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Poesias-->A Linguagem pelo Movimento -- 05/03/2005 - 11:26 (Ronald Zomignan Carvalho) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos








A Linguagem pelo Movimento













Aforismos filosóficos

à maneira de Wittgenstein









Ronald Z. Carvalho

2003/2004/2005.











I



Este movimento, que sentimos constantemente em nossa vida, é uma expressão perfeita, metonímica, do movimento do universo, do próprio movimento da vida, e é, enfim, a própria vida, na medida em que a vida é movimento puro.

O movimento é independente do tempo e de velocidade, desde a pedra até um beija-flor, o movimento é o mesmo, e da mesma maneira independe do espaço, na medida em que o movimento amplia o espaço, ou, pelo menos o transforma.

De tal forma que, no limite, o movimento é a única coisa, e tudo se cria a partir dele, pois é ele que cria a ilusão de massa, de luz, de cores, e as próprias sensações, que decorrem necessariamente do movimento.

É o movimento também que explica o tempo, posto que o tempo não existe, a não ser associado à noção de movimento e espaço, ou seja, é anulando o espaço que o movimento cria a idéia ou ilusão de tempo, ou de forma dialética, o movimento legitima a noção de tempo, a partir da transformação da massa, da luz, das cores, e – mais profundamente - dos sons.

O mundo é movimento, e a noção de movimento se confunde com a própria idéia, ou ilusão, de vida.

















II



Existem três elementos fundamentais na existência humana: a luz, o som e o sonho.

Combinados, estes elementos formam a composição da vida. Associados ao movimento dão origem ao próprio movimento universal: o único movimento contínuo possível.

A luz serve para dar às coisas o seu contorno de realidade. Iluminar ou não, verdade ou fantasia, ideal ou idealização.

O som serve para dar consciência aos movimentos humanos de abandono.

Volto a cabeça de repente no meio da rua porque um pássaro cantou. E a visão cento e oitenta graus do movimento me dá a sensação de estar vivo.

O sonho torna verdadeiro e concreto tudo o que o som e a luz constróem a partir do movimento.

O movimento é luz e sonho, sombra e som, voz e rosto.

Girando o disco da memória, este doce movimento de luz e som revela o sonho.















III





O espírito é formado pelo som e a luz, canalizado através do sonho, e posto em prática através do movimento.

O som está na origem absoluta de todas as coisas.

È a primeira prova da existência real e a negação principal da ilusão.

Ouvir vozes é o primeiro sintoma da ilusão.

Ouvir é a primeira função do organismo humano, que, no útero materno, não sente gosto, não tem tato, nem visão, apenas ouve...

O som é a origem da vida, o som é a própria vida.

Associada ao som, a luz permite que as coisas adquiram contornos que possam levar à intuição da existência.

A luz viabiliza a visão. O ser no útero materno não vê porque não tem luz.

Luz e som formam o quadro da vida. Luz e som desenham o sonho através do movimento.

Tome uma folha de papel em branco.

Balance-a entre os dedos e ouça seu som.

Coloque-a contra a luz e observe a textura do papel.

Desenhando o som e a luz ao longo do papel você escreverá o sonho.









IV





A poesia, enquanto representação do som, da luz e do sonho, através do movimento, é a arte suprema, e provavelmente a proto-arte, a primeira manifestação artística do ser humano, seja em termos históricos, se já em termos de sua cronologia individual de existência.

O primeiro homem ao tentar pela primeira vez uma manifestação interior, por assim dizer artística, provavelmente o fez por meio de uma emissão poética. A criança, ao balbuciar as primeiras palavras emite versos, considerações de natureza poética, escandindo sílabas e procurando através dos sons imitar a cacofonia da fala humana.

Uma boa definição, aliás, de poesia.

Tendo o sonho como tema, e a luz e o som como instrumento formal de expressão, o poeta utiliza-se do movimento para que possa viabilizar algum tipo de transmissão de sentimento ou pensamento, ou ambos, que se transmuda na forma mais primitiva, mais nobre, mais forte e mais clara de expressão humana.

A poesia é a realização gráfica do sonho, que se canaliza pelo som, por meio de símbolos luminosos gerados pelo movimento.







