O episódio sinaliza a magistratura deixando-se subjugar pelos que pretendem impor-lhe o vínculo da dominação institucional, o que conduziria o Poder Judiciário à condição de instância desqualificada
Irapuan Diniz de Aguiar, advogado
Publicado no jornal O POVO, dia 02 de outubro de 2004
O julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) da constitucionalidade da cobrança da contribuição previdenciária de aposentados e pensionistas, evidenciou uma nova forma de dizer o Direito no país, onde a lei é interpretada num enfoque em que o fato jurídico se subordina ao fato econômico.
Com isso, ressuscita-se a velha tese de Karl Schidt, segundo a qual as razões de Estado devem se sobrepor às razões jurídicas. E, o que é mais grave, desrespeita-se o direito adquirido, o ato jurídico perfeito, a coisa julgada e outras garantias constitucionais, em nome do propalado desequilíbrio das contas da Previdência. Nunca é demais lembrar que esta tese foi que deu suporte legal ao totalitarismo nazista.
A população brasileira ainda amarga às conseqüências da edição, pelo governo brasileiro, dos famigerados pacotões que antecederam o Plano Real (Cruzado, Bresser, Collor e outros), nos quais assistiu-se a diversas espécies de agressões ao nosso ordenamento jurídico, cujas formulações foram confiadas a tecnocratas que, na sanha de extrair vantagens indevidas ou de recuperar perdas imaginárias do erário, promoveram injustiças de difícil reparação.
A emenda constitucional 41, na verdade, foi elaborada sob tal inspiração, mercê da pressão de autoridades monetárias internacionais e do anunciado déficit da previdência pública. No mesmo sentido enveredou o ministro Cezar Peluso, ao proferir seu decisivo voto, ao considerar a contribuição previdenciária um simples tributo como qualquer outro e, como tal, suscetível de arbitramento, a juízo do governo. Seu voto, assim, demonstrou muito mais uma preocupação com o equilíbrio atuarial e a solidez financeira da Previdência do que com a interpretação de uma questão antecedente, qual seja o exame de situações jurídicas já consolidadas, albergadas pelo manto protetor do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada, cuja preservação, por isso mesmo, se impunha.
É preocupante, pois, que o STF, como guardião de nossa Lei Maior, promova interpretações, no mínimo, temerárias, de seus dispositivos, ocasionando, por conseqüência, a insegurança nas relações entre o Estado e a nação. O episódio sinaliza a magistratura deixando-se subjugar pelos que pretendem impor-lhe o vínculo da dominação institucional, o que conduziria o Poder Judiciário à condição de instância desqualificada, de submissão, reduzida, de maneira inaceitável, em seu indisponível grau de independência e liberdade.