Roberto Wanderley Nogueira é juiz federal em Recife-PE e doutor em Direito Público (UFPE).
Extraído da Lista de discussão da AMB, em 03 de dezembro de 2004 e publicado no mesmo dia no JORNAL DE BRASÍLIA.
Desde 1982 exerço a Magistratura, sendo que a partir de 1988 como juiz federal. No intermédio, como juiz de Direito pelo Estado de Pernambuco.
Depois de muito refletir sobre os diversos pontos da fatiada reforma do Judiciário, simplesmente não pude divisar de onde os senhores congressistas foram tirar a idéia, espetaculosa e discriminatória, segundo a qual os juízos federais podem dar respostas mais adequadas aos crimes contra os Direitos Humanos.
A justificativa da nova norma constitucional a ser promulgada traduz um desprestígio não para a Justiça dos estados, mas para a Justiça brasileira como um todo, pois só há um único Poder Judiciário no Brasil, conforme só exista uma única soberania do Estado brasileiro. Os congressistas deveriam, outrossim, fazer um esforço concentrado no sentido de aparelhar melhor o Judiciário, equalizando as suas forças, e não simplesmente inaugurando um ciclo de emulações que desserve à causa patriótica neste infelicitado País.
Sequer a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) atendeu satisfatoriamente às expectativas que tínhamos em defesa da instituição a qual pertencemos, bem como da profissão que vergastamos como atores sociais.
A súmula vinculante, por exemplo, desconstrói o papel dos juízes no Brasil. Toda vez que formos chamados a atuar de conformidade com ela, seremos simples cumpridores de ordem, carimbadores de luxo que nem sequer mereceremos os predicados e os vencimentos com que nos remuneram o nosso trabalho judicial.
Quanto ao controle da magistratura, deixou de ser "externo" por um destaque que o incluiu na estrutura do Poder Judiciário e dele retirou o poder de decretar perda do cargo judicial nos casos especificados. Além disso, já se observam movimentos decididos no sentido de se garantir uma ainda maior concentração de poder institucional sob o regime das cúpulas, o epicentro das crises históricas que desenham o perfil do Judiciário brasileiro desde os tempos coloniais. A idéia, aliás, de um agenciamento plenipotenciário e monolítico do controle sobre os exercícios administrativo e disciplinar judiciários, com ou sem a participação de membros externos (juízes leigos), pode refletir a definitiva materialização de um traço de nossa conjuntura política secular e de nossa cultura: de que em vez de República, marchamos para a realização de um Império disfarçado (oligarquia).
Finalmente, há quem reúna coragem para referir que a nova estrutura constitucional prevista para o Poder Judiciário melhora, particularmente, para o Supremo Tribunal Federal em relação ao seu funcionamento. Sem dúvida vai melhorar, mas apenas no sentido prático de que o Supremo vai ser constitucionalmente autorizado, mediante o emprego do novel instituto da "repercussão geral" (que o legitima a descartar causas a seu juízo), a empurrar para "debaixo do tapete" o "lixo" da morosidade histórica do próprio Judiciário nacional. Com efeito, não parece razoável que institutos oriundos de países desenvolvidos (não periféricos) ou de sistemas jurídicos de tradição diversa da nossa própria tradição jurídica (romano-germânica) sejam mecanicamente incorporados ao nosso Ordenamento sem a depuração de suas circunstâncias e de suas conjunturas, sob risco de se transformarem em antinomias.
Dessa forma, as "inovações" acrescidas ao constitucionalismo brasileiro hodierno, a par de não traduzirem transformações essenciais, são até bem repisadas no contexto da cultura jurídica nacional como internacional. Portanto, decepcionam, com razão, a cidadania, muito embora não fosse difícil conceber que não se poderia esperar coisa melhor, a julgar pelo jogo de forças não raro apaixonadas que sobre as mesmas sempre se insinuaram nos diversos cenários de sua gestação decenial.
Ficaram para trás, outrossim, muitas forças ativas, embora não o suficiente para que pudessem influir. É nesse campo em que nos situamos os magistrados brasileiros. Objeto de uma discussão para a qual não fomos convidados, a rigor, nem temos grande prazer em conhecer seus resultados.
Afinal, se reformas de lei e da própria Constituição tivessem o poder de efetivar algo de concreto neste País, estaríamos muito melhor desenvolvidos como nação!