V



Sabemos assim que a luz, o som e o sonho canalizam-se na poesia, e, juntando-se com a música, resultam na canção. Tudo isso associado ao movimento resulta em dança. Este é o ciclo completo da vida. Cujo objetivo final é a morte. A morte tem como significado principal o cessar da dança, da mesma forma que o nascimento é o começo da dança, razão pela qual os primeiros movimentos do ser humano são movimentos de dança e os últimos movimentos de repouso. O som rege o nascimento, o silêncio rege a morte. O nascimento é a busca da luz. A morte é o apagar da luz. A morte, porém, é a perpetuação do sonho, na medida em que a morte começa com o sonho, e continua com o sonho, mesmo sem a existência da luz e do som, e conseqüentemente do movimento. No silêncio e na paz da morte, o sonho continua. Para que a vida continue. Para que o som continue. Para que a luz continue.

E o movimento não cesse nunca.





VI







Movimento, luz, som e sonho. Poesia, música, canção, dança.

Palavras, símbolos, idéias que resumem a vida. A vida é o resultado ilusório da combinação contínua e incessante destes símbolos. A morte a cessação do movimento, do som, da luz.

Fim do próprio sonho. A voz da luz. O som do sonho. A canção do movimento. A luz da poesia.

A música do espaço e do tempo, a evolução da dança sendo o elo de ligação entre o nunca e o sempre, a noção de realidade e a fruição da ilusão completa.

A ilusão é a única verdade possível. Como uma fumaça tocável. Como um eco alcançável no espaço.









VII





O silêncio exerce, seja no campo do som, da imagem ou do movimento, o papel de instrumento essencial de existência das coisas. Em outras palavras, só é possível compreender o som se comparado ao silêncio, só é possível compreender o movimento se associado à imobilidade, só é possível compreender a luz se associada à escuridão. Assim como, no dizer do antigo filósofo, só é possível compreender o prazer em presença da dor, a dor torna possível a existência do prazer, o silêncio torna possível as coisas, o som, a luz, o movimento. Por isso ao falar do movimento, é preciso entender o movimento da pedra, é preciso observar longamente a pedra, e compreender que, ao longo dos séculos, de uma forma ou de outra a pedra se movimenta em direção ao silêncio e o silêncio se demonstra a partir deste movimento da pedra. A pedra é, portanto, a expressão mais pura do movimento, do som, da luz, uma vez que tudo isso surge permanentemente da contemplação da pedra. A contemplação da pedra é o movimento em direção à compreensão do sentido do universo.









VIII







A meditação constitui-se na atividade ou não-atividade mais importante dos exercícios disciplinares de desenvolvimento e autoconhecimento. Da mesma forma como a poesia é a suprema expressão humana, a meditação é a suprema atividade humana. Pela meditação é possível chegar à compreensão do movimento, do som, da luz, acima de tudo de afastar-se da ilusão e, portanto, ser capaz de usufruir a realidade em todas as sua dimensões através da consciência. E do estado permanente de alerta que é o fim em si mesmo da meditação. O único momento em que o ser humano se liberta do sonho sem prejuízo de sua integridade é a meditação, que se confunde com o próprio sonho e sublima a própria essência do sonho.





IX





É possível, através da meditação, afastar-se de quase tudo. Só não é possível afastar-se do som. Ao fechar os olhos é possível afastar-se do suceder de imagens do mundo em movimento e fugir até do próprio movimento. É possível, por meio da concentração, afastar-se até dos próprios pensamentos. Não é possível, porem, afastar-se do som. O som, emblematicamente, é a mais forte representação do mundo exterior, ele conduz o sonho, acompanha o ritmo do movimento, portanto, rege o movimento, conseqüentemente, rege a própria essência da vida. O som é a própria essência da vida. O silêncio, por isso, longe de ser a negação do som, é a afirmação do som, pois pontua e sinaliza o som, enquanto manifestação silenciosa do próprio som. Fazendo silêncio, fazemos som, fazendo som, preparamos o silêncio. Silêncio e som são duas faces da mesma moeda, a que podemos chamar livremente de movimento da consciência.









