Quanto aos senhores de escravos, tem-se o passado horror da propriedade sobre homens que, condenada a partir do Direito Natural, jamais poderia ensejar direito adquirido
Sílvio Braz é advogado. Foi professor na Universidade Estadual do Ceará (Uece) e na Universidade de Fortaleza (Unifor)
Publicado no jornal O POVO, dia 31 de julho de 2004
Na sessão inicial de julgamento da ação direta de inconstitucionalidade (Adin) acerca da tributação de aposentados e pensionistas, no Supremo Tribunal Federal (STF), chamou a atenção, recebido com simpatia pela imprensa, o voto do ministro Joaquim Barbosa, segundo o qual o alegado direito adquirido a não mais contribuir após a inativação não é um princípio absoluto, pois, se o fosse, os senhores de escravos teriam tido o direito de manter os negros no eito e a abolição não teria ocorrido.
Equívoco parece, no entanto, o argumento, a partir da infelicidade da comparação. De fato, no caso dos aposentados, defronta-se realmente direito adquirido, oriundo de situação jurídica legítima, de não mais contribuírem, vez que jamais positivada, no regime em que se jubilaram, tal exigência. A emenda constitucional (EC-41/03), dispondo em contrário, atropelou os artigos 5º, XXXVI e 60, parágrafo 4º, da Constituição Federal, a impor, ademais, tributo sem causa, o que já teve reprovação do Supremo em caso inverso, de concessão: Incide o legislador comum em desvio ético-jurídico, quando concede a agentes estatais determinada vantagem pecuniária cuja razão de ser se revela absolutamente destituída de causa (Adin nº 1.158, RDA 200/242).
E nada têm a ver os aposentados/pensionados, antes da EC-41/03, com o novo regime de previdência exclusivo dos titulares de cargos efetivos, ainda sequer posto em funcionamento.
Do outro lado, quanto aos senhores de escravos, tem-se o passado horror da propriedade sobre homens que, condenada a partir do Direito Natural, jamais poderia ensejar direito adquirido. Fato não-jurídico, irrupção social marxiana da infra-estrutura produtiva do tempo, tinha a seu desfavor, ao revés, o quadro normativo do Direito Internacional já vigoroso na Europa, como se colhe do Direito Internacional Codificado, de Bluntschli: 1º) Não há propriedade do homem sobre o homem. Todo homem é uma pessoa, isto é, um ente capaz de adquirir e possuir direitos. 2º) O direito internacional não reconhece a nenhum Estado e a nenhum particular o direito de ter escravos.
Mas, não só ante postulados jusnaturalistas era ilegal a escravidão aqui, de fonte única em criminoso tráfico. O que se agravou quando a nossa primeira Constituição, mesmo encharcada no liberalismo, se omitiu ante o fato, sequer a ele aludindo. Então, se não eram os negros cidadãos brasileiros, e se não podia o país dispor para as gentes, não podia ser legalmente instituída aqui a escravidão, sem falar, como Nabuco, no aspecto da moralidade da lei que o fizesse. A mor parte dos escravos entre nós são homens livres criminosamente escravizados , afirmou. E acresce que, ao longo do comércio, vieram os descumprimentos às leis de 1831, que declarara livres os negros que entrem o território ou portos do Brasil vindos de fora e a de 1850, que abolira o tráfico, apesar do que, entre 1831 e 1852, tiveram ingresso no país cerca de um milhão de africanos! Vinda, depois, a Lei do Ventre Livre, pode concluir-se que, na década de 1800, todos os escravos aqui aportados ou nascidos após 1831 eram, de direito, homens livres!
Então, para a abolição focada, nada devia ser indenizado aos senhores de escravos, que não tiveram, no caso, direito relativizado. Pois jamais existiu.
De resto, surde inatual, em tema da filosofia dos valores, falar-se ainda em direito absoluto. Há muito, Norberto Bobbio só admitia absolutos os direitos (negativos) de não ser escravizado e de não ser torturado (arts. 4º e 5º da Declaração Universal dos Direitos do Homem/ONU, 1948), por apanharem todos os homens, em todas as situações, em todos os lugares. Todo direito é hipotecado a muitos deveres: legais, éticos, morais, técnicos, religiosos, corporativos, de costumes, perante o outro, a sociedade, o mundo. E o Estado, beneficiário do dever dos governados de pagar tributos, tem também seus deveres para com o contribuinte, no caso postergados. O STF certamente verá isso, como já começou a ver.