A palavra é capaz de transforma sonho em realidade, ilusões, fantasias, e ficção em verdade concreta. Se penetramos no fantástico mundo da imaginação, torna-se possível sondar o insondável. Tudo depende da tinta com que se pinta a aquarela da vida... Pinte, pois, sua aquarela com as cores guardadas na imaginação, como se a vida fosse uma ficção que se escreve em livros.
— Em tua imaginação, podes antecipar a festa de debutantes, casar, ter filhos, netos e chegar a uma velhice ditosa. Depois, podes voltar a ser menina outra vez. Brincar na praça Afonso Pena, passear na Quinta da Boa Vista, enfim, viajar nos anéis da memória, rever toda história, mas não podes alterá-la em nada: há um anjo guardando a árvore da vida. Teu passado não podes mudar, mas podes reescrever os próximos capítulos de tua história.
Fechou o arquivo de suas lembranças para uma interrogação: Como o tempo voa!... Se o pai fosse vivo estaria com cem anos. E ‘vô’ Generoso, centro e trinta e seis. Generoso não conheceu telefone sem fio, celular, máquinas que gravam imagem e voz. Mas, o povo daquele tempo também conheceu a tecnologia, guardadas as proporções de espaço, tempo e cultura. Sim, conviveu com inventos rudimentares e com a tecnologia, até então considerada sofisticada. Para eles, no entanto, conversar com os mortos era apenas expectativa e falácia dos espíritas, rejeitada pela religião católica
— Rava! Não se pode evocar os mortos. Exclua esta parte do livro, é polêmico demais!
—Que pensa a respeito disso o Padre Davi, agora que está do outro lado da vida?
— Claro! A Igreja sabe que o rei Saul evocou o espírito de Samuel, e isso não agradou a Deus. Há muitos espíritos vagando pelos ares! um deles pode vir transvestido de lobo em pele de cordeiro, e enganar a muitos, fazendo-se passar por aquele que foi evocado.
Ravenala nunca intentou contato com os mortos usando o psicoteledecodificador. Ela desejava muito falar com o ex-professor, porém, o contato entre vivos e mortos só é possível se houver aquiescência de ambas as partes e o padre Davi jamais daria a mão à palmatória. Jamais concordaria que isso fosse possível, já no 2057.
— Esqueceste de anunciar o principal.
—O quê?
— Mesmo que as partes estejam acordes em se comunicarem, é preciso que haja permissão de Deus.
— Não é necessário dizer isso... Nada acontece sem a permissão de Deus.
A aproximação de uma gaivota interrompeu o discurso sobre o contato com os mortos.
— Veja Ravinha, uma linda gaivota pousou no capelo do navio!
— Nunca tinha visto uma gaivota tão bonita. Ela tem o dorso azul claro, muito claro. E o peitoral branco.
— Parece vestida com as vestes da Virgem Maria.
— Foi essa a imagem que me veio: o azul do céu. E o branco da paz.
— Azul da cor do mar. E tu me dizes que aqui não é o céu?
— São os mimos de Deus. A vida contemplativa nos oferece momentos de céu aqui mesmo na terra.
— Sim, criamos nosso mundo com aquilo que se move dentro de nós mesmos. Céu ou inferno, cada um constrói o mundo em que vive.
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Adalberto Lima, trecho de Estrela que o vento soprou.
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