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Contos-->Esqueci: limões ou uvas? -- 22/02/2004 - 12:54 (Érica) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Dona Cinara tinha 81 anos e fazia questão de morar sozinha. Saíra do casarão herdado do marido e o deixou para a filha, o genro e os seis netos. Foi morar no apartamento que era deles. Fora uma troca de moradias, bem desigual a olhos vistos, mas prática e oportuna: para quê uma senhora sozinha teria de morar numa casa tão grande, onde criara a filha e os três filhos do marido, que casara com ela já viúvo? - A casa estando em seu nome, ela a passou para a filha e ficou com o apartamento pequeno e prático. A solução agradou a todos e aos afilhados também, que se viam desobrigados de cuidar da segunda mãe, já bem sucedidos e com o inventário do pai bem digerido.

Dona Cinara estava perdendo a memória. Alarmada com isto, ela passou a prestar mais atenção ao que fazia. Não queria deixar ninguém perceber a falha, pois seria o começo de uma litania que ela não queria escutar: a senhora precisa de alguém para lhe fazer companhia. Passou a memorizar poesias. E, com isto, ficou um encanto - os netos lhe pediam que declamasse para que seus colegas a ouvissem. Quase a levam a um programa de calouros, menos mal que o programa era apenas para cantores, não para declamadores.

Todos os domingos, ela ia almoçar na casa da filha. Mesmo que a filha e o genro tivessem saído para algum compromisso social ou para uma viagem. Ela ia para lá e almoçava em companhia de algum neto que por lá estivesse, servidos todos por uma empregada. Mas naquele domingo, o genro veio buscá-la no seu carro. Ela se sentou no banco de trás - mania que adquirira desde que o marido assim dispusera. Assim que ela se ajeitou, ele lhe perguntou, sem se virar para trás:

-- Vó, a senhora vai recitar pra nós hoje? Que poesia?

Sentada atrás, ele não pôde ver o rosto dela se contorcendo. Hoje era justamente um dia em que ela tinha acordado e não se lembrava de nada. Mas teve presença bastante para fingir:

-- Claro que vou.

-- E que poesia? -- insistiu ele.

Ela titubeou, mas conseguiu dizer:

-- É segredo.

Ele sorriu, engatou a primeira e logo chegaram.

Sua filha logo reconheceu, pelos olhos da mãe, que ali atrás da testa estava uma sala vazia. O olhar opaco dela lhe dizia isto e muito mais. Havia uma angústia fácil de reconhecer no rosto da mãe, que lutava para que nada transparecesse.
O médico seria possível retardar a perda da memória através de exercícios - daí a idéia de memorizar poemas. Mais ainda, alguma atividade prática, pequenas saídas de compras seria também uma forma de manter a mente ocupada. Terapia ocupacional.

Na esquina se abriu uma quitanda, fazia uma semana. Era na mesma calçada da casa. Era o caso de pedir para a mãe ir até lá e comprar alguma coisa - ela faria o exercício que já não fazia há tempos, conheceria a quitanda e se sentiria útil também. Tudo isto entrou na cabeça da filha, quando lhe disse:

-- Mamãe, o Sérgio quer fazer umas caipirinhas e está faltando limão. Será que a senhora se incomodaria de ir até a vendinha aí do lado e comprar uns seis limões pra gente? - Toma aí o dinheiro.

Ela aceitou a incumbência e nem perguntou sobre a quitanda, pergunta que alguém que tivesse morado ali por tanto tempo, por certo teria feito:
Vendinha? Abriram uma vendinha agora? Assim tão perto, aqui na esquina? Mas Dona Cinara não se lembrava de que ali nunca havia vendinha nem quitanda, que se abrira numa garagem que dava para a calçada.

Pegou o dinheiro que a filha lhe estendeu, colocou-o na sua bolsinha de fecho beijoqueiro (daqueles que estalam quando as duas bordas se encontram), e se pôs a caminho, andando entre a varanda e o portão. Abriu-o, olhou para os lados (que hábito antigo nunca se perde) e se foi em direção à quitanda. A filha a observava da varanda. Como seu campo de visão incluía a quitanda, ela acompanhou a mãe até ela chegar lá e entrar na antiga garagem:

-- Bom dia. O senhor tem limões?

O quitandeiro, um homem quase tão idoso ou mais, do que ela, lhe respondeu:

-- Sou ajudante. Meu filho é que sabe. - E gritou para dentro: Ó filho! Tem limões?

Uma voz jovem respondeu lá de dentro:
-- Não tem não, pai! Chega amanhã.

O homem repete a mensagem. E acrescenta:

-- A gente não tem limão, mas tem uva. Serve?

Dona Cinara não entendeu na hora como se podia dar esta troca. Mas respeitou a figura dominante do quitandeiro, mesmo não sendo ele o dono da vendinha. E respondeu:

-- Pode ser.

Ele então escolheu uns cachos de uvas pretas, enormes, colocou-as, depois de passá-las pela balança, num saquinho de plástico e as deu para a freguesa.

-- Obrigada.
Ela deu as costas e saiu. Esqueceu-se de pagar e ele, esqueceu-se de cobrar.

Voltou para casa carregando dois quilos de uvas. De longe, sua filha viu que alguma coisa não estava certa - ela estava trazendo mais do que limões ou os havia substituído por outra coisa. Claro que era a segunda hipótese a acertada. A amnésia estava se aprofundando.

-- Mãe, por que a senhora trouxe uvas? Eu pedi limões! --- E a filha evitava dizer - a senhora se esqueceu? - Se mostrasse desconfiança, a coisa seria pior. Foi por isto que não a mandou com um bilhetinho na mão. Tinha de mostrar confiança na mãe. Do contrário, o exercício perderia seu valor.

-- É mesmo, filha! O homem se enganou! Deixa eu voltar lá que eu troco. Vai ver ele estava atendendo outra freguesa e me deu isto por engano. Vou lá e volto. É tão pertinho mesmo.

E foi. Já dessa vez a moça não acompanhou a mãe com o olhar, foi dizer ao marido o que tinha acontecido, lá na cozinha.

Dona Cinara, andando em direção à quitanda, de repente, sem que a ciência descubra como isto acontece, recebeu aquele raio de luz mental que ocorre nos esquecidos: lembrou-se de tudo.Que lhe pediram limões, que voltou com uvas, que estava voltando para a quitanda para trocar a mercadoria, e que o filho do quitandeiro tinha dito que não tinham o que ela queria. E que o homem, tão esquecido quanto ela, não lhe tinha cobrado pelas uvas. O dinheiro ainda estava intacto na sua bolsinha beijoqueira. - E aí se decidiu: viu uma mulher esmolando, entre o portão da casa e a calçada da quitanda. Num átimo, estendeu a mão com o saquinho cheio de uvas e deu para a mulher que, atônita com o presente - nem se tinha dado conta do que era - começou a chorar.

-- É pra senhora, fique com tudo.

E voltou para casa.

-- Filha, não tinha limão. Ele me tinha dado as uvas por engano. Olha aqui, ele devolveu o dinheiro. Tá aí na bolsinha.
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