X



A essência do movimento é estar alerta, o que se alcança por meio da consciência. A luz do movimento interior é a consciência. O movimento interior é a pedra que se move constantemente em direção ao infinito. Em silêncio, que é um movimento sonoro. A consciência deste movimento é a cor que confere à vida o aspecto de um quadro interior, onde as cores serão mais fortes, quanto mais forte for o nível de consciência e a integração do silêncio aos atos cotidianos por meio da meditação. A poesia é a meditação escrita, o sonho escrito, o pensamento escrito, a consciência escrita. A luz escrita, ou desenhada no papel, como representação do sonho. A música é a poesia num arranjo diferente dos sons e dos símbolos. A dança é o movimento da vida.







XI



Às vezes estar alerta é agir. Outras vezes estar alerta é não agir. Mas estar alerta é sempre estar consciente em todos os momentos. A consciência é o instrumento único que possuímos para perceber e entender o movimento. O caminho da vida é, portanto o treinamento para a consciência, senão plena, visto que isto é impossível para o ser humano, mas constante. A consciência é uma luta cotidiana, parábola do movimento constante da vida.









XII



Uma das questões fundamentais do espírito humano é a compreensão do movimento da pedra. A contemplação do movimento da pedra. A aceitação do movimento da pedra. A iluminação só pode ser atingida a partir da compreensão do movimento da pedra. Para isso servem os jardins.













XIII





Sabemos pouco. Mas saber o que sabemos é o caminho para sabermos tudo. Inclusive que não saberemos nunca tudo, mas saberemos muito. A busca de saber tudo é o movimento da consciência. A consciência é saber tudo. Por meio dela saberemos tudo. Que sabemos muito. Que sabemos mais a cada momento. E que, um dia, saberemos tudo. E isto será nada.







XIV





A sabedoria é a consciência do movimento.









XV





O espaço é a grande realidade humana, talvez a única realidade humana. A partir da consciência do espaço e, conseqüentemente, do movimento que os deslocamentos neste espaço representam, podemos exercer nossa condição humana de estar presente e viver. O movimento no espaço, portanto, é o gerador da vida como a entendemos em termos da ação humana possível, e sua primeira manifestação é o som, portanto para o ser humano, a palavra. A partir da luz manifestando-se no espaço surge a cor e o tempo, variáveis essenciais do processo sensorial, que é a própria vida. A vida é o movimento no espaço, dos seres, dos sons, e se manifestam através da palavra e da cor, e também da música e da arte enquanto manifestação da cor no espaço.

Podemos viver sem sons, sem luz, sem cor, sem música, só não podemos viver sem espaço. Quando ocorre a perda de sentido que nos isolam dos sons, luz ou cores, é a partir do espaço que criamos sons, luzes e cores próprios que se tornam luz, e sons e cores tão reais quando os de percepção coletiva, embora objetos de uma reação individual é às vezes fechada para o mundo real. Só a partir da percepção e, conseqüentemente, consciência do espaço é que podemos estar vivos. Criar cores e sons, palavras e música. E isto é a vida.











XVI





O tempo é uma criação humana que visa ao entendimento do movimento e sua fruição individual.

Por isso a poesia, a música, a dança, usam os elementos temporais para a combinação de movimentos que levam à transmissão de um sentido ou sentimento. É como se voássemos, ou melhor ainda, é uma forma de vôo, um sentimento de vôo, uma luz de vôo, uma cor de vôo, ou até mesmo uma ilusão de vôo. Por isso a única forma de comunicação possível é através do sentimento que é a interpretação solitária do movimento na busca do outro. Eu e o outro, por meio do sentimento, podemos nos comunicar, ou seja, sentir juntos. Voar juntos, dançar juntos, cantar juntos. E a isto, comumente, chamamos de amor.





XVII







A arte, toda arte, é uma forma de comunicação com o universo e com o outro. A arte é também a representação autêntica da vida, mais do que a expressão racional, ou a representação ou transcrição literais, que são meras reproduções mecânicas, enquanto que a arte é uma forma viva de expressão e diálogo. A arte reproduz o movimento, por isso é, ela mesma, móvel, contínua, perene, infinita. A arte representa o movimento, portanto se confunde com a própria vida. Assim, a poesia, a música, a dança, a pintura, a escultura e todas as artes se confundem com a própria vida, e o artista quase sempre perde a noção da distinção entre a reprodução artística e a realidade vivida, distinção aliás provavelmente inexistente na medida em que a arte é a vida e a vida é a arte, portanto a loucura do artista é quase igual à sanidade, aliás é melhor do que a sanidade. Se é que existe algum tipo de sanidade.













