Autor: Marcel Agarie
Data: 23/09/02
Crónica: "Ofício de nossas próprias mãos"
Eu pensava que elas só existiam na minha casa e que tudo isso era privilégio apenas da família Agarie. Mas não era o que eu imaginava. Estou falando das marcas de dedos que ficam prensados, impressos, estampados nas paredes, provenientes de descuidos das nossas mãos.
Na minha casa elas estão por toda a parte. No teto, na parede, na cozinha, no quarto, na escada, ao lado do interruptor de luz. Também não é para menos, afinal são 3 crianças (incluindo eu) elétricas, que frequentemente sujam as mãos, para logo em seguida - sem querer - coloca-las na parede. Técnicos da perícia teriam dificuldades em encontrar alguma impressão digital suspeita nas paredes de casa e, muito provavelmente acabariam acusando-nos por algum possível delito que viesse acontecer. Meus pais até desistiram de pintar a casa. Sabem que esta solução para tentar eliminar as marcas de dedos são ineficazes, pois basta o pintor terminar o seu serviço que logo aparece um de nós, tratando rapidamente de estrear - sempre sem querer - com nossos dedos, sem nenhum compromisso. As paredes funcionam, praticamente, como uma calçada da fama, ou seria melhor "uma parede de lama"?
Mas as marcas possuem o seu lado positivo e histórico. É legal saber que as marcas dos dedos também trazem boas lembranças. Vejam que legal. Três marcas de dedos lembravam o dia em que meu irmão do meio alcançou pela primeira vez o teto. Ele deu um pulo, esticando-se todo, e tocou levemente com a ponta dos seus 3 dedos (Fura-bolo, Pai de Todos e Sr.Vizinho), deixando uma marca para a história da família. Comemoramos o feito, menos nossos pais, que não sei se ficaram bravos com a marca dos dedos no teto ou se estavam tristes pelo fato do meu irmão não ser mais o "pequeno" da família. O tempo passou e acabei ficando sem saber.
Porém, os dedos não pararam por ai. Até na delegacia encontrei algumas marcas na parede, bem ao lado de uma caixa de energia elétrica. Muito provavelmente, um eletricista descuidado, depois de arrumar algum problema nos fusíveis, resolveu descansar e tomar uma água apoiando - sem querer - uma das mãos na parede. A marca acabou ficando por lá, já que ela não incomoda nem o delegado, nem os bandidos e muitos menos os policiais. Só eu, que não tinha o que fazer na fila de espera para registro do B.O., que acabei reparando neste minúsculo detalhe.
As marcas dos dedos não são privilégios apenas de pobres, policiais, bandidos e delegados. Já as encontrei também em outros lugares, frequentados principalmente pela alta sociedade. O aeroporto de Congonhas, no interior das repartições da Infraero, tinham as suas. Até numa agência de banco, líder do mercado, encontrei marcas de dedos no teto. No teto? Sim, no teto! Elas estavam entre um conjunto de làmpadas e uma propaganda pendurada. Talvez foram parar lá quando algum funcionário descuidado trocou uma làmpada queimada e - sem querer - precisou se apoiar com a mão, para evitar uma queda da escada. Não haveriam pessoas que pudessem deixar aquela marca, da mesma maneira que o meu irmão deixou no teto de casa em sua fase de crescimento. Era um teto alto demais. Porém, não importava a forma que ela brotou, para mim o importante era que estava lá.
Depois de encontra-las em tantos lugares, em padarias, supermercados, casas de amigos e parentes, fiquei convencido que não podemos fugir das marcas dos dedos. Elas estão em todas as partes, e por mais que tentarmos elimina-las, nossas próprias mãos as trarão de volta. As mesmas mãos que pintam hoje, sujarão amanhã. Ofício de nossas próprias mãos.
OBS: Vai me dizer que você não tem a sua "marquinha" em casa?
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