Por vezes, escrever é um perigo. Lembra-se de histórias escondidas, subverte-se fatos, narra-se só o que interessa. Aquela madrugada enfadonha pode virar motivo de poesia, pelo simples prazer de subverter os sentidos.
"O licor das horas embriagava a noite enquanto milhares de insetos e animais noturnos surgiram na mente, matraqueando toda a sorte de sons e pios", quando os únicos pios são das minhocas na cabeça, porque as contas precisam ser pagas e minhocas não piam.
Escrever por vontade ou obrigação, com o objetivo de falar à s pessoas, é uma mistura de devaneio e estelionato. É um cheque sem fundo que não tem valor preenchido. Supõe-se o preço que será pago para a leitura daquele embusteiro. Eventualmente, o xarope milagroso de letras e frases não cura mas encanta e o leitor aceita as regras por educação ou completa falta do que fazer.
"Era mato novamente, era gosto de maresia das noites frescas da Ilha. No céu imaginário surgia o Cruzeiro do Sul, referência inequívoca da estrela escolhida".
Sempre lembro da Ilha dos meus tempos de menino, quando a pretensão era ser escritor, compositor e poeta, só. Pretensioso, escolhi, certa vez, uma estrela como minha. Estava determinado e o Universo que se contentasse com isso.
"A escolha fora feita há muito anos, em noites e noites de observação, quando a adolescência instrumenta os sentidos para o encontro do impossível. Traçando uma linha desde o ponto luminoso mais à direita do Cruzeiro até a cabeça da constelação, era só seguir a reta e encontrar a escolhida".
A estrela de fato existe e foi alvo de toda a sorte de declarações enquanto ainda havia fantasias. Depois - passadas as ilusões de encontrar a fada encantada - só restaram imprecações diversas, declaradas com dor de abandono ou com a falta de alguém, mesmo que para ser abandonado depois.
"Seu nome ignorava, apesar de ter procurado as declinações precisas em livros de astronomia. Era a `velha amiga´, a conselheira das noites solitárias do menino desejoso de um amor. Ah, que saudades do tempo em que o grande desafio era sobreviver a mais uma prova de matemática!", pensou.
Sou muito grosseiro para escrever contos, o que me deixa terrivelmente abatido, porque a esperança é conseguir escrever o que quer que seja. Cartas comerciais, textos publicitários, leads jornalísticos, notas de falecimento. Quem escreve e encontra um ou dois incautos leitores interessados, acha que tudo pode ou que pode quase tudo (evidente que quesitos complexos como a Sena sozinho, ou um naufrágio com direito a ilha deserta e Sharon Stone estão fora de questão... por enquanto).
Do conto que um dia vai sair sempre sobram frases esparsas, idéias mal alinhavadas que representam promessa e um gosto de cabo de guarda-chuva, feito ressaca sem ter bebido. Coisa de bêbado intelectual que pensa ter bebido, elabora ter bebido, disserta sobre a bebida, mas é abstêmio.
Invejo quem consegue descrever paisagens com a agilidade da bailarina que dá ponta-pés no ar e todo mundo acha bonito. Nessas situações, me sinto como aquela hipopótama de Fantasia, meio bicho, meio botijão vestido, dançando aos trambolhões, com sapatilhas de astronauta.
Por isso escrever é um perigo.
Especialmente se você não tem lá uma grande auto-estima.
Pode ser como mandar um beijo para sua imagem no espelho e ela fazer careta.