Um magistrado que viola as leis pelas quais tem o dever de zelar tem que ter um tratamento muito mais rigoroso do que um leigo, por ter o conhecimento científico das várias expressões do crime e de suas armadilhas. Não há outra posição a esperar do Judiciário. Sem isso, a Justiça seria um escárnio em nossa terra
[01 Março 01h34min 2005]
O assassinato a sangue frio de um trabalhador por um juiz de Direito, em Sobral, causa comoção em todo o Brasil, com repercussões no Exterior. As cenas captadas pelo circuito de TV já correm o mundo e mostram a frieza e a crueldade do juiz Pedro Percy Barbosa de Araújo ao executar com um tiro na nuca o vigia José Renato Coelho Rodrigues, empregado de um supermercado local, cujo único crime foi comunicar ao magistrado que o estabelecimento já tinha encerrado o expediente e não mais podia atendê-lo.
Os atos que se seguiram foram tão estúpidos e insanos que as pessoas custam a acreditar no que estão vendo. Como alguém pode matar outro ser humano com tanta desfaçatez e desenvoltura, como se tivesse esmagando um inseto? Talvez a comparação seja injusta, pois muitas vezes a pessoa que mata uma barata demonstra maior sentimento, posto que o faz, às vezes, a contragosto, por não ter escapatória. No caso em vista, o dever de ofício do executor era o de praticar e distribuir Justiça, amparar o perseguido, servir de anteparo às insídias dos poderosos contra injustiçados.
Pois, o que se viu foi justamente a contrafação de todos esses parâmetros: a arrogância, a fúria assassina, a embriaguez do poder desbragado. O que leva uma criatura humana a um desvario tão estúpido e cruel?
A pergunta deve calar profundamente em todas as instâncias do Judiciário, certamente tão traumatizadas como o restante da sociedade. E embora se saiba que nenhuma categoria ou segmento social esteja imune a esse tipo de rompante, é fora de dúvida que o Judiciário não pode fugir da responsabilidade que lhe cai nas costas de melhor investigar onde lhe é dado intervir para subtrair ao máximo causas capazes de engendrar fenômenos dessa ordem. Uma das providências que está a seu alcance é a de melhor selecionar os quadros da Justiça. Não é admissível que para função de tanta relevância moral e ética se dê um acento quase absoluto à questão da qualificação técnica. É preciso examinar mais detidamente as condições emocionais e morais dos candidatos. Pessoas despreparadas para o exercício de funções que impliquem em grande concentração de poder não são raras no serviço público. Quanto mais uma função é pouco suscetível do controle público mais fica vulnerável à inflação do ego, ou seja, a embriaguez do poder.
Depois dos integrantes de órgãos públicos que lidam diretamente com a força bruta, por terem o monopólio das armas - militares e policiais - certamente o Judiciário é o poder menos devassável ao olhar do cidadão e, por conta disso, mais sujeito a ter membros mais tentados pela inflação do ego, o que quer dizer mais sujeitos ao extravasamento de prepotência e arrogância.
É claro que um episódio como esse pode acontecer com membros de qualquer categoria profissional, tratando-se, portanto de um caso isolado. No entanto, não há como negar que funções mais suscetíveis de controle democrático contam com mais anticorpos para resistir aos componentes menos nobres da natureza humana, isto é, sua tendência para o uso desbragado do poder.
No caso em vista, o que interessa primeiramente à sociedade é que haja uma postura exemplar do Judiciário para tratar com o máximo rigor o responsável por essa barbárie. É preciso um tratamento pedagógico dessa questão de modo a não deixar dúvida no cidadão de que suas instâncias públicas, de fato funcionam. Um magistrado que viola as leis pelas quais tem o dever de zelar tem que ter um tratamento muito mais rigoroso do que um leigo, por ter o conhecimento científico das várias expressões do crime e de suas armadilhas. Não há outra posição a esperar do Judiciário. Sem isso, a Justiça seria um escárnio em nossa terra.