Usina de Letras
Usina de Letras
35 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 


Artigos ( 63136 )
Cartas ( 21349)
Contos (13299)
Cordel (10355)
Crônicas (22578)
Discursos (3248)
Ensaios - (10647)
Erótico (13588)
Frases (51619)
Humor (20167)
Infantil (5584)
Infanto Juvenil (4929)
Letras de Música (5465)
Peça de Teatro (1387)
Poesias (141264)
Redação (3357)
Roteiro de Filme ou Novela (1065)
Teses / Monologos (2442)
Textos Jurídicos (1966)
Textos Religiosos/Sermões (6344)

 

LEGENDAS
( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )
( ! )- Texto com Comentários

 

Nossa Proposta
Nota Legal
Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
cronicas-->Banho de Rua -- 21/08/2000 - 07:35 (Maurício Cintrão) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Há um sujeito que me intriga, quando passo pela Avenida 23 de Maio, ali pertinho da Praça da Bandeira.
É uma questão de horário.
Se vou cedo para o trabalho, não o vejo.
Mas se saio lá pelas oito e pouco da manhã, sempre me deparo com essa figura. Apoiado no meio-fio da avenida, toma banho vestido, usando a água servida que corre pela sarjeta. Deve haver um vazamento qualquer por ali, porque o volume é grande e a água não parece suja.
Na primeira vez que vi a cena, achei curioso. Imaginei que fosse um sem-teto eventual da região, daqueles que migram pela cidade.
Fiquei meio chateado quando percebi a minha indiferença. Mas a gente vê tantas faces da miséria no dia-a-dia de uma cidade como São Paulo que acaba ficando meio insensível. Na verdade, depois que passou, não liguei muito. Esqueci e pronto.
Na segunda vez, só percebi depois que passei. Aí liguei os fatos.
"Poxa, ele não é eventual!".
Mesmo assim, deixei de lado. Uma fechada aqui, um congestionamento ali e o motorista perde a capacidade de refletir sobre o que está em volta. Vira boi motorizado.
Ocorreu que as necessidades de trabalho me obrigassem a chegar mais cedo no escritório. Madruguei por um longo período.
Outro dia, livre das obrigações extraordinárias, voltei ao horário de sempre.
E não é que encontrei mendigo banhista novamente!?
Daí em diante, passei a observar com mais atenção aquele local.
Invariavelmente, entre 8h00 e 8h30 lá está ele, tomando banho no centro da cidade.
É uma cena despudorada de miséria explícita.
Mas acho que não é censurável pelas autoridades ou pelas boas famílias, porque ele continua por lá. Talvez, se tirasse toda a roupa, alguma autoridade incomodada fizesse valer o rigor da lei.
Mas ele não incomoda ninguém, nem atiça a libido invertida de nenhuma vestal urbana. Toma banho vestido. Hábito antigo ou pudor arraigado.
Banha-se, simplesmente. Isso não deve dar cadeia, nem carta para jornal.
Acho que, como eu, outras pessoas devem ficar mais intrigadas do que incomodadas com o banhista da cidade.
Primeiro, pela sua regularidade. Banhos pela manhã. Parece recomendação médica. Depois, pelo cuidado com que aparenta fazer sua higiene pessoal, se é que dá para falar assim.
Depois de muitas passadas pela 23 de Maio, posso dizer com certa segurança que tem até um certo critério no banho.
Quando passo mais próximo das 8h00, por exemplo, ele normalmente está lavando as calças ou os pés.
Mais tarde, está enxaguando a camisa, com o dorso nu.
Depois, limpa a sarjeta com uma vassoura.
Passada por passada, fui assistindo seu ritual como quem assiste trechos de um mesmo filme em dias diferente. Aliás, sou campeão em fazer isso com emissoras de TV a cabo. Não surfo, assisto TV homeopaticamente.
Sei por exemplo, que ele usa uma lata ou uma caneca, alguma coisa que permita despejar a água sobre o corpo, que esfrega com as mãos.
Não importa se está frio ou quente.
Ele se banha do mesmo jeito, no mesmo local, na mesma hora.
Até parece que está em casa.
Quer dizer, ele está em casa.
Naquela casa enorme sem teto, sem taxas, sem vizinhos de cima.
Sói com motoristas e passageiros abelhudos que assistem espantados aos seus banhos matinais.
Hoje passei por lá e vi a cena novamente.
Não consigo fazer comentários politicamente corretos. Apenas admiro-me.
De algum jeito, aquele homem busca viver adequadamente a seu modo, sobrevivendo sabe lá Deus de que forma.
Com certeza, banhado e limpo.
Por fora com a água da sarjeta.
Por dentro com as lágrimas de quem ainda se emociona.

Maurício Cintrão
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui