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Contos-->Receita de lua-de-mel -- 12/11/2000 - 22:59 (Luiz de Aquino Alves Neto) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Receita de lua-de-mel

(Luiz de Aquino)

Zé Alfaiate era trabalhador. Como sempre se falou a seu respeito. E não tinha argumento que o afastasse do compromisso assumido. Nenhum mesmo. E o simples fato de ser aquele o sábado de seu casamento não era motivo para atrapalhar a entrega de alguns trabalhos combinados antes.
Sabe-se como é. A preocupação com o matrimônio assumiu um volume tão grande na cabeça que ele esqueceu que não devia aceitar a responsabilida-de de tanta encomenda para o domingo. E só deu fé do esquecimento no sába-do, cedinho, justo no sábado em que ele ia receber a amada para sempre, até que a morte etc.
Como a gente já sabe, o Zé acordou cedinho. E logo cedinho agarrou no serviço. Agarrou na tesoura e nos cortes de linho importado, medindo e recon-ferindo, porque aquilo era roupa de alta cerimônia. E tinha de entregar um ter-no para o Doutor Jerônimo, o dentista, além de duas calças encomendadas pe-lo Coronel Matias.
Coronel Matias era o fazendeiro mais rico da região. E ele até que não dava muito trabalho; homem do sertão, muito simples, nem parecia dar muita importância à influência política que seu imenso rebanho assegurava. Mas o Dentista, doutor de papel no quadro e anel no dedo. Tinha até uma placa na porta: Doutor Jerônimo de Godoi Rodrigues — Cirurgião Dentista. O que encabulava era aquele cirurgião. Dentista todo mundo sabe o que é, mas ci-rurgião deve ser dentista mais preparado, dentista e mais alguma coisa. Será que era por isso que ele fazia questão de andar tão elegante? Ah!, mas isso tem os seus efeitos. Não é ele o rapaz mais procurado pelas moças e pelas mães das moças e pelos pais das moças da cidade inteira? É um almoço na casa de siô Fulano, outro na casa de Dona Beltrana, uma novilha de presente do Olím-pio (ora veja, o Olímpio — pão-duro como ele só e dando presente pro dou-tor!). Também, com esse nome, sobrinho do Coronel, doutor formado em Ni-terói e que tem até motor elétrico no consultório. Não é como o siô Donato, que tem aquele gabinete com motor de pé, não senhor!
E o Coronel? Tá com pressa dessa calça branca, pois o Rex, o cachorro da Judite, arrancou a barra da outra novinha. Bem que o Zé Alfaiate avisou pro Coronel ter cuidado. A Judite tem mania de criar cachorro e logo um ca-chorro brabo como o Rex. Foi a conta dele ver o Coronel abraçando a Judite pra avançar nele. Se a Dona Nenzinha sonhar com uma cosia dessas, coitado do Coronel!
E assim divagando, Zé Alfaiate adiantou bastante o serviço e nem per-cebeu que tinha esquecido de almoçar. Já começava o relógio da Matriz a marcar doze. Aí, associando as badaladas com o fato de ser o relógio da igreja, o Zé se lembrou do casamento. Catou toalha e sabonete, a navalha e o chinelo e correu pras bandas do Péla (esse é um nome abreviado, exigência da moral dominante, pois que o topônimo que o vulgo atribuiu àquele poço com águas a quase cinqüenta graus centígrados é impronunciável entre as pessoas de res-peito; onde já se viu falar Péla-Cu entre as mulheres, as moças ou as pessoas mais velhas?). Caprichou, voltou às pressas, de chinelo e sem camisa, a toalha envolvendo os ombros e, rápido como sempre, trajou-se para o grande aconte-cimento.
Esmeralda — a noiva — teve um sono constantemente interrompido. Não era pra menos. Estava quase na hora de mudar radicalmente de vida. E nos intervalos entre um cochilo e outro, durante toda a noite, imaginava-se dona de casa, dando ordens ao marido, ralhando com os filhos (quantos teri-a?), discordando das vizinhas palpiteiras...Enfim, sonhando com um indepen-dência que não gozava em casa. A severidade do pai, associada à submissão da mãe — uma santa! —, não lhe permitia liberdades. Tanto é que o casamen-to ia se realizar sem que os noivos tivessem, até então, trocado um beijo se-quer. O único contato mais íntimo que tiveram foi quando ficaram noivos. siô Teodoro tinha tomado umas e outras e não censurou quando o Zé segurou a mão de Esmeralda para uma fotografia. Sol nascendo, Esmeralda já tinha se levantado e tomado café-com-leite em companhia da mãe. Dona Justina, por sua vez, não dava uma palavra. Tentava iniciar uma palestra de recomenda-ções a Esmeralda, mas o vocabulário era tão pequeno que se arrependia, com medo de ter que usar alguns nomes feios pela primeira vez em sua vida.
