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cronicas-->O Brasil dos Nélsons -- 25/08/2000 - 08:07 (Maurício Cintrão) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O Nélson era torcedor do Santos. Era a década de 60. Como tantos outros milhões de brasileiros, ele era apaixonado pelas brincadeiras de bola de Pelé, Pepe, Coutinho, Edu e Lima, um esquadrão que triturava os adversários, como se brincasse uma pelada no terreno baldio.

Talvez gostasse do Santos, também, porque era pescador por herança familiar. Caiçara da Ilhabela, passou a maior parte da infància e da adolescência no mar, "matando peixe", como ele dizia. Trabalhou durante anos naqueles barcos de motor de popa que, diariamente, ainda hoje, vencem as marolas e as ondas como os barcos dos meus sonhos marinheiros de infància.

Conheci o Nélson em sua fase terrestre. Era caseiro no sítio da família, na Ilha. E sabia da sua paixão pelo time peixeiro, porque ele sempre pedia que a gente levasse para ele revistas com fotos de Pelé. Na verdade, ele falava pouco de futebol.

Homem pacato e trabalhador, Nelson não era muito de conversa. Talvez por isso fosse um caseiro de mão cheia, jardineiro dedicado, plantador de inspiração divina. Era difícil a muda não pegar se plantada pelas mãos dele. No fundo, acho que ele conversava com as plantas.

Na mata, era um mestre. Além de caçador de mira afiada, era mateiro de olho treinado, que achava trilhas na floresta que a gente nunca conseguia ver quando estava com ele. Lia a natureza com a intimidade dos anjos. Convivia com ela com a delicadeza dos sábios.

Pois com todas essas qualidades, um dia, ele quase morreu por uma bobagem. Foi encarregado de dedetizar a casa, que estava infestada de insetos de todas as origens. Não leu a embalagem do produto que alertava em letras garrafais: Produto Tóxico, Não Aspire. Intoxicou-se. Mas era forte feito um boi e logo voltou à ativa.

Nélson não poderia ter lido o alerta do fabricante. Ele era analfabeto.

Toda a vez que me deparo com alguma discussão sobre a importància da educação, lembro disso. O homem que foi meu tradutor para os mistérios da natureza da Ilha, meu mestre sobre o respeito ao meio ambiente, não lia nem escrevia.

Pois a escola, para mim, é a corporação de ofício dos artesãos do futuro, que transforma Nélsons em cidadãos. Escola é o lugar onde os Nélsons dos tantos talentos e capacidades podem ser despertados para o mundo, para gerar saúde, bem-estar, conforto, segurança e, principalmente, paz.

Porque educação é a base para o entendimento. E a escola é um núcleo gerador de educação. Não é o único, não. Pois se assim o fosse, não haveria a sabedoria do Nélson.

Mas a escola é a porta para uma outra dimensão de humanidade. Se conduzida com competência, coragem, amor e dedicação, constrói a maior riqueza que qualquer nação pode aspirar: o compromisso coletivo com a vida.

Confesso que, às vezes, sinto que morro um pouco quando escrevo. Somos poucos, ainda os que lêem e conseguem escrever com fluência. Sinto um certo mal estar por saber juntar letras, construir palavras, períodos e textos em um país onde ainda há milhões de Nélsons com muito mais a contar do que eu.

Mas continuo escrevendo. Porque essa talvez seja a minha contribuição para que, um dia, não haja mais Nélsons sem letras neste País.

PS: Nélson acabou aprendendo a ler através de um desses cursos de alfabetização de adultos. Lembro de quando ele vencia a fronteira das letras ignoradas. Um dia, fez questão de mostrar para nós. Jornal na mão, soletrando com dificuldade, ele leu: "o Santos ganhou do São Paulo". E eu sou são-paulino. Comemoro essa derrota até hoje.

Maurício Cintrão
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