Da última vez que engraxei o sapato, alonguei um pouco mais a minha conversa com o engraxate que conheço há muitos anos e que deve ser um avançado sexagenário. Naquela prosa de perguntas e respostas, fui absorvendo algumas considerações que, ao final motivaram assunto para esta crónica. Respondendo a uma pergunta , disse-me que não se casara porque sempre teve uma renda pequena, insuficiente para manter mulher e filhos. Quando jovem foi morar com o avó em S. Paulo, trabalhando no modesto ofício de sapateiro. Depois que se aposentou veio para Campinas, passando a ser engraxate. Morava com os pais, sendo que estes, primeiro a mãe, vieram a falecer na década de 90. Hoje reside com irmãos e sobrinhos.
E falando dos irmãos e sobrinhos, destacou o progresso deles (não guardei os detalhes), mas me concentrei nos dados que me contou sobre um irmão que estudando contabilidade, conseguiu com bastante esforço tornar-se advogado conseguindo um bom cargo em comarca do interior do Estado. Pelo fato de ter trazido uma pasta do irmão para engraxar, tinha dentro dela uma monografia mimeografada, com bela encadernação vermelha, intitulada "O endosso em branco". Passei a folhear o curioso trabalho de cerca de 100 páginas, com excelente bibliografia e ótima nota de aprovação. O título da monografia me fez voltar aos idos de 1958, quando prestando exame oral para o cargo de juiz de direito fui interrogado por ilustre desembargador componente da banca : " o senhor vai me discorrer sobre o endosso em branco". Aí me deu "um branco" e precisei "me virar" todo para responder. Notem, pois, a importància do assunto da monografia , para os profissionais da área do direito.
Mas, o que me impressionou e emocionou foi a longa dedicatória do autor da monografia para o seu irmão, um humilde engraxate. Exaltava as qualidades da pobreza, a nobreza do irmão nos cuidados para com a família da qual sempre participou e zelou. O resto vai por minha conta. Imaginem os caros leitores, a grandeza de alma que deve ter um pessoa para se contentar com o pouco que têm e reconhecer que esse pouco é insuficiente até para constituir uma família ! Talvez, assim pensasse : " se esta pobreza é tão dura de ser suportada - neste mundo tão conturbado pelo consumismo- para que repartir com outros tantas dificuldades e sofrimentos"? Acredito que os pobres a que os Evangelhos sempre se referem, sejam desse tipo. A consideração é oportuna porque grande parte da população mundial é desprovida de fortuna ou bens materiais. Constituem imensas multidões, porém pobres que dignificam a pobreza representam uma quantia bem menor, pois muitos são revoltados com a própria condição, são brutos e perversos e outros insuflados por demagogos e ideólogos da igualdade e fraternidade, não admitem a subserviência económica.
A pobreza aceita sem rancores, vivida com dignidade, sem dúvida, é caminho seguro para se ingressar no Reino dos Céus.
