LUIS FELIPE SALOMÃO é presidente da Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro.
O Globo On Line, terça-feira, 31 de dezembro de 2002
A ciência pode apenas determinar o que é, não o que deve ser. Albert Einstein
A globalização econômica vem colocando o mercado como instância máxima de regulação social. O fenômeno, denominado “novo capitalismo”, desconhece fronteiras jurídicas entre as nações e permite o trânsito de capitais sem qualquer controle governamental. A transnacionalização dos mercados, no dizer do professor José Eduardo Faria, coloca o Judiciário em uma encruzilhada, um poder em busca de uma identidade funcional.
Vale aqui uma rápida menção a uma fábula indiana, cujo texto circulou pela internet, de sorte a ilustrar o que se pretende desenvolver. Uma expedição de caça rumou para a África e anunciava a descoberta de uma fórmula mágica para o sucesso da empreitada: um flautista que, ao som do instrumento, fazia parar as feras e permitia a caçada fácil. No início, a inovação se mostrou um sucesso. Inúmeras feras foram abatidas com grande facilidade, o que fez os caçadores relaxarem nas tarefas de defesa. Certo dia, porém, um leão não se intimidou com a flauta e, alterando a lógica da expedição, a caça passou a caçador, abatendo todos os integrantes do grupo. Moral da fábula: prepare-se sempre para enfrentar o leão surdo, preveja o futuro e previna soluções. Sempre se prepare para situações difíceis e inesperadas.
Temos um quadro no Brasil de hoje bastante complexo, a demonstrar que não houve preparo adequado para resolver o dilema em que se encontra o Poder Judiciário. Vivemos uma situação de contrastes: no país de mais de 400 mil advogados, há falta de justiça.; mais de 200 mil médicos, e falta saúde pública.; os 10% mais ricos detêm 60% do PIB e 60 milhões de pobres, ou seja, pouco menos da metade da população brasileira, vivem abaixo da linha de pobreza. São 12 milhões de crianças abandonadas, e o Brasil ocupa os primeiros lugares nos rankings mundiais que medem a desigualdade social no mundo.
No Judiciário, a situação também é delicada. Em nosso país, um juiz julga, em média, quatro mil processos por ano, enquanto na Alemanha a média gira em torno de 600. Ainda na Alemanha, uma causa de US$ 6 mil custa aproximadamente a metade do valor para ser ajuizada.; na Itália, as custas correspondem a 10% do valor da causa, só para movimentar a máquina judiciária. No Brasil, os Juizados Especiais recebem causas cujo valor não ultrapassa a 40 salários-mínimos (cerca de US$ 2.180), sem o pagamento de qualquer taxa ou valor.
No ano de 2001, foram ajuizados cerca de 11 milhões de novas causas em todas as esferas da Justiça, para um total de aproximadamente 8.300 juízes. Cada juiz é responsável, em média, por cerca de 1.300 novos processos por ano, sem contar as audiências realizadas, atendimento às partes e advogados, administração do cartório, entre outras atividades.
Cerca de 30% dos cargos de magistrados estão vagos no Brasil, o que representa uma sobrecarga para os que estão em atividade. Se o parâmetro for outro, ainda assim os números são fortes: há no Brasil um juiz para cada 26 mil habitantes. Na Argentina, um juiz para cada nove mil.; na Alemanha, um juiz para cada 3.400 habitantes.
A partir da Constituição de 1988, o Judiciário ganhou um viés diferente, o “guardião das promessas” do jurista francês Garapon, e pretende caminhar ao encontro dos anseios da população brasileira. Experimentamos uma espécie de busca da identidade funcional do poder, em uma sociedade periférica abalada com a lógica da globalização: lucro excessivo e concentrado, desemprego e recessão.
Nesse permeio, o papel do Judiciário como resolvedor de conflitos sofre uma crise, já que a “lei do mercado” dispensa a burocracia estatal. O papel do Estado-Juiz, nessa lógica econômica, é descartável ou, por outro lado, se existir tem de ser “previsível”.
Não obstante, há alguns exemplos candentes de que a magistratura pretende trilhar o caminho da aproximação com a sociedade, de garantia dos direitos dos excluídos, e as associações de magistrados têm papel importante a ser desempenhado. Refiro-me a programas como o “Cidadania e Justiça também se aprendem na escola”, quando magistrados da Associação dos Magistrados Brasileiros visitam alunos do ensino fundamental e do médio para, distribuindo gibis que ensinam cidadania, comprometerem-se com a educação das futuras gerações.; ao projeto “Conhecendo o Judiciário”, da Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro, que recebe no Fórum, para uma visita guiada, estudantes do ensino fundamental e do médio, assim como estagiários de direito e jornalismo.; ao funcionamento de assessorias de imprensa profissionais nos tribunais e nas associações de magistrados, permitindo uma lubrificação da comunicação com a mídia de massa e traduzindo a linguagem complicada das Cortes.; aos Juizado s Especiais que democratizaram o acesso à Justiça.; e aos juízes em geral, que participam dos grandes debates no Congresso Nacional, oferecendo sugestões para o aperfeiçoamento da legislação.
Pesquisa realizada pelo Iuperj revela que mais da metade dos juízes brasileiros é oriunda das classes média, média baixa e baixa, o que significa que os magistrados são provenientes da população a que servem, e não das elites. Mas há muitas pedras nesse caminho: a reforma do Judiciário quer concentrar as decisões nas cúpulas, verticalizando ainda mais o poder, estabelecendo súmula vinculante e ferindo de morte a independência do juiz. Também não há sinais de avanço na questão da democratização interna do Judiciário, o que seria de rigor para que rumássemos para uma estrutura moderna e respeitada de poder. A maior chaga do Judiciário, a morosidade, pode e deve ser combatida com leis processuais ágeis e eficazes, e com estrutura moderna e adequada para funcionamento do Poder Judiciário.
É preciso um debate sério e urgente em torno do assunto, pois será a sociedade organizada que apontará o caminho a seguir. Temos de ter cuidado e nos preparar para o “leão surdo” e, principalmente, contra a “flauta mágica”. Essa é a verdadeira moral da parábola.