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Contos-->QUILOS DE ADRENALINA -- 26/05/2004 - 16:54 (MARIA PETRONILHO) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O Fonseca, bigodudo, tesudo, grisalho, encarrapitado no alto da cadeira,
meditava.
Acontecia-lhe de quando em quando, essa coisa de falar consigo mesmo, sobretudo
desde que via a sua vidinha ir-se por água abaixo....
- Ó diacho, dizia consigo mesmo, tenho de sair disto!
Mas sair disto era cada vez mais um caso bicudo.
- Arre, que parece que ando embruxado...
E cofiava o bigode farto, para distrair olhares das entradas, que lhe mostravam
a testa alta e, em baixo, da incipiente papada.
Para a idade que tinha, não estava nada mal o Fonseca!
Todas as manhãs se examinava escrupulosamente ao espelho, quando metia o pé na
banheira, para o duche ritual e a seguir, já fresco, ao fazer (aliás desfazer)
a barba.
Nu, pois claro.
O espelho não era qualquer de armário, era uma parede inteira da casa de banho.

O Fonseca virava-se e revirava-se:
Era a barriga, era a gordurinha sobre a anca... nada mal!
- Nada mal, nada mal, nada mal...
Cantarolava, enquanto se escanhoava.
Mas sentia-se vazio.
Nos últimos tempos, além da decadência da idade, da crise económica que também
o afectava, sentia uma inexplicável angústia, um nó na garganta...
- Que coisa, não posso andar a vida inteira na cepa torta!
Acordar não era fácil: revirava-se na cama e apalpava, apalpava... o lençol, a
almofada... melhor dizendo:
Tomava real consciência da sua vida solitária
- raio de vida!,
Eram as suas primeiras palavras.
Tomava o cafézinho, e o bolo de arroz matinal, na confeitaria da esquina.
Tudo apressado:
- Ó Zé, vê lá se a bica sai!
- E o empregado olheirento, coitado, nem sabia a quantas andava.
Tudo desabava, essa é que era essa.
- O mundo não é dos inteligentes, é dos espertos...
Pensava o Fonseca, enquanto lançava olhares de carneiro mal morto sobre a borda
da chávena.
- E rodava os olhinhos agudos pela sala apinhada.
O costume: pelintras de merda!

Uma dama de lilás entrara, no entanto, em cena.
Pedia “por favor” ao empregado, com pano de cozinha pendurado do avental;
pegava na asa da xícara de dedo mínimo espetado; limpava cuidadosamente os
lábios à pontinha do guardanapo de papel, com muito cuidado, fazendo boquinhas
para não esborratar o baton cor-de-rosa
- Tenho de conhecê-la! Homessa!
Deve ser mulher de massa... de alguma, pelo menos, da que me falta!

E lá conseguiu arranjar pretexto, que palavra puxa palavra...
Era uma dama de meia idade, ainda boazona, solitária, que vivia de uma pensão,
de uma renda... ao certo, ao certo, não sabia.
Mas que parecia bem de vida, parecia.

Um dia, pensou num negócio, enquanto olhava distraídamente o noticiário
- Vou vender adrenalina!
E disse-lho a ela, já pegando-lhe familiarmente no cotovelo, em ar de
confidência:
- Olha, sabes o que é que está a dar? Adrenalina!
- Adrenalina?! - Espantou-se ela, pensando que fosse alguma doença rara.
- Pois, mulher!,
Então tu andas ao de cimo da terra e não vês?!
Olha-me aqueles palermas a atirem-se de pontes e abismos, atados que nem
palaios, de cabeça para baixo... pagam fortunas, o que pensas?!
Ia fazendo gestos, encenava, arrebatava-se.
- E sabes para quê?
Ela olhava-o como se hipnotizada e ia acenando com a cabeça, ora para cima ora
para baixo...
- Ai, ele é uma grande cabeça!
– Ai as coisas que ele pensa!
Pelo rabinho do olho malandro, ele palrava e observava o efeito.
Sinaizinhos piscavam num lugar qualquer, lá num recôndito entre a
sub-consciência e o aflorar da consciência.
Luzes amarelas: “cuidado Fonseca!”
Luzes vermelhas: “olha que deitas tudo a perder, rapaz!"
Luzes verdes: “avança, avança, que ela está de maré!”
E ele avançava...
Avançava um passo, a metê-la num canto, e avançava um sonho, murmurando:
- Olha lá! E se a gente alugasse uma avioneta e lhes vendesse adrenalina?

Pronto, os dados estavam lançados!
Ela mirava-o de boca aberta:
- Mas ó Fonseca, sussurrou, quem é que ia comprar uma doença?!
Ele riu à gargalhada:
- Quem beneficiasse do Seguro, ora essa!
Ela percebeu a brincadeira e aligeirou a pressão na moleirinha.
Ele avançou de novo:
Explicou-lhe que adrenalina era uma espécie de bebedeira sem ter bebido, o que
levou horas em exposições e contradições – arre porra!
- Mas o que é tens na ideia, homem, diz de uma vez por todas!
- Então a gente juntava os trocos e alugava uma avioneta... e depois
vende-se-lhes adrenalina aos quilos!
- Mas como assim, se é uma bebedeira sem bebida?!
- Arre que é estúpida a mulher!, impacientava-se o Fonseca, subindo o tom
vários decibéis.
- Ó mulher, então não percebes?!
- A gente sobe... sobe... e eles atiram-se lá do cimo, atados a fitas de
nailon!

Quanto mais alto estiverem mais bêbados ficam!
- Ai que cabecinha, Fonseca, que cabecinha abençoada que tu tens, homem!
E afagava-lhe a nuca com a direita e a cabecinha com a destra....


Lisboa, 26/4/2004
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