A goteira cadenciada marca o compasso da chuva. Os pneus dos carros parecem fritar no asfalto. E o silêncio da noite empresta grandiosidade a essa sinfonia de sons molhados.
Imagino como seria se pudesse alinhar os batimentos cardíacos à marcha persistente do aguaceiro. Não conseguiria, é claro, mas me divirto com a idéia. Porque não há coisa mais romàntica do que amar ao som da chuva. Logo, ter o coração em sintonia com o pinga-pinga talvez me fizesse melhor amante. Não sei...
Chover amando ao ritmo da chuva e percorrer o corpo da amada como a água que penetra em todos os cantos é um sonho antigo. Tudo bem, você vai dizer que meu sonho é meio invasivo. Eu concordo, mas sou homem e não chuva. Penetro, não invado, apesar de ter líquido em boa parte do corpo. Se chovesse, no entanto, acho que seria mais eficiente. Pelo menos, penetraria molhado.
Enquanto escrevo, percebo o vizinho do prédio da frente olhando da área de serviço de seu apartamento. Deve achar que sou meio exótico. Não há cortinas na janela que dá para onde estou escrevendo, na copa. Do àngulo em que o observador me vê não enxerga o monitor, só seu brilho. O que será que ele pensa?
É homem como eu e deve estar sujeito aos mesmos romantismos que a chuva provoca em mim. Será que ele também sonha neste momento que escorre? Como será que bate seu coração? De repente, lá dentro, em seu apartamento, talvez haja um micro ligado e um texto em andamento. Alguma coisa como "a chuva está caindo, o carros passam molhados pela rua e estou sozinho quando poderia estar em par, amando".
Ah, que bobagem! Nem todos os admiradores da chuva escrevem. Nem todas as chuvas sugerem textos. Nem todas as pessoas gostam de chuvas, ou de textos. Vai ver, meu vizinho apenas olha para mim com desprezo.
- Coitado!, pode estar pensando. Tive um delicioso momento de amor e ele está lá, feito bobo, brincando com o micro quando poderia estar fazendo coisa melhor.
Os carros fritam, a noite é fria e, enquanto me perdia em devaneios, o vizinho recolheu-se a seu canto. Ficamos apenas eu, o micro, a chuva e o coração, esse músculo errante. Não sei se estou cismado, mas agora ele parece balançar seu tum-tum-tum como se fosse a goteira caindo do telhado.