XVIII





Crescer é o movimento da rosa, que ao crescer, cresce em direção ao seu movimento. Crescer é a vontade, a vocação, a direção da rosa. A rosa cresce em tamanho, perfume, cor e espinhos. O jardineiro aduba para incentivar o crescimento, a qualidade do adubo melhora o seu perfume e cor, às vezes, o jardineiro poda seus galhos para estimular seu crescimento ou direcioná-lo, e atenua seus espinhos. Não existe informação científica se a rosa sofre ou não com o processo de poda, embora a crença generalizada seja de que não há sofrimento entre os seres vegetais.

Assim é, na vida humana, o processo de crescimento e desenvolvimento.







XIX







A capacidade de reproduzir o movimento num tipo de linguagem é a própria representação da vida, é a própria vida. Andar pela rua sem destino pode ser a poesia realizada em sua plenitude, desde que traduzida numa linguagem, como fizeram os franceses no século dezenove. O movimento deambulatório equivale ao movimento do pêndulo, e ambos são capazes de reproduzir a vida, de recriar a vida, de ser a vida. A linguagem é a vida, a linguagem é o movimento da vida. Todo movimento é a expressão máxima do sentido vital porque caminha em direção ao centro de tudo, que está em qualquer lugar que nossa consciência indique e reconheça. A consciência é a manifestação máxima da vida humana. A linguagem é a tradução simbólica da consciência. A poesia é o movimento da consciência.













XX





A relação com o mundo equivale ao movimento do espírito. Da mesma forma que o movimento no espaço cria a vida, a ilusão de vida, o movimento no espaço espiritual cria a vida espiritual, a vida relacional. Por meio do movimento físico a relação com as coisas cria a existência física, que os sentidos fazem funcionar, transformando sons, luzes, cores, cheiros, em manifestações de vida. Da mesma forma a relação com as pessoas no mundo desenvolve um sistema relacional do espírito que caminha em paralelo coma vida física, criando, ao mesmo tempo, um espaço não-físico que, no entanto, situa-se no próprio espaço físico enquanto meio fundamental da existência humana. Assim, existir no espaço físico e relacionar-se com o mundo são dois lados de uma mesma realidade. A realidade da vida.















XXI







Viajar é movimentar-se no espaço para combater a ilusão do tempo. Buscar o sol quando chove aqui. Anular o movimento do tempo, ou o espaço do movimento ilusório, ou ainda o tempo que se esboça no movimento que se perde no espaço. Somos todos aventureiros desta busca que ao mesmo tempo é tempo e nada, espaço e silêncio, mentira e verdade, a realidade possível. Movimento da luz. Medo da morte.







XXII





Relacionar-se é movimentar-se no espaço não-físico mundo, assim como viajar é movimentar-se no espaço físico do mundo. Assim, relacionar-se e viajar são a mesma coisa, processando-se em espaços diferentes, em movimentos de natureza diversa, mas essencialmente significando o movimento no espaço em direção a uma busca qualquer de uma estabilidade qualquer que não existe. Quando nos afeiçoamos a alguém o que fazemos é a mesma coisa que pegar um avião ou navio para partir em direção a um espaço desconhecido, mas intuído ou até desejado, a mesma ansiedade nos move, a mesma vontade de pertencer algures, a mesma busca, enfim. O amor e a viagem são busca. O amor é viagem, e a viagem é amor.









XXIII





A viagem é movimento em direção ao sonho. Ela resume a luz, o sonho, o som e o movimento, enquanto elementos fundamentais da vida humana. Viajar é uma tentativa de viver, viajar é imitar o movimento da vida para que a própria vida fique mais viva. Viajar é uma tentativa de entender o mistério.



XXIV







Os mais nobres e agradáveis movimentos da vida humana, portanto, serão o sonho, a criação artística, a viagem e a relação afetiva.

