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cronicas-->O amor é um sentimento cheio de dedos -- 30/08/2000 - 00:22 (Mastrô Figueyra de Athayde) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


Um movimento brusco, quando se esforçava para imitar os gestos largos do Andriev Alvareztvizkov, fez o pianista Marcello Pendezeck desfechar um leve golpe no rosto de uma mulher que passava a seu lado. A repórter Mariana Nunes dirigia-se distraída, ao toalete de senhoras. A mão direita do músico espalmou-se involuntariamente sobre a sua testa e ela gritou em fá menor. "Ahhh...", todos puderam ouvir claramente.
O pianista Pendezeck defendia, naquele momento, a reputação dos concertos regidos por Andriev Alvareztvizkov, que a crítica especializada costuma considerar um maestro sentimentalista, exagerado e "louco", em seu estado pleno. "Alvareztvizkov não deve ser considerado um músico, mas um poeta da loucura, principalmente depois de seu primeiro concerto: "A Lenda do Papai Smorf". Foi o primeiro e único à tratar da loucura", o pianista começava a dizer quando a repórter apareceu a seu lado. "Poetas e loucos não podem ser julgados por professores", ainda conseguiu completar, antes do movimento fatal.
Mariana deu outro grito, "Ahhh...", reflexo mais do susto que da dor, pois o pianista mal lhe tocara o rosto. Marcello Pendezeck, num gesto cordial, apressou-se em ampára-la. "Tire essas mão sujas de mim", a repórter gritou, horrorizada. "Quem você pensa que eu sou?", e foi direto para o banheiro, batendo a porta. Quando voltou, encontrou o pianista perfilado diante do balcão. Ele fez uma reverência um tanto forçada, que o levou a recordar os movimentos mecànicos dos mordomos, e depois disse: "Posso pagar-lhe um drinque para me desculpar?".
Mariana e Marcello beberam juntos até tarde, ali mesmo no balcão do Bar da Serpente Dourada. Ficaram de porre e acabaram dormindo na casa do pianista. Na manhã seguinte, Mariana, a repórter que é a calma em pessoa, saiu antes que o pianista acordasse. Deixou um bilhete: "Queria te ver novamente. Mas nada tenho a oferecer a não ser meus dedos".
Não deixou endereço, de modo que Marcello, mesmo interessado em reencontrá-la, viu-se obrigado a desistir da idéia. "Não passa de uma pianista", pensou, relendo o bilhete de Mariana antes de o rasgar. E voltou a se concentrar na obra de Alvareztvizkov, em particular no Concerto Toureros de Barão, que deveria interpretar dias depois no Teatro Castro Mendes, em Campinas.
O teatro estava lotado. Assim que pisou o palco, Marcello viu Mariana sentada bem na primeira fila. O pianista estranhou que ela fosse a única pessoa da platéia a não o aplaudir. A repórter manteve-se assim, indiferente e imóvel, com a sua caneta esferográfica entre os lindos dedos, que estavam cobertos por uma luva preta , se mantendo até o final do concerto. Quando o auditório se ergueu para a apoteose final, Mariana Nunes conservou os braços estendidos com as mãos metidas entre os braços. "Deve estar rindo de mim", o pianista pensou magoado. "Sentimentos são mesmo uma tolice".
Ao entrar de volta no camarim, Marcello Pendezeck encontrou diante do espelho uma caixa de presente, ornada com um laço espalhafatoso. Havia um bilhete: "Só abra quando estiver sozinho", dizia. Estava assinado: "M". O pianista desmarcou um jantar com a crítica e, alegando um mal-estar súbito, foi direto para casa. Tirou a casaca, enfiou o pijama listrado de verde e branco, instalou-se em uma poltrona e com os pés bem esticados sobre um pufe, abriu o embrulho.
Ao ver o que ele aguardava, desmaiou. Quando voltou a si, um tempo indefinido depois, rastejou até a sala de jantar, deixando o presente derramado sobre o tapete. Pegou o telefone e chamou a polícia. "Quero denunciar um crime", disse, ainda inseguro em relação ao que se passava.
Os policiais encontraram dez dedos humanos borrados de sangue e com unhas pintadas em azul, espalhados sobre o tapete. "E onde está a vítima?", um inspetor perguntou, mas Marcello achou que estava zombando de sua desgraça. "A vítima sou eu!", respondeu, mas não lhe deram ouvidos. O caso acabou sendo arquivado.
Marcello Pendezeck nunca mais conseguiu tocar piano. Mudou-se para Minas Gerais. A última notícia a seu respeito, um tanto imprecisa, diz que ele trabalha como rádio-escuta e digitador no Diário de Uberlàndia, que tem como chefe de redação uma certa Mariana. Mariana Dedinsk. Já a outra ninguém teve mais notícias, muito menos o motivo que a levou a fazer tal selvageria. Diz a lenda, que o sonho de Mariana Nunes era ser pianista, mas através da sua frustração, achou por bem entregar os instrumentos de seu desprazer para alguém que conhece do assunto em sua síntese, mas não imaginava que aqueles dedos que tocavam os acordes da loucura pudessem deixar de ser exaltados, entrando decisivamente para a história: da música, da loucura e do amor...

Mastró Figueira de Athayde é cronista e puxador de fanfarra do Unidos do Sauva

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