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Cronicas-->Agora e na Hora da Nossa Morte -- 18/07/2003 - 21:22 (Carlos Eduardo Canhameiro) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Agora e na Hora da Nossa Morte

Carlos Canhameiro

Eu estou velha. Minha pele, meus olhos, meus cabelos... Tudo em meu rosto é velho, tudo em meu corpo... Tudo em mim. Dedilho uma sonata de Beethoven num piano que foi presente da minha avó; preciso dialogar com os mortos. Os sons já não tem a mesma vivacidade, estão atrasados, sujos, as notas já não produzem o mesmo efeito. A canção mudou. Inevitavelmente choro, choro copiosamente. Lágrimas escorrem por sobre as minhas rugas, respingam em Lá, Sol, Si... Nada produzem, lágrimas de uma canção inaudível... Lágrimas de uma vida desperdiçada com um sem-sentido contínuo, uma busca por um amor literário, por um momento arrebatador... Por veleidades que fizessem o ato de respirar algo mais do que um simples movimento involuntário. As notas estão caladas. A música parou: o músico surdo está mais uma vez morto.
Max sempre me diz para começar vida nova. Que suportaria a minha partida e que faria tudo por minha felicidade. Velho egocêntrico, diz isso para reafirmar sua posição sobre mim, como se eu precisasse da autorização... Faz isso para provar para si mesmo que não posso deixá-lo... Se auto-afirma sobre mim. Como posso ter vida nova num corpo velho? Ele me tortura com sua bondade, sabe que estou encanecida, que não tenho a quem recorrer, que minhas energias se esvaíram, que sou apenas um calendário consciente do próprio fim... Por que tenho que chorar? Por que ele não chora? Como suporta sua face acabada, barba branca, cabelos ralos, músculos frágeis? Sempre foi esportista, hoje acompanha o futebol por Tv a cabo. A vida exprimida em fios. Ele sorri todas os dias de manhã. Seus dentes amarelos de tanto fumar me causam náuseas. Onde está o meu Romeu?
Meus filhos aparecem quando a obrigação bate-lhe à porta. São frutos do meu compromisso matrimonial e fêmeo, que foram maiores que o meu não-desejo maternal. São felizes como os ensinamos, eu e Max, a serem. Estimo-os porque, como a um animal de estimação, depois de um tempo vem o apego, e hoje esse apego é a pequena chama que sinaliza que minha vida não foi em vão... Por mais que a vida deles parece ser em vão. Meus filhos... Parte da minha imortalidade, que já está diluída em netos. Não me vejo neles e tão pouco acredito que se espelhem em mim. Minha nora não faz questão de esconder isso ao dizer que jamais quer terminar como nós. Tola, a velhice está a espreita, sorrateira, apodera-se sem se fazer notar até que seja tarde demais... Terminar como nós?
Minhas fotos estão desbotadas, custo acreditar que fui bela, jovem, feliz... Fotografias são demoníacas, são depressivas, são mentirosas. Estou velha, deitarei na minha cama, com custoso esforço arrumarei meu travesseiro na cabeceira e apoiarei minha costas curvadas... As fotos estarão distribuídas no outro lado, sobre a colcha bordada, presente de uma finada amiga... Olharei atentamente aqueles retalhos de vida distribuídos em retàngulos iguais, alguns coloridos, outros não... Meu marido, jovem, forte, viril... Meus pais, suporte e proteção... Meus pequerruchos endiabrados... Meus gatos, tantos... Eu, sorrindo.
Cerro meus olhos, desejo imensamente por um fim, por um acabar tranquilo, cheio de imagens, de momentos, de saudades. Por que não podemos simplesmente desligar?... Não sei para onde estou indo, escuro... Pensei ter enfim atravessado para o outro lado. Max me chama pondo fim aos meus anseios. Abro os olhos lentamente, lá está ele, encostado no batente da porta, o peso do corpo apoiado em uma perna, batendo com a mão fechada na madeira da porta. Ele sorri... Sempre me acordou assim. De um lado meu passado num mosaico, do outro, meu presente nauseante. Estou velha, quero ficar no meio... A madeira insiste em vibrar. Aperto as pálpebras com força, me canso. Ele já não está mais na porta, de longe o som artificial da televisão indica o indefectível futebol. Choro...
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