O sonho porque reproduz tudo o que a vida representa e representa a vida.

A criação porque imita e cria a própria vida.

A viagem porque é um caminho para o entendimento da vida.

A relação afetiva porque é a própria essência da vida, do estar no mundo.

A vida é sonhar, viajar, criar e amar.









XXV



Uma vez que o movimento é a essência das atividades vitais e é a própria vida, torna-se evidente que as ações vitais fundamentais são relacionadas ao movimento, ou são, na sua própria essência, o movimento em si mesmo. Assim, viajar é movimento, amar é movimento, criar é movimento, sonhar é movimento. Da mesma forma a luz, o som e o sonho, que se constituem nos elementos vitais básicos, se unem num movimento vital primeiro, e se tornam expressão da vida pelo próprio movimento e, de certa forma, também são movimento. A luz é movimento, o som é movimento, e o sonho, como já sabemos é movimento. A tal ponto que tudo isso que constitui a vida acaba por ser movimento, o que remete à idéia básica de que o movimento é tudo. Pensando bem, o movimento é tudo o que existe, o movimento é o móvel e origem de toda a criação. O movimento é o mundo.















XXVI





A descoberta do sentido do movimento é o caminho. Caminho que perpetua o próprio movimento, revela a luz, realiza o sonho. O caminho da iluminação.

A descoberta do caminho é feita por meio do sentimento e da vontade.

Os elementos básicos para a descoberta do caminho são a própria luz, o próprio sonho, o próprio som, embalados pelo silêncio.

A isso chamamos iluminação. O símbolo da iluminação é o círculo.

Porque é o sonho que conduz ao sonho.

Porque o sentimento e a vontade são o caminho que conduzem ao próprio caminho.

















XXVII





A proposta do círculo sugere uma continuidade ininterrupta e ao mesmo tempo uma igualdade completa entre as coisas observadas, sentidas, vividas. Assim, o caminho pode ser a poesia, a poesia é o movimento, o sonho é a poesia, o sonho é a luz, a luz é o caminho, a poesia é a luz, e assim por diante. A grande proposta contemporânea das desigualdades seria então um mero exercício epistemológico, porque a realidade vivida aponta para a igualdade, para uma completa uniformidade, uma só cor, um só som, um só movimento. Movimento que é o caminho.

O caminho é a vida. O caminho é ser. O círculo é o símbolo da continuidade e da uniformidade.

O universo é circular, contínuo, ininterrupto. O universo é uno e indivisível, por isso é impossível tentar compreendê-lo em partes. O único caminho é o todo. Movimento do círculo em direção a nada.









XXVIII







Quando alguém desenha um círculo, chega um momento em que para com o lápis e considera o círculo completo. Às vezes é preciso parar para entender o movimento. Parar faz parte do próprio movimento, pois a imobilidade aparente é apenas uma forma de movimento lento, pois não existe realidade fora do movimento, o movimento é perene e constante, parar é a ilusão que o movimento lento provoca. Parar é uma forma de refletir sobre o movimento, de sentir-se parte do movimento, parar está para o movimento assim como o silêncio está para o som, como a pausa para o discurso.

Nas artes marciais, na música, na dança, na vida, parar é a arte de valorizar e compreender o movimento.









XXIX







A morte é também a cessação do movimento da vida. A existência de vida após a morte pode ser objeto de crença ou esperança, mas não é objeto de prova. Por ser a parada do movimento a morte é parte do movimento da vida, caracterizando-se como o último ato vital. A morte, no entanto, só existe para aquele ou aquilo que morre, na medida em que o movimento do mundo continua após a morte e a presença do ser que morre continua nos outros seres e seus atos se perpetuam na medida de sua extensão e força. A morte pode também ser vista como um objetivo do ser, na medida em que a em direção do movimento da vida é a morte. Os seres sem vida não morrem. A elevação do ser exige a compreensão, aceitação e vivência da própria morte.

















