Outro dia, um amigo, passeando com seu bravo companheiro, seu melhor amigo, deparou-se em plena cidade - Lago Sul em Brasília - com um inusitado plantel de galinhas de angola. Não declino o nome do cão para preservar a identidade do amigo, de modo que aqui será chamado simplesmente Veludo.
A primeira pergunta que lhe veio à mente foi qual seria o coletivo de galinha de angola. Tamanha dúvida só era menor que o espanto em descobrir que há galinhas de angola em seu bairro, e mais, que há galinhas de angola brancas. É, uma delas não tinha aquele aspecto carijó de paletó de lã. Era alva como um poodle. Sem saber o coletivo, não podia dirigir-se a elas como um grupo e teve que observar cada uma individualmente. Morto de vergonha, nem em particular conseguiu falar. Se alguém duvidava da utilidade de dicionários de bolso, que fique a lição.
Ao contrário dos meus ilustrados leitores, meu amigo só em casa foi saber que as galinhas de angola não têm um coletivo próprio, específico. Como as demais galinhas, agrupam-se em galinhadas ou galinhames. Mais uma lição, confie em você, no seu primeiro impulso. Mas se o coletivo é assim comum, já o som que emitem é muito particular. Enquanto estas galinhas comuns cacarejam, as galinhas de angola, como todos sabem, fraquejam.
Voltando ao encontro de meu amigo e Veludo com a galinhada, elas estavam ali, ciscando como convém à s galinhas de qualquer estirpe. Veludo, fiel ao dono, mas também à sua origem ancestral pela cernelha eriçada logo demonstrou sua intenção. Tudo indicava que não era exatamente diplomática.
Se de um lado meu amigo estava muito tranquilo observando a inesperada galinhada, por outro, Veludo, a despeito da boa índole não conseguia conter seu instinto. Nem mesmo quando foi lembrado que come ração de boa qualidade e que não fica bem ele sujar os dentes com penas, ainda que nobres.
Uma agonia para o amigo e outra para Veludo, embora por motivos diferentes. Estabeleceu-se ali a velha luta da razão contra o instinto a que todos nós nos submetemos todos os dias. Dura luta, sobretudo nestes dias de propaganda política. Mas bem, felizmente a guia que meu amigo usava era forte o suficiente para conter o instinto perverso de Veludo, evitando assim um angolicídio, com o perdão pelo neologismo de ocasião.
Passado o episódio e considerando a descrição de meu amigo, penso que talvez não. Talvez o estrago não chegasse a tanto, há que dar um crédito ao Veludo e considerar a hipótese de que ele poderia se conter, não por da disciplina, mas por amor aos semelhantes, bichos como nós todos, criaturas de Deus.
O desenlace bem poderia ser o de uma galinhada correndo espantada para o meio da rua, o trànsito perturbado com freadas súbitas, meu amigo gritando todos os comandos que aprendeu na escola e o cão latindo e pulando, eufórico. Os passantes entre assustados e medrosos sem nada fazer, apenas apreciando tudo por mais de um longo, muito longo, minuto de desespero e descontrole geral até que, num passe de mágica, todos observaram o cão olhando enternecido para a galinha de angola menorzinha, mais frágil. Todos pararam, incluindo o vento e o trànsito por segundos para ver o que Veludo faria. E fez.
Deu uma vigorosa lambida na pobre galinha que, embora aliviada, fez uma cara de nojo que merecia uma dentada.
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