna um?...
- Deixe-me fazer umas perguntas pra que o senhor entenda: Quem estuda a vida dos médicos se torna um deles? Se estudar um assunto fizesse com que a pessoa se tornasse o que estuda, quem seria alguém que estuda os cachorros, por exemplo?
O médico riu como resposta. Eu continuei:
- Tenho escrito muito sobre isso. Mas como não sou um acadêmico, ninguém me escuta. Mas não acredito que alguém seja o que faz. Eu ainda costumo dizer que não sou o que faço, embora muitas vezes faça porque sou...
O médico me olhava admirado pelo que ouvia, depois de um tempo disse:
- Entendi tudo. Vejo que você é um filósofo de fato, porque pensa sobre a vida, não porque estudou a vida dos filósofos...
- O senhor ainda não entendeu direitinho... Eu não disse que “sou” filósofo. Estou dizendo que pratico a filosofia por causa do que sou... Eu disse que “faço porque sou”, e não “sou porque faço”...
Ele me olhou demoradamente, parecendo achar complicado o que eu estava dizendo e disse:
- Está bem senhor... Vamos ao que o senhor está sentindo...