XXX





Para a compreensão da morte é preciso, em primeiro lugar, a compreensão da vida, uma vez que a morte não existe, o que existe é a vida, e a morte é apenas a cessação da vida. O que chamamos morte, não é uma coisa existente em si, não é um fato ou acontecimento positivo, real, mas sim um nome apenas para o acontecimento da cessação da vida. Enquanto a vida é movimento, a cessação do movimento é a cessação da vida, embora no ser em que a vida cessa naquela organização específica de ser, outras organizações prosseguem, sugerindo a idéia de continuidade, ou até de eternidade, o que quer que isso queira dizer. Compreendendo a vida e o significado desta continuidade que acabamos de citar estaremos compreendendo que sua cessação é um fato tão relevante e tão importante, que faz da morte um dos temas mais fascinantes e importantes da cultura humana. O que, aliás, reitera o fato de que o não existente é particularmente querido pelo exercício da cultura. Assim acontece com a morte, o silêncio, o escuro, e outras abstrações criadas pela inteligência humana.







XXXI







Não existe possibilidade de comunicação humana sem repetição. A repetição é, ao mesmo tempo, metáfora pedagógica, embelezamento da expressão artística e eco, teste e constatação da verdade.

Na música, na literatura e na dança, a repetição é parte integrante da própria arte. Nas outras artes também.

O único ato humano que não se repete é a morte, embora a morte, para quem não morre, possa repetir-se indefinidamente no jogo da memória, nas armadilhas do afeto, quando a lembrança provoca a evocação e a repetição da morte.

A morte é triste, e dificilmente aceitável pelo ser humano. Entre outras coisas por não se repetir.

O próprio movimento, essência da vida, é repetição, e só existe enquanto repetitivo. Nas viagens, o céu se repete, a paisagem se repete a cada curva.

Só podemos ter consciência da individualidade única das coisas se formos capazes de expressar repetitivamente sua similaridade.









XXXII







Individualidade e similaridade são aspectos complementares uma mesma realidade. Assim como individualidade e alteridade são complementos da consciência de estar no mundo e ser capaz de relacionar-se com ele. A consciência e o autoconhecimento que dela decorre dá origem à capacidade de reconhecer o outro e caminhar em direção a ele, da mesma forma que a consciência individual é o que nos dá a capacidade de reconhecer o nosso similar e com ele partilhar o mundo.

Assim, como no velho ditado, os pássaros da mesma plumagem voam juntos. Abutres voam com abutres. Os maravilhosos gansos selvagens voam em bando.





XXXIII





O próprio movimento é uma espécie de linguagem. Assim como a consciência é a percepção constante do todo, da universalidade, a linguagem é a redução do todo à parte mais próxima como elemento de capacitação de comunicar-se. O movimento é universal, a consciência é universal, a linguagem é local, a comunicação é local. Mas a comunicação torna-se mais nobre na medida em que atinge uma horizontalidade maior, tendendo à universalidade. Assim é a arte, o amor e o sonho, que são hipóteses possíveis de universalidade.





XXXIV





A memória é a consciência do movimento. A memória é o movimento da consciência. Memória e consciência às vezes se confundem. A ciência contemporânea descobriu que o segredo da memória é a consciência no momento da descoberta do movimento. Na meditação, na arte, na dança, na comunicação, no amor, em todas as atividades humanas mais nobres, a memória é o instrumento de preservação da vida, do movimento da vida. A memória viabiliza e condiciona o sonho. A capacidade de criar e amar são proporcionais à memória. O ser humano, como os computadores, não existe sem memória, pois a memória é o aparelho de demonstração e exercício da consciência. A poesia é o mais nobre dos exercícios de memória. A poesia é um jogo da memória. A poesia é memória.







XXXV





No fim são palavras. Como amar o dedo que aponta a lua e não a lua. Como buscar a ilusão da imobilidade e não a realidade do movimento. Como imaginar quer a poesia possa ser diferente da verdade. O que quer que seja a verdade, exista ela ou não. Sabemos que a ilusão existe. Não sabemos o que é a realidade. Ou quando. Ou como. A ilusão está presente a cada momento, em cada gesto. E tudo são palavras. Mesmos palavras ou olhares são palavras porque são símbolos. Só podemos ou só sabemos nos comunicar por símbolos. Assim, ao comunicar, negamos a realidade e ampliamos o horizonte da ilusão. Símbolos são coisas inventadas. Símbolos são coisas inventadas.

Símbolos são apenas símbolos.

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