Antonio Pessoa Cardoso
Juiz de Direito do Tribunal de Justiça da Bahia. E-mail: pessoacardoso@uol.com.br
Publicado no jornal Correio Brasiliense dia 11 de agosto de 2003.
Para os gregos, o trabalho era tudo aquilo que fazia suar, tratada a atividade intelectual, a exemplo da poesia, da filosofia, etc., como ações ociosas, desenvolvidas pelos cidadãos de primeira classe. Os tempos passaram e a tecnologia apareceu para delegar a atividade física à máquina e o trabalho ideativo aos homens, eliminando o cansaço e o sofrimento. A nova fase, prevalência do intelecto sobre a força, muda o ambiente do trabalho, quando se deixa os escritórios substituído pelos próprios lares, onde se serve do telefone, do fax, da Internet, do computador.
No âmbito do Poder Judiciário outro é o panorama, pois não se tem a máquina para aliviar e abreviar o trabalho do magistrado, forçado a acumular a ação ideativa, consubstanciada na produção dos despachos e sentenças, juntamente com a atividade física, manifestada no manuscrito, na movimentação dos pesados volumes que formam os autos do processo e no uso da arcaica máquina de escrever.
O magistrado é atormentado física e mentalmente com o fardo que recebe, consistente na obrigação de resolver todos os problemas de uma população aproximada de vinte e cinco mil pessoas, quando em outros países, mais desenvolvidos e com técnicas apuradas, como a Alemanha, a tarefa não passa de um juiz para cuidar do conflito de três mil cidadãos. O excessivo volume de serviço que lhe é jogado provoca aborrecimentos no destinatário da obra, porque espera e não obtém resultado, apesar de todos saberem da nenhuma condição no cumprimento da empreitada, no prazo conferido pela lei, porque missão absolutamente incompatível com a força humana de trabalho. Isso provoca a ansiedade e a agonia do magistrado que termina por dedicar ao trabalho a média diária de doze horas, descumprindo a lei da carga horária, viola o direito do descanso noturno, aos sábados e domingos, desrespeita orientação médica de repouso, sacrifica férias, licença-prêmio, prejudicando a saúde e o lazer de toda a família, nada recebendo em compensação, quando poderia limitar o trabalho ao tempo legal exigido pelas mesmas leis.
E o cidadão desavisado das dificuldades do homem-juiz culpa-o pela demora na prestação jurisdicional, sem avaliar essa desumana carga despejada em seus ombros, seguida da falta de meios razoáveis para a eficiência dos serviços, tal como o médico que recebesse sozinho no hospital a incumbência de prestar socorro a cinqüenta/cem pacientes, sem dispor dos instrumentos indispensáveis.
A agulha e o cordão continuam servindo para juntar um processo ao outro, a burocracia dificulta seu andamento e faz vigorar regras nascidas com as Ordenações do Reino, a exemplo dos editais, das precatórias e das rogatórias, que possuem a linguagem de D. João VI, além da manutenção de muitos outros procedimentos rudimentares, instituídos por leis feitas pelo legislador às quais o magistrado presta obediência. Quando, entretanto, busca interpretações ou alternativas para minorar a dureza e a injustiça da norma é tachado de prepotente e descumpridor das obrigações assumidas. O mau funcionamento da Justiça é sempre atribuído ao juiz, sem se perceber que a lei, ‘‘fabricada’’ por outro poder, o Legislativo, sofre a influência deletéria dos poderosos, e viola os interesses dos mais fracos.
Acusam-no de ser marajá, porque farto o salário que recebe, quando, na realidade, se constata a desistência ao cargo de muitos candidatos aprovados em concurso público, exatamente pela parca remuneração.; injusto, porque tomou do pobre e deu ao rico.; preguiçoso, porque não concluiu este ou aquele julgamento, mas não calculam as dificuldades que enfrenta para barrar a violência dos marginais, a ganância dos poderosos, a revolta dos fracos e a fúria dos ricos. Não pode exercer outra atividade e é obrigado a se reciclar na sua arte com seus próprios recursos.
