Tenho uma relação neurótica com a água. Depois preciso perguntar para a Tina, minha terapeuta, se o termo é esse mesmo. Que é uma relação maluca, não tenha dúvida. Nunca consigo beber um copo de água sem pensar que poderia estar perdido no deserto. Bebo com gosto, com prazer, com aquela fome de filme de náufrago. Náufragos não têm nada a ver com desertos, eu sei. Só que eu não encontro a palavra e fica essa imagem mesmo.
Isso só acontece com água, na hora de beber água (ainda bem que não acontece em piscinas). Água pura, diria minha avó. Ligeiramente clorada, diria eu, mas isso não vem ao caso. A neura não funciona com refrigerantes, sucos ou achocolatados. É loucura específica, bem controlada, quase um hobby.
Minha sede das areias triplica se for água com gelo. É batata! Não sei se é aquele tlim-tlim das pedras no copo ou na xícara, ou se é o choque térmico que provoca isso. Bebo água com gelo em pleno Saara e não se discute. É uma sensação magnífica de prazer. A água começa a descer na temperatura ambiente, vai gelando ao poucos e termina no ponto, na temperatura ideal, quase de fazer doer os dentes. E eu lá, no deserto, o próprio herói de guerra que não desiste nunca, um piloto esquecido entre dunas, um explorador que pode morrer mas não larga seu caderninho de anotações por nada.
Para evitar equívocos nas visitas à s casas de amigos, é bom lembrar que eu não gosto de água gelada, gosto de água com gelo. Nada de água daquelas garrafas que ficam gelando entre doces e salgados de dias. Bluargh! A água fica com gosto de geladeira. Você já notou isso? Como os leitores andam muito exigentes, gostaria de destacar que nunca lambi geladeira. Mas há um gostinho estranho que só se apresenta em água guardada em geladeira. Fui bem compreendido agora?
Então, para desfazer os riscos de mal entendidos, gosto de água do filtro com pedras de gelo. E lá em casa nem tem mais filtro. Nos últimos tempos, a água da rua vinha cheirado estranho. O cheiro virava gosto no filtro. Daí, nós adotamos aquele sistema de comprar garrafões de 20 litros. A única dificuldade é substituir os garrafões, cujo peso considerável quase tira a sede até de maluco desértico. Mas vale a pena o esforço, porque na hora de beber, eu volto à minha seca neurose.
Digo de peito aberto: posso ser maluco, mas não há nada que substitua a deliciosa sensação de beber água com pedras de gelo estando no meio do deserto. Melhor que isso só quando sonho que estou voando. Bom, mas isso fica para outra sessão de terapia.