Os jogos eletrónicos ainda não eram tão diversificados e populares como hoje. Mesmo assim, quando perguntei se já haviam brincado com video game aos craques do Estrelinha, o melhor dente-de-leite da favela de Paraisópolis, dois ou três levantaram as mãos. Um deles tinha um aparelho em casa, de segunda mão. Os outros eram seus melhores amigos. Vendo que eu conversava admirado com eles, o artilheiro e capitão do time interrompeu o diálogo irritado: "Otari!!! Isso é coisa de otário!".
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As meninas que perambulavam na feira insistiram tanto que acabaram indo almoçar em casa, em um sábado. Uma delas ficou encantada com o carpete. De impulso, deitou no chão da sala e passou a rolar para lá e para cá, enquanto dizia, quase aos gemidos: "que fofinho, parece cobertor!".
Naquele almoço, experimentamos muitas surpresas. Uma das meninas não conseguiu controlar o espanto:"os pratos são todos iguais!". Nunca havia visto mesa posta. Foi ela quem contou que o motorista de uma perua sempre perseguia suas amigas na rua. Uma vez, foi atrás dela. "Mas eu corro, tio, eu corro!". E a sua família, não faz nada? "Contei e a mãe bateu em mim, dizendo que era culpa minha!".
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No Mutirão da Cachoeirinha, eu gostava do Getúlio, um menininho franzino, mas de olhos espertos e muito carinhoso. Chegou o Natal e o pessoal que construía as casas me convidou para ser o Papai Noel da festa. Não gostei da idéia e argumentei meio de qualquer jeito: "as crianças vão logo perceber que sou eu". O Gê chegou bem perto de mim e disse. "Vem de Papai Noel, tio, vem. Eu acredito!".
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Jamil era filho da Dita, a caseira do sítio da Ilha. Marcado pelo destino, era deficiente mental, sofrendo com as sequelas de uma meningite. Andava com dificuldade e balbuciava as palavras em um idioma difícil de traduzir. Fazia-se entender pelos gestos. Ficava sentado na calçada, vendo o movimento da rua. Os meninos das imediações, malvados como são as crianças de vez em quando, passavam por ele zombando e, quando já estavam a certa distància, gritavam: "Jamil bobão! Jamil bobão!". Ele nunca os alcançava.
Um dia, uma senhora enraivecida foi tomar satisfações com a Dita. "Seu filho machucou meu menino!". Dita chamou Misael. Não era ele. Chamou Arinaldo. Também não era ele. Foi quando se descobriu que o bom e manso Jamil tinha pontaria certeira. Sem poder correr atrás dos desafetos, acertou uma pedrada na testa do filho da reclamante. Nunca mais chamaram Jamil de bobão, nem de longe.