Publicado no Jornal O POVO - de Fortaleza - dia 2 de agosto de 2003
Marcelo Roseno de Oliveira é juiz de Direito e integrante da Associação Juízes para a Democracia
A análise das reivindicações dos magistrados deve sempre considerar que um juiz independente é garantia do respeito aos direitos do cidadão e da sociedade
As inflamadas reações da sociedade à anunciada e já abortada greve de juízes demonstraram com nitidez o grau de insatisfação da população brasileira com a sua Justiça.
Há inegável descontentamento com a atuação do Poder Judiciário, acusado de moroso, insensível, ineficiente e muitas vezes parcial. Por isso, o debate sobre aquilo que seria justo garantir aos juízes relativamente a seus regimes remuneratório e previdenciário acabou sendo contaminado por esse desagrado, de modo que não foram raras as manifestações - quase sempre carregadas de preconceitos e tomando como regra aquilo que verdadeiramente constitui-se exceção - no sentido de qualificar os pleitos dos juízes como injustos ou até mesmo imorais. É preciso, porém, não misturar os argumentos, sob pena de desviar-se o foco do debate.
Parece claro que antes de discutir quais direitos devem ser assegurados aos servidores públicos em geral e à magistratura em particular, impõe-se fixar qual o modelo de Estado que se pretende construir no Brasil.
Não se concebe um Estado minimamente fortalecido sem o recrutamento dos melhores quadros, o que somente pode ser alcançado com a garantia de boa remuneração e de prerrogativas que assegurem o livre exercício das elevadas funções cometidas ao ag ente, e das quais se deve desincumbir para atender ao interesse público.
O Estado deve ser capaz de atrair os melhores profissionais e remunerá-los dignamente, garantindo que a população, sobretudo a mais pobre e que mais precisa dos serviços públicos, seja atendida com presteza e qualidade. Esse modelo, é certo, não se compatibiliza com o sucateamento das carreiras públicas, que ocorrerá em breve com a aprovação das reformas patrocinadas pelo Governo Lula, do qual se esperava conduta diametralmente oposta.
Falsear a verdade, fazer comparações descabidas entre profissionais de atividades diversas, jogar a opinião pública contra os servidores, de um momento para outro eleitos os grandes responsáveis pelos problemas do país, serve apenas para omitir que se está a implantar no Brasil um modelo de Estado mínimo, com servidores desprestigiados e desmotivados, e que não se preocupa com a qualidade do serviço público.
Quanto à magistratura, especificamente, é preciso dizer que a extinção de direitos - em vias acontecer com a reforma da previdência, mero ajuste fiscal imposto pelo FMI - comprometerá a independência dos juízes, fragilizando o Poder Judiciário que, mesmo com todas as mazelas, tem atuado de modo a limitar arbítrios e garantir direitos, resultado, em boa parte, da decisiva atuação de juízes jovens e idealistas, que não se cansam de lutar pela democratização interna, primeiro e decisivo passo para reconstruir a imagem da instituição, e que vêem o controle social como saudável e necessário para determinar quais rumos seguir.
Partindo dessa compreensão, os juízes têm resistido à aprovação das mudanças propostas, buscando defender a magistratura e, em última análise, o Estado Democrático de Direito, que não se compadece com um Judiciário fraco, que não se porte de modo a manter o equilíbrio entre os demais Poderes.
A análise das reivindicações dos magistrados deve sempre considerar que um juiz independente é garantia do respeito aos direitos do cidadão e da sociedade, e que os desvios de conduta ou mesmo as imperfeições institucionais não podem justificar que se sacrifique tal patrimônio.
Longe de argumentos corporativistas, ou mesmo carregados de cálculos atuariais, é preciso dizer que o tratamento que se dispensa aos servidores públicos de um país reflete a opção de seu governo quanto ao modelo de Estado que pretende implantar - e o Brasil, na contramão dos ideais de emancipação de sua povo, caminha rapidamente para a fragilização das carreiras públicas, dentre as quais a magistratura, promovendo o desmantelamento das instâncias garantidoras de direitos.