Como o emprego na borracharia, que os amigos ajeitaram ao Pery Kitto, não foi interessante o suficiente para mantê-lo assíduo, induzindo-o a trocá-lo por horas mais agradáveis, em companhia dos colegas, no boteco da esquina, alguém sugeriu que ele poderia trabalhar como auxiliar de sapateiro.
Ora, Kitto não teria que fazer muito esforço mental para saber como eram feitas algumas palmilhas. Desnecessária muita pesquisa. Era só olhar como laborava o titular da sapataria, para então fazer do mesmo jeito.
Quando contaram ao Kitto que desejavam vê-lo lidando na sapataria Melo Dias, ele recordou-se que comprara um sapato novo, mas logo em seguida aparecera com o couro cortado à canivete, na altura do calcanhar direito.
O bandido que praticou o dano, fizera-o de tal forma que parecesse um rasgo, por fragilidade do material.
Mas Pery Kitto que gostava muito daquela sua camiseta azul, sem mangas, considerou, depois de algumas talagadas da corta-bainha, que não tinha mesmo vocação para trabalhar em borracharia ou sapataria. Se pudesse, Pery permaneceria o dia todo contando causos com a voz mansa, pacifica e moderada.
Ah, mas quem é que gostaria de prestar algum serviço útil em benefício de alguém? Kitto só pensava em desancar os outros, de forma que parecesse muito importante e temido, para aquele bando de crianças que o rodeava.
Sozinho no boteco à quela hora do dia, enquanto o barman lavava as mãos no banheiro, ali no rádio Kitto ouviu a notícia:
- "O governo federal acaba de aprovar um pacote de quatro bilhões de reais para auxílio à s financiadoras de veículos, que estão hoje à míngua. O governo de Brasília já havia feito o mesmo, quando há algum tempo, recebeu do congresso nacional o aval para ajudar os banqueiros empobrecidos. Nesses casos é o dinheiro oriundo dos impostos pagos pelos cidadãos, que é doado aos empresários malsucedidos. Alguns especialistas garantem que os cálculos equivocados causam aberrações tais como as que possibilitam o início da construção de uma casa, que não se consegue terminar nunca".
De repente adentrando no boteco, Luisa Fernanda, que trazia no colo a Magna, a cachorra Poodle, disse depois de pedir o seu maço de cigarros usual:
- Só um milhão de reais pode salvar minha vida.
E depois, para o espanto dos dois homens que a olhavam atentos, Luisa arrematou, já com o maço de Mil nas mãos:
- Me segura que vou ter um troço.
Não foi preciso chamar ambulància ou resgate. Lépida e desenvolta, saiu demonstrando que a ameaça de mal súbito que tivera, não passara de mais um engodo seu. Aliás, daqueles que sempre estiveram presentes, durante toda aquela sua vida inútil de carimbadora burocrática.