O direito não é algo secundário na vida humana, pois o que em última instância está em jogo aqui é a efetivação da dignidade da pessoa no contexto social específico em que ela está inserida
MANFREDO ARAÚJO DE OLIVERIA é professor da UFC.
Publicado no jornal O POVO, dia 5 de Março de 2006
Em meio a tanta turbulência, há um fato auspicioso em nosso contexto histórico por significar uma conquista importante no percurso em direção a uma sociedade que tenha na justiça social o eixo articulador da construção da vida coletiva.No entanto, este fato foi muito pouco considerado pela opinião pública que agora está quase totalmente mergulhada na questão da corrupção. Trata-se de uma surpresa agradável, inclusive porque não expressamente tratado como meta do governo em seu plano apresentado à sociedade em 2002. A importância do que está em curso consiste no enfrentamento de uma problemática fundamental para que o Brasil se possa consolidar verdadeiramente como um estado democrático de direito: a reforma do judiciário que, afinal depois de mais de uma década de discussão, começou a efetivar-se.Talvez muitos se deram conta de alguma coisa através da questão mais falada nos meios de comunicação que é a do nepotismo hoje rejeitado por nossa sociedade por se ter tomado consciência de que ele é portador de uma desigualdade intrínseca no serviço público. É consenso de que este para poder cumprir sua função tem que ser profissional, impessoal, com ingresso por mérito. No entanto, na realidade, a reforma em curso é muito mais do que isto e é importante que a situemos no contexto mais amplo da rearticulação dos fundamentos éticos das instituições básicas de nossa sociedade.
Que está em jogo? Na realidade se trata da reforma de uma das funções essenciais do Estado, uma instituição de enorme significação na vida de nossas sociedades. O Estado pode ser considerado tanto do ponto de vista empírico a respeito de sua configuração histórica numa determinada sociedade, como do ponto de vista normativo, ou seja, a respeito do papel que deve exercer da construção da vida comum dos seres humanos. Nesta última perspectiva, ele emerge como um centro de ação permanente, diferenciado do ponto de vista institucional e pessoal, cuja tarefa básica é regular e administrar as relações entre os seres humanos que se devem reconhecer efetivamente como seres livres. Sendo assim, sua função essencial é o reconhecimento universal dos seres humanos como sujeitos portadores de direitos. Portanto, é uma instituição que está a serviço da efetivação dos direitos humanos que são aqueles valores indispensáveis para o desenvolvimento do ser humano em suas diferentes dimensões e que lhe competem em virtude de sua dignidade específica. Os direitos humanos constituem o conteúdo daquilo que os juristas denominam direitos fundamentais que constituem as normas básicas do direito positivo enquanto positivação das normas que tornam efetiva a liberdade do ser humano. Por isto, o direito não é algo secundário na vida humana, pois o que em última instância está em jogo aqui é a efetivação da dignidade da pessoa no contexto social específico em que ela está inserida.
A sociedade não pode ficar indiferente ao que está acontecendo, pois está em jogo a reformulação estrutural de uma das funções essenciais do Estado e com isto das chances abertas ou não para avançarmos na direção da construção de uma sociedade verdadeiramente alternativa. Aqui creio, está uma das tarefas básicas dos meios de comunicação, dos movimentos sociais, das escolas etc. no momento presente: descobrir e implementar diferentes estratégias para que nossa população possa tomar conhecimento das mudanças básicas em nosso judiciário agora em discussão e votação no parlamento.