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Contos-->Quanto vale o riso de uma criança? -- 31/05/2004 - 19:19 (CARLOS CUNHA / o poeta sem limites) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos






Quanto vale o riso de uma criança?





Nunca percebi bem o que há de extraordinário em chamar-me Óscar e ser Palhaço, mas a verdade é que as pessoas desatam a rir-se quando digo isto e deixam-me assim de sorriso à banda, tentando compreender se estará também na minha voz, como está no meu corpo desajeitado, a capacidade de fazer rir. Mas é verdade. Chamo-me Óscar e sou Palhaço desde que fiquei desempregado há muitos e muitos anos, por extinção de um cargo qualquer que já esqueci, numa empresa de nome pomposo, onde me pediam que fosse mais palhaço do que agora sou e lambe-botas como os outros... Mas não tem nada de estranho. Um Palhaço tem de ter um nome e fazer rir. E o meu assenta-me como a luva branca que calço ou o nariz que laboriosamente pinto de vermelho. Mas se vocês estão aí a pensar que me é fácil fazer rir as pessoas, estão enganados!!! As pessoas nem sempre riem quando nós decidimos fazê-las rir. Antes pelo contrário. Essa explosão vem de dentro, e nunca de fora. Rimos porque estamos felizes ou descontraídos. O riso habita-nos como a capacidade de respirar ou então fugiu do nosso peito, por razões que desconhecemos. Mas não vos vim falar do riso, esse assomo da alma que ainda hoje não controlo, nem em mim, nem nos outros.
Venho contar-vos a história de uma menina que já não sabia rir, de um jarrão da China com os dias contados e de uma avó de olhar de pedra. Como devem calcular, longe vão os dias do circo, e não se vive só na quadra do Natal e assim, sou contratado para os aniversários das crianças cujos pais não têm pachorra para os aturar sozinhos, ou lhes falta o talento para fazer umas fantochadas e uns jogos de futebol com os putos. Vou a casas abastadas, mas desculpem lá, abastadas com aquele bastante que nos parece morar apenas nas histórias de princesas e dragões, um bastante traduzido em terrenos gigantescos, relva a perder de vista, gradeamentos, muros altos, piscinas, lagos com fontes frente ao mar e casas de banho onde caberia desafogado um T1 da baixa...
Normalmente essa gente recebe-me com um sorriso e a mesma deferência que se tem com um canalizador ou limpa-chaminés, mas ainda assim por vezes querem saber qual foi a minha escola. A da vida, sinto-me tentado a dizer. Mas a verdade é que me sinto lisonjeado com a pergunta e faço os possíveis por explicar que senti em mim um chamamento para o riso, uma espécie de dom adquirido na última mudança de pele. Alguns riem e percebem o alcance. Outros mudam de assunto e dizem, pouco seguros de ter compreendido, "Venha por aqui, se faz favor". Divago. A história, pois.
Ora, na casa da menina que já não sabia rir, uma fortaleza resistindo aos ventos duma enorme bocarra do mar, havia uma senhora muito séria que me recebeu com o olhar frio do mar, e era a avó e uma mãe que me parecia pouco segura de o ser. Estavam à minha espera muitos meninos de cinco a seis anos, rodeados de uma secção inteira de brinquedos de um grande hipermercado. No meio deles, a Maria. A Maria que fazia anos e não estava a sorrir, no centro do seu mundo de fadas. Parecia amuada com qualquer coisa, talvez o vestido de seda, antigo, como se o peso tutelar da avó lhe caísse em cima, ou esta o tivesse já usado em igual idade. Comecei a atuar no alto de umas escadas que se despenhavam harmoniosamente como cascata entre o salão e uma salinha adjacente.
