Passagem pela Terrinha
(junho de 2006)
Lindas cidades: todas velhas e repletas de pedras . Cada qual com seu peculiar encanto.
Pedras que encontradas pelo caminho somaram-se, sobrepuseram-se, transformaram-se em fortalezas, castelos... e serviram de teto e proteção por anos e anos sem fim.
As pedras reluziam à luz do sol e, aquecidas, contavam cada qual uma história enterrada.
As primaveras e floreiras repletas coloriam todos os sobrados e ruas, extravasando felicidade pela proximidade da entrada real da Primavera.
O céu, abafado pelo calor escaldante (meio fora de hora) deixava-se abater pela noite tão-somente à s 22:00 horas quando entrava o fado, senhoril da noite.
Enquanto isso: todas as cidades que conheci, em maior ou menor escala borbulhavam com a mistura de povos e línguas nas ruas estreitas, espremidas dentre os velhos casarões e praças, tendo como pano de fundo um som anónimo a dedilhar qualquer instrumento musical.
Em Lisboa, no Chiado pude observar de perto Fernando Pessoa sentado à frente do bar "A Brasileira", enquanto uma turista aloucada começava a limpar os poros de sua silhueta esculpida em bronze após ter depositado sobre seu colo um bebê de borracha. Vez ou outra, soprava-lhe segredos junto aos seus ouvidos.
Confesso que fiquei curiosa, principalmente quando percebi o constrangimento do poeta.
Nada a deteve, inclusive a limpeza das suas calças que fez com que um grupo de turistas alemãs gargalhassem ( pena, mas meus olhos não puderam alcançar este precioso detalhe).
Após o término da faxina ela retira o bebê do colo de Fernando Pessoa e coloca-o sobre suas próprias costas. Ajeita com cuidado seu chapéu vermelho (por sinal, gracioso) e desce a ladeira falando ao vento ou ao filhote de borracha, palavras que não consegui decifrar.
Lembrei-me de uma citação de Frederico Barbosa sobre o poeta: "nada em sua vida é surpreendente -- nada, exceto seus poemas." "Homem de vida pública modesta, Fernando Pessoa dedicou-se a inventar. Através da poesia, criou outras vidas, despertando, assim, o interesse por sua própria vida tão pacata. Tornou-se, portanto, o enigma em pessoa."
"Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,
Quanto mais personalidades eu tiver,
Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,
Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,
Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,
Estiver, sentir, viver, for,
Mais possuirei a existência total do universo,
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora."
(Álvaro de Campos, o heterónimo mais atribulado de Fernando Pessoa)
Ora pois, qual dentre os quatro heterónimos: Alberto Caeiro (" É talvez o último dia...") , Álvaro de Campos ("O que há em mim, é sobretudo cansaço" ), Fernando Pessoa ("Quando estou só reconheço") , Ricardo Reis ("Para ser grande sê inteiro" ) contaria a história da turista de chapéu vermelho?
Qual deles?
Pequenos detalhes que enriqueceram passagens e imagens já registradas no coração. Imagens talhadas pela natureza, pelo tempo ou pela mão do homem...
Heleida, junho de 2006 |