Não sei se isto que vou escrever aqui se insere como conto (porque estou contando), ou crônica (porque é um relato verídico) ou artigo (porque pode mostrar uma ineficiência, no caso, a minha).
Seja qual for o gênero literário da coisa, o certo é que foi uma situação que me constrangeu.
Estava eu posta em sossego, vendo um filminho antigo na TV, quando o telefone toca. Do outro lado, a voz chorosa de uma conhecida, nem amiga posso dizer que fosse.
-- Érica, que bom... que bom que você está em casa!
--- O que foi, o que aconteceu? Sua voz nao está muito boa...
--- Posso ir até aí? Não dá pra falar pelo telefone. Você está sozinha?
--- Estou. Você já jantou? Se ainda não jantou, pode jantar comigo.
--- Quase não comi nada hoje. Mas não se preocupe comigo. Chego aí em vinte minutos.
Desligamos. Não entendi bem o que estava acontecendo. Mas por certo saberia quando ela chegasse. Fui para a cozinha, vi que tinha suficiente para duas pessoas. Arrumei a mesa, dei um jeito na baguncinha que sempre se forma quando cozinho... Troquei de roupa - troquei a camiseta e os shortes por blusa e jeans. Mais adequado para receber uma pessoa com quem pouco me dou, e muito menos convidei pra vir à minha casa.
Passados 40 minutos, a moça chega. Entra com a cara mais inchada que já vi. Deve ter chorado por todo o caminho e ainda antes. Trazia na mão uma maleta do tipo que se leva a uma academia. Estava tão cheia que parecia estourar nas costurar.
Entrou, me abraçou, murmurou qualquer coisa e desabou a chorar. Fiquei ali estarrecida. Não tinha dados suficientes para perceber a razão da crise. Devia ser algo com o casamento dela. Mas eu não sabia nada além de saber que ela era casada. Eu sabia apenas de um dado: o seu marido era cego.
Comemos muito pouco. Ela não dizia nada, só elogiava a comida. Estava empurrando o assunto. Servi-lhe café, ela recusou. Pediu por um licor. Ofereci um amarula, o meu preferido. Ela respondeu que amarula é coisa de criança - chocolate com leite condensado... . Menos mal que os critérios dela ainda estavam ativos. Serviu-se de um Grand Marnier - também meu preferido (licores ... prefiro a quase todos...).
Enfim, a história começou a se desvencilhar do coração apertado dela: o marido cego admitiu uma secretária para ler para ele não só livros, como também artigos de jornais, tudo o que estivesse impresso, mas em inglês, um idioma que minha amiga não dominava. E o marido ...- adivinharam - ... apaixonou-se pela leitora americana. Pela voz dela. Pela sensibilidade com que ela lhe lia os textos. "Ficou vidrado pela moça." E com isto, pediu à minha hóspede, que se fosse da casa. Porque desde então, ele teria uma outra companheira. E ela ali estava, de mala e cuia, pronta para se despejar de saco e viola, na minha casa. Eu, despreparada para hóspedes noturnos/as, fiquei meio sem jeito. Na minha mesa sempre cabe mais um, mas nos arranjos de pouso, preciso sempre de uma estruturação quase arquitetônica. O quarto de hóspedes é minha biblioteca, necessito de dias de reserva antecipada para poder adequá-lo para alguém. -
Ela aceitou dormir no sofá, que se abre em tamanho cama de casal. Ficou três dias em minha casa. O companheiro dela (descobri que não se tinham casado) me telefonou perguntando por ela. Respondi que estava em minha casa, mas que tinha saído - era verdade. Aí ele lhe deixou um recado: que voltasse para casa, que ele lhe tinha perdoado tudo.
Não entendi nada. Então... então ela me tinha contado uma história mentirosa?
Quando ela entrou, lhe passei o recado. Seus olhos brilharam, um sorriso separou seus lábios ressecados, sua pele ganhou um tom lustroso. Agarrou rapidamente suas coisas, me deu um beijo no rosto e disse:
--- Muito obrigada por tudo! Por tudo! Um dia ainda te conto o que aconteceu.
--------------- E foi embora. E nunca mais soube dela. E não me interessa tampouco. Sinto por não ter podido perceber que ela me estava mentindo, por não ter podido perceber que ela me tinha escolhido para sua confidente e hospedeira porque na realidade, eu sabia nada sobre quem ela era. Só confiei.