A comunidade, sem conhecer os meandros do sistema, é influenciada pelos poderosos, induzida a acreditar na debilidade, na cumplicidade, na indiferença ou na parcialidade do juiz que mandou destruir uma casa, edificada por uma mulher pobre e desamparada.; que destituiu da função pública um funcionário corrupto ou que determinou a prisão do empregado, responsável pelo desvio de dinheiro. A decisão, entretanto, é fundamentada no direito de propriedade que obriga o juiz a proteger o patrimônio em prejuízo da família sem teto.; na lei que lhe faz privar do emprego o funcionário que não zela o bem público, ou a custodiar o autor de atos desonestos.
Há revolta com os julgamentos e o julgador sofre no recôndito de seu gabinete, de sua casa, onde perde sono, queima neurônios, mas não encontra opção, porque seu ministério impõe-lhe aplicar a lei. Dói-lhe a situação criada, principalmente quando se recorda de tantos poderosos que roubam e continuam roubando sem freio algum, e torna-se antipático, porque não está ao seu alcance a solução de agrado popular e ‘‘heróica’’ do tratorista, que se recusou em demolir o imóvel a mando do juiz, ou a posição benévola e agradável do chefe do Executivo, que desapropriou a área para alegria da mulher pobre com a garantia da integridade de sua casa, e deleite do proprietário, com o crescimento do volume do dinheiro no bolso.
O juiz que sempre mandou e foi obedecido, com a aposentadoria passa a conviver com uma nova realidade para a qual não se preparou.; na condição de cidadão comum e, sem poder, tendo de enfrentar a incompreensão dos vencidos, que não perdoa a retidão do julgamento desfavorável, o inconformismo do derrotado, que não absorve o prejuízo financeiro, a reação violenta do marginal, que lhe tira o bem maior, a vida, e a fúria dos poderosos que não se contentam com a decisão impeditiva do abuso do poder econômico.
Até o dia em que despacha, o juiz é paparicado, é bajulado e merece toda espécie de consideração, mas no dia seguinte ao abandono compulsório do trabalho o homem é esquecido, desprezado por aqueles mesmos que lhe convidavam para um passeio, para um bate-papo. É jogado na lata do lixo das amizades guiadas pelos interesses capitalistas do ter em detrimento do ser. A mudança que não pode ser alterada, porque vício da sociedade capitalista, desmantela a estrutura emocional do magistrado. A lucidez mental e a força física ficam para um tempo que já se foi, porque o marco final do poder é fixado pela compulsória.
E o pior é que não há convivência, confraternização, solidariedade no seio da família forense, porque gente pobre em termos de congraçamento. Os juízes, obreiros da lei, somente estão juntos quando vestem a toga da hierarquia dos tribunais. Nos fins de semana cada qual busca uma atividade recreativa, cultural, esportiva, em locais diferentes, em nada coincidentes com o week-end da família do colega, parceiro diário na labuta dos julgamentos. Aliás, os familiares de um nem conhecem os familiares do outro, porque não freqüentam o ambiente do trabalho e não tem nem fazem questão de lazeres semelhantes.
Em tempos remotos, o fim da vida do juiz aparecia antes da aposentadoria e a família sofria com os irrisórios vencimentos defasados pelo tempo e corroídos pela inflação. Ainda hoje algumas famílias padecem com as migalhas do que deixou o bom juiz. Ultimamente reconheceu-se ao magistrado o direito de aposentar-se com os vencimentos integrais, mas já tentam surrupiar essa garantia de independência conquistada pela singularidade da árdua função de julgar. Querem espezinhar, diminuir a condição de vida do velho e alquebrado juiz, que jogou toda a força de seu poder para impedir a ambição desenfreada do mau político e a conquista sem limite do desonesto empresário.