Penso que devo ter feito mal a um Deus qual-quer para merecer uma tarde tão inútil quanto me-lancólica. Mais ainda: solitária. Tentei consolar-me na biblioteca, nos versos de Pessoa ou Borges, procuran-do uma história digna ou algum poema revelador de uma beleza transcendente para ofertá-la. No entanto, que lugar triste a biblioteca!
Ser poeta só deve ser bom do outro lado, onde as imagens que inventamos talvez possam existir re-almente. Talvez lá Borges não tenha sido cego e tam-bém, quem sabe?, tenha encontrado o tigre ideal. Pes-soa, por sua vêz, tenha achado verdadeiramente quem era, e não quem pensava que era. Ou tenha se con-formado de vez de ser vários e não apenas um.
Que fábula contarei a ela, quando o telefone to-car daqui a horas? Que esperança dizer-lhe, se "o sin-gular destino dos poetas me oprime nesta tarde que nem é única, nem só minha?".
Esta tarde contém muitas outras tardes. Tar-des pelas quais passaram os que cantaram anteriores a mim e, paradoxalmente, embora prevenidos, passa-rão os futuros cantores. Tarde que talvez ela mesmo passe algum dia.
A literatura não consola a chegada do crepús-culo, nem a ausência. De repente, tomo conhecimento de que tudo que quis, de que todo sonho que sonhei ou toda felicidade pensada, custou-me muitas tardes como esta, perdida entre as palavras e os sonhos dos que já foram.
Resta-me apenas esperar que ela compreenda, um dia, que nenhuma obra se compara à dor sentida pelo seu artífice ao criá-la. E o mais convincente so-nho é irreal ante a esperança de que esta tarde (ou a consciência de sua inutilidade) passe, trazendo com a noite sua voz de mulher e criança, real, tangível, e embale a esperança verdadeira da vida verdadeira, que viceja bem distante da minha biblioteca e sua (eterna?) melancolia. Passa, tarde! Passa.