A mágica da informática faz Billie Holiday cantar só para mim. Quer dizer, canta para mim e para quem está em volta, mas as crianças não estão muito interessadas em ouvir música, até porque fazem tanto barulho que sequer conseguem se ouvir.
A noite promete ser fria, chuvosa e convidativa. O cenário é perfeito para escrever sem parar. Mas os compromissos não permitem que eu fique por aqui muito tempo. Aproveito enquanto dá e, na urgência, vou escrevendo.
As crianças brigam por causa de algum brinquedo, a mãe bronqueia e o barulho vai ficando distante, porque embarco no texto. Vira um rom-rom remoto que me remete aos tempos da Rua Jaguaribe, Ã s margens do Minhocão, quando eu acordava pela manhã achando que estava em Santos. O barulho dos carros sugeria, ao longe, o mar arrebentando na praia.
Isso é coisa de paulistano goiaba. Confundir tráfego com arrebentação do mar é demais! Mas eu sempre fui meio desligado (e goiaba) e acabo confundindo as coisas. Às vezes, confundo endereços, em outras, confundo nomes e pessoas, quase sempre confundo sentimentos. Mas esse é um jeito de continuar vivo, apesar de confuso.
Meu filho João Paulo me redime, porque é muito parecido comigo.
Quando está entretido com alguma coisa, ele sai de sintonia. A gente chama, mas ele não ouve. Diz que, nessas horas, as pessoas passam a falar outro idioma. Eu também faço isso, mas à s antigas. Com gente barulhando em volta, codifico os barulhos. Alguns eu simplesmente anulo. Vozes, eu abafo. João Paulo liga a tecla SAP. É fantástico!
Nos tempos em que morava na Jaguaribe, eu ainda não tinha essa capacidade de desligar tão desenvolvida. E sequer existia a tecla SAP. Talvez por isso interpretasse o vai e volta de carros no elevado como o reflexo do perturbador movimento das marés. Quem sabe quisesse, de fato, acordar à beira-mar ou, mais profundo ainda, afogar todos o motoristas juntos.
Hoje, em frente ao computador, viajo aos sons de Billie Holyday sem nunca ter morado na praia ou assassinado motoristas em série. Se os barulhos mais próximos incomodam, busco desligar. Se continuarem incomodando, faço como no Mágico de Oz. Prendo os sons em uma garrafa.
Daí escrevo e misturo carros com ondas, cantoras com praias e idéias confusas com textos mais ou menos coerentes.