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cronicas-->Amigo de bronze -- 14/08/2000 - 08:37 (Maurício Cintrão) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Hoje está frio e garoento. Dia bom para dormir. Mas eu tenho vontade de andar lá fora. Não vou porque voltei a ser preguiçoso. O estado da preguiça é natural. Estranho é vencer a preguiça. De qualquer forma, já fui de acordar cedo para caminhar no Ibirapuera, apesar da preguiça e dos amigos, que me chamavam de louco.

Eu gostava de caminhar especialmente nas madrugadas frias. Envergava a velha jaqueta sobre o moletom surrado e saía às escuras. Experimentava um misto de abandono e conquista. Colocava os mini fones do walkman paraguaio nos ouvidos e fazia o ritmo da aventura de acordo com o humor do dia. Corria para aquecer, quando dava vontade. Andava simplesmente andando quando era o caso.

No começo, a gente estranha essas caminhadas. Pensa que vai ter o parque sozinho. Mas não é assim. Há uma enorme legião de caminhantes e corredores no Ibirapuera. Gente de todo o tipo, de todas as idades, das mais variadas orientações sexuais e convicções políticas. Uma verdadeira comunidade de atletas do amanhecer. Na maioria, é gente de classe média, ou um pouco mais do que isso. Tem até gente que nem mora mais ali por perto, mas acostumou e sempre volta. Gente que vai de carro para caminhar.

Foi nessas caminhadas que adquiri um hábito curioso. Saía de casa, na Conselheiro Rodrigues Alves, descia a Dante Pazzanese, passando pelo Detran (via passarela) até o Pavilhão da Bienal. Dali, seguia em direção ao Museu de Aeronáutica, onde há um monumento em homenagem aos pilotos pioneiros da Força Aérea Brasileira.

Passava toda a manhã pelo monumento e me sentia observado por aquele piloto metálico, altivo e distante, montado naquele bloco de pedra. Chegava a sentir uma espécie de estranheza, mas seguia meu caminho. Entre um amanhecer e outro, me peguei pensando em como deveria ser difícil ficar ali, dia e noite, noite e dia, herói e estátua. Fui desenvolvendo uma certa simpatia por aquela personagem.

Talvez por isso, depois de um tempo, passei a cumprimentar o aviador. Era um cumprimento tímido, quase secreto, como se saudasse um amigo invisível. Fomos ficando amigos, tenho certeza. Ele já não me olhava com estranheza e eu não me incomodava em ser observado.

Um dia, um pouco por brincadeira, um pouco por curiosidade, resolvi parar em frente ao amigo-estátua. Era ele e eu, ninguém mais. Meio moleque, resolvi bater continência. E foi isso mesmo que fiz. Tasquei uma continência rápida, feito tapa na testa de "ïh, esqueci!". Ri e fui embora.

No dia seguinte, parei de novo e repeti o cumprimento militar, dessa vez menos sem jeito. E foi assim nos outros dias. Parava, ficava perfilado e batia continência. A brincadeira virou hábito e, pouco a pouco, o costume deu lugar à cerimónia respeitosa. Naqueles momentos frios da manhã, de frente para uma estátua, eu cumprimentava os tantos pilotos que sempre desejei ser e nunca fui.

Por causa dos descaminhos, que desviam as rotas das nossas caminhadas, parei de andar no Ibirapuera. Aliás, parei de andar em geral. Desde então, estive andando mais de avião e de carro do que a pé. Isso não impede que tenha saudades daquele tempo, um pouco culpado, porque fui vencido por minha natureza preguiçosa. Os amigos têm falado que preciso fazer exercícios, porque fumo demais e estou gordo. Hoje, são eles os loucos que acordam cedo para caminhar.

Em meio às divagações do texto, amanhece. E do lado de lá do bairro, longe do frio e do próprio dia, sei que existe um amigo de bronze montado na pedra, olhando o horizonte. Dia desses eu volto. Prometo que volto. Nossa, que preguiça.


Maurício Cintrão

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