E depois foi um tal de passar o vestido, ajeitar a grinalda, colher umas flores de laranjeira, passar alvaiade no sapato. Mariquinha de Dona Sinhana ia “pintar” a noiva, arrumar um penteado bonito. E Vó Catarina era a encarrega-da dos doces e salgados. Não ia ter festa, mas carecia agradar os padrinhos e os amigos que iam aparecer depois da cerimônia.
Ainda não era uma e meia quando Zé Alfaiate chegou todo elegante à sacristia. Terno azul-marinho (trabalho dele mesmo), a camisa de colarinho engomado, gravata prateada, os sapatos de verniz (presente do Coronel, que comprou em Araguari), os cabelos aparados de véspera.
Padre Tomás cochilava numa espreguiçadeira. No tempinho que restava até que a noiva chegasse, o bom sacerdote encheu o Zé de conselhos — o noi-vo, todo ouvidos. Cinco pras duas, Esmeralda na porta da Igreja, os padrinhos formando grupos, os amigos aproximando e tecendo ironias.
Siô Bento da farmácia, homem mais letrado, comentava:
— Na Europa e Norte-América é costume os padrinhos beijarem a noi-va.
— De jeito nenhum! — cortava o noivo — Eu até hoje num beijei, cumé que padrim vai beijá?
E qualquer coisa que se dissesse servia pra mais uma brincadeira com o noivo, que explodia sua gargalhada famosa e pitoresca.
Foi durante a cerimônia que o Zé se lembrou de que não tinha provi-denciado os foguetes. E isto o magoou mais que o compromisso das entregas por fazer. Casamento sem foguete até parece coisa mal contada. Quê que o pessoal vai pensar?
A verdade é que ninguém, em todo o sul de Goiás, gostava mais de fo-guete que o Zé Alfaiate. Nos pagodes, todo mundo sabe quando ele tá chegan-do, porque ainda longe ele começa a atacar os fogos.
Por isso, a emoção do noivo foi muito grande quando, ao sair da Ma-triz, braço dado com a noiva, foi surpreendido pelos amigos com uma salva enorme de “caramuru”, bombas, traques. Até foguete-de-rabo, siô!
Abraços daqui, apertos de mãos, sorrisos e gozações das companheiras da noiva, cochichos dos camaradas e a caminhada até a casa do sogro para um dedinho de prosa e um gole. Mas o responsável oficial da tesoura não escondia a preocupação pelo serviço a esperá-lo.
Assim é que, lá pelas cinco, sol já baixando, instalados na nova casa, o Zé pediu licença a Esmeralda — agora esposa — e saiu, sem dizer o que tinha por fazer. A Alfaiataria Corte de Ouro ficava perto da casa. Na esquina moravam os Dantas, uma enorme família de negros também enormes, gente muito alegre e por isto chamados “Macacos” pelo povo. Esse tratamento nunca teve nada de pejorativo. Muito pelo contrário, passou a constituir motivo de orgulho por parte da família, em vista do tom afetivo com que era pronunciado o apelido.
E, mal escureceu, o batuque começou. No terreiro dos Macacos, todos os sábados e domingos, o pagode começava ao som de tambores, uma sanfona, um violão, cachaça e cabrochas. O Zé, coitado, nem ligava ao batuque. Estava, isto sim, louco por acabar a tarefa, e seus motivos eram óbvios.
Eficiente, terminou tudo quando a torre da Matriz ainda ia anunciar oito horas.
Entre temeroso e ansioso, adentrou a casa. Foi encontrar Esmeralda cho-rando, sentada num tamborete na cozinha. Preocupado, pensando tratar-se da ansiedade própria para uma situação das que estava por acontecer, aproximou-se da esposa e recebeu aquela chuva de impropérios:
— Então á assim? No nosso primeiro dia de casados você já me larga em casa pra ir pro pagode? Seu cachorro, isto não é papel de gente, miserável, blá, blá, blá...
— Mas Esmeralda, eu tava trabalhando, juro!
— Ainda jura, desgraçado, cê me paga etc. e tal...
Zé não vacilou. Pegou o paletó — o mesmo que usara pra o casório —, catou o chapéu no cabide e foi prestigiar o batuque dos Macacos.
Quatro e meia da manhã, o sanfoneiro já piscando demorado, terminou o baile. Zé estranhou a lamparina acesa na cozinha e muito mais ainda a mesa posta pra um café reforçado: tinha pão-de-queijo, broa, biscoito de polvilho, requeijão, leite quente, chá, café, doce e outras comilâncias...
Esmeralda sorria um risinho de arrependimento, compreensão e expecta-tiva.

* * *

Zé Alfaiate era trabalhador. E não esperou o sol nascer, nem tomou o ca-fé reforçado que Esmeralda lhe preparara. Tratou logo de cumprir a obrigação que lhe encarregara o Padre Tomás, durante o sermão:
— Crescei e multiplicai-vos!...
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In: O cerco e outros casos. Goiânia: Lider, 1978
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