Olhei atemorizado os dois jarrões de porcelana ornamentada de dragões e cruzou-me a mente, fugitiva como só as premonições são, a possibilidade remota de ainda derrubar algum no calor das trapalhadas... Poderia ter chamado uma das criadas, pedir que os levassem , mas o espaço afigurou-se-me amplo e nunca tivera dois companheiros de palco tão dignos e sisudos. Contraste maior não haveria que o deles com a minha figura desasada, desastrada, distraída, naturalmente atreita a cometer com as mãos os maiores prodígios de equilibrismo sempre ruinoso. Por isso, esperava que a pequena assembleia de Barbies e Kens quebrasse em riso o peso dos reposteiros da avó e destronasse aquele sorriso seu contrito que parecia desenhado em cada móvel a desatasse a gargalhar em cadeia num alívio da tensão geral. Mas nada. A Maria e os seus amigos já tinham visto tudo e provavelmente encaravam figuras como a minha de um ponto de vista já analítico, o homem para além da figura, ou a figura de parvo do homem na sua grotesca figura de homem crescido com pretensões a ter graça...
Desesperei, trespassado por aqueles olhares compassivos, sentindo-me dromedário fora do deserto e deitei mão às minhas melhores ilusões que provavelmente já conheciam de festas anteriores. Disparei amendoins voadores, confettis saíram de um sopro meu, flores do nada nasciam, lencinhos, penachos, sorrisos e por fim, mimando a minha própria estupidez, fiz-me tropeçar no próprio pé para me estatelar, imaginem!!!, sobre um dos respeitáveis jarrões da avó!!! Rolou escada abaixo, aguentando o primeiro degrau com a coragem dos anos, para se desfazer em mil preciosos cacos ao pé das embasbacadas Barbies. Mas foi então e só então que se ouviu a risada cristalina da Maria, como se todo o serviço de copos da avó se tivesse também feito em mil bocados. A Maria riu! Soltou a primeira gargalhada da tarde e as amigas, entreolhando-se, pelo tamanho da tragédia e ligeireza do riso, optaram por rir também, fervilhando que já estavam de vontade, ante o meu gesto agora então, sim, verdadeira e absurdamente desastroso...
Vocês nem imaginam! Parecia agora um bando de crianças da rua, desfeitas em riso de lágrimas e se não fosse a perigosa vaga no olhar azul da avó, sentir-me-ia eu também tentado a rebolar de riso com elas, tal o nó que se me desfizera na garganta. Mas a voz da dona da casa fez-se ouvir como vento gelado da madrugada, planando por sobre os gritinhos alvoroçados das criaditas. O jarrão, os cacos, a irresponsabilidade, a irrecuperável perda, o mau exemplo para as crianças, (o seguro? Claro que está no seguro, mas não se compra já outro assim). Eu lamentava profundamente o ocorrido, deveras que lamentava, mas o riso ainda me rodopiava na garganta e o meu olhar era de brilho, assombro, pena, crispação, culpa e depois humilhação, a humilhação de a ouvir dizer que me pagava o trabalho, mas... que não fizera nada para o merecer e ainda lhe causara um enorme prejuízo.
A seu mando, disparou uma das criadas em busca de uma vassoura para que o Palhaço apanhasse os cacos, e já agora também os confettis. Curvei-me e colhi a minha humilhação em cada caco recolhido. Depois preparei-me para sair e ainda me passou pela cabeça em take cinematográfico o amarfanhar do cheque para o monte dos cacos, com um olhar à Gene Hackman, mas sustive a minha revolta, para dizer imaginando o seu olhar de duro, ironicamente profundo, bem dentro do mar de chumbo da matriarca: “Realizei o espectáculo, semeei sorrisos nestes pequenos vasos secos. Mereci o pagamento, minha senhora. Tenciono recebê-lo". E saí relanceando o olhar pelos pequeninos vasos secos, frescos agora por uma cumplicidade luminosa. Cá fora senti um sulco de tinta e sal rolando pelo suor do rosto. Que diabo, hoje fui Palhaço trágico, patético, rebaixado, humilhado, mas fui Palhaço!

E continuei guiando pela cidade, Palhaço livre, colhendo quantos sorrisos pude, acenando às efusões da pequenada nos semáforos, ou à confusão das almas solitárias das portagens. Teria arrebatado à história da arte um bocadinho da sua essência, e diminuíra porventura o patrimônio de uma família, mas, Senhores!!!, tinha feito gargalhar crianças que já não sabiam soltar dentro de si o riso. E Minha Senhora, deixe-me perguntar-lhe agora, aqui de longe, sem o seu olhar de porcelana azul da China cravado no meu: quanto vale para si o sorriso de uma criança?



ft-NET/a.d.






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CARLOS CUNHA/o poeta sem limites

dacunha_jp@hotmail.com







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