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Cronicas-->Histórias de Avós... -- 13/07/2003 - 16:02 (Lílian Maial) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
HISTÓRIAS DE AVÓS
por Lílian Maial


Tinha seus 55 anos, quando a conheci.
Mulher esguia, cabelos grisalhos e curtos, presos a uma redinha, para mantê-los higienicamente cuidados.
Era enfermeira, na época em que enfermeira era aquela mulher que ajudava os médicos, sem grandes necessidades de conhecimento técnico e outras complicações.
Levava a sério os deveres da profissão e fazia-lhe bem cuidar dos males dos outros.
De seus próprios, nem ela mesma cuidava.
Seu coração era silencioso, como seus lábios.
Não costumava falar de si.

Eu sabia, por ouvir falar, que fora apaixonada por um cigano oriundo do norte da Espanha, que aportara no Brasil, Rio de Janeiro, nos anos 20. Era então uma meninota, da idade das filhas do viúvo cigano, e foi paixão à primeira vista. Tanto, que deixou-se encantar pela magia do andarilho e deitou-se ainda virgem e menor de idade, com o homem rude e feiticeiro, que parecia poder destrui-la com um só abraço, mas que tratava-lhe com a delicadeza das flores que lhe ofertava.
Foi o quanto bastou para que a família, de sangue lusitano dos mais tradicionais, a expulsasse de casa, sem essa nem mais aquela, sem direito a retórica.
Foi, então, viver com seu amor, sem nada saber da vida, deixando que o tempo e as gestações imprimissem marcas profundas em seu corpo e sua alma.
O homem imenso e maravilhoso bebia muito, era inconstante, mulherengo e agressivo.
Suas filhas, um tanto hostis, acabaram penalizadas com o definhar que os anos lhe impunham.

Sua felicidade maior ateve-se aos filhos: duas meninas e um menino caçula, seu ponto fraco, predileto pelo temperamento alegre e cheio de vida.
Aos dois anos de idade, a mais velha falece de uma queda, deixando-a inconsolável e com medo cada vez maior do seu homem.

A vida com ele era de altos e baixos. O amor resistia a tudo, porém a felicidade... essa já passava bem longe daquela longilínea e silenciosa senhora.

Alguns anos mais tarde, o amante rotundo adoece e fica ironicamente necessitado de cuidados de enfermagem, restrito ao leito, vítima de uma paralisia, com perda do controle dos esfíncteres, numa época em que não havia fraldas descartáveis.
Não sabia qual o martírio maior, se o homem saudável, com seus acessos de ciúme e alcoolismo, ou se daquele jeito, inerte e agressivo com as palavras, dando trabalho e sempre reclamando de tudo.

Mais alguns poucos (que pareciam intermináveis) anos, e o homem veio a falecer, deixando dívidas e lembranças contraditórias.
Arregaçou as mangas já desbotadas, foi à luta, para terminar de criar os dois filhos.
A então mocinha começou a trabalhar como podia, e o garoto, semi-interno numa instituição pública.
Sua vida resumia-se agora em criar os filhos e sobreviver. Nunca soube de um outro amor em sua vida.

A família só se reconciliou na geração seguinte, entre primos, filhos e netos dos que lhe viraram as costas.

Aos sessenta anos, ainda era mulher firme e elegante, em sua magreza quase tísica. Ainda menstruava ao falecer, vítima de um "coração de boi".

Eu dizia a todos que seu coração era tão generoso, tão grande, que não aguentou e explodiu de amor.

Lembro-me dela serena, sentada comigo ao colo, alisando-me os cabelos e contando-me histórias de sua cidade natal, do interior.
Recordo-me ainda de ter aprendido a lateralidade, ou seja, qual era o lado direito e qual o esquerdo, porque ela sempre me dizia que a mão direita era a que eu dava a ela ao dormir (dormíamos de mãos dadas, em caminhas lado a lado). Até hoje, quando penso em orientar alguém a virar à direita, me pego olhando para as mãos e lembrando dela.

Uma das passagens mais marcantes dessa senhora em minha vida, foi aos 5 anos de idade, quando precisei receber injeções subcutàneas, por conta de uma asma de origem alérgica, e ela me disse que a própria pessoa sabia melhor onde se aplicar a injeção, sem sentir dor.
Nesse momento, ela me ensinou a esterilizar seringa e agulhas (na ocasião não havia descartáveis) e o melhor local para aplicação das vacinas.
Deu-me ànimo para tentar. E eu aprendi a aplicá-las em mim mesma dali em diante.
Creio que isso foi decisivo na minha opção de fazer Medicina.

Essa mulher extraordinária eu tive o prazer de conhecer até os 6 anos de idade, quando então morreu de insuficiência cardíaca, e a honra de levar seu sangue em minhas veias e seu nome em minha assinatura.
Essa senhora quieta, de uma inquietude disciplinada, era minha avó. Seu nome: Lilian.

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