Charlotte Bretherson & John Vogler apontam como fundamental a problemática da “subjetividade do ator” nas Relações Internacionais, pois desta depende a caracterização dos sistemas internacionais – constatação relevante que não foi constante na história da disciplina, pois autores de todas as tradições, explicita ou tacitamente, associaram os atores internacionais aos estados soberanos, caso de Stephen Krasner e Barry Buzan, como vimos anteriormente.
Os autores propõem cinco critérios para definição da “subjetividade do ator” (BRETHERTON, Charlotte & VOGLER, John. The European Union as a global actor. Routledge, 1999, p. 37):
a) Compromisso compartilhado com um conjunto de valores e princípios “superiores”;
b) Habilidade de identificar prioridades políticas e formular políticas coerentes;
c) Habilidade de efetivamente negociar com outros atores no sistema;
d) Dotação, e capacidade, de utilizar instrumentos de política;
e) Legitimação doméstica de processos decisórios, e prioridades, relativas à “política externa”.
Tomados estes critérios, percebemos que os autores afirma que a União Européia seria um ator internacional, não sem alguns matizes (qualificando-a de “ator sui generis” (Idem, p.44), ressalvando, por exemplo, o grau de satisfação do item ‘e’, dada a problemática do “déficit democrático”). A qualificação “ator sui generis”, coadunada com o pano de fundo contra o qual os autores constroem seus critérios – as análises tradicionais da “subjetividade do ator”, estatocêntricas, problemáticas para lidar com entidades não-soberanas como a União – desvela movimento dos autores na direção de critérios menos estritos que os tradicionais, permitindo, pois, aproximar entidades não-estatais dos estados.
Uma vez sendo os estados “o padrão a ser atingido”, poderiam os critérios ser aplicados a outras entidades, não-estatais? Verifiquemos outras entidades políticas. Ás Organizações Intergovernamentais (OIs), por exemplo:
“associações voluntárias de Estados, estabelecidas por acordo internacional, dotadas de órgãos permanentes, próprios e independentes, encarregadas de gerir interesses coletivos e capazes de expressar vontade juridicamente distinta da de seus constituintes (VELASCO, Manuel Diez de. LAS ORGANIZACIONES INTERNACIONALES. Madrid: Tecnos, 1990, 7a ed. p.41)”
Derivando dos estados de forma direta, pode-se afirmar que as OIs preencheriam sem maiores problemas os critérios (inclusive o critério ‘c’, dado que o Direito Internacional reconhece-as capazes de expressar sua vontade internacionalmente):
“Decisões políticas no plano internacional contrastam significativamente com o processo legislativo dos sistemas políticos domésticos; são, na sua maioria, uma função de negociações formais entre entidades legalmente reconhecidas” (BRETHERTON, Charlotte & VOGLER, John, obra citada, p.40)
O item ‘e’, porém, seria um complicador’. Haveria uma “esfera doméstica” à qual possam recorrer OIs para legitimar suas ações? Retomando a discussão que os autores fazem da União Européia em relação a este quesito, vê-se que eles trabalham o problema:
1) A partir do relacionamento das instituições comunitárias com os estados-membros constituintes e com atores não-europeus (Idem, p.42), algo extensível às OIs sem maiores complicações;
2) A partir da relação dos órgãos comunitários (derivados dos estados membros) com os indivíduos, cidadãos dos estados membros (Ibidem) - questão problemática, implicando coadunar um fundamento de legitimidade primário (cidadania conferida pelo estado soberano) com um hipotético segundo fundamento, comunitário, em construção. Mas esta constatação tampouco retiraria à União seu estatuto de subjetividade per si, uma vez sendo superável no futuro o problema.
Dado que os órgãos constitutivos das OIs também derivam dos estados-membros, poderíamos dizer que o problema do “déficit democrático” da União encontraria paralelo nas OIs. A relação destas com os cidadãos dos estados-membros não seria menos complexa. Nem por isso, nos marcos da análise dos autores, poder-se-ia negar o estatuto de subjetividade às OIs com base em tal constatação, pois que o problema seria solucionável no futuro. As OIs poderiam ser “atores sui generis”.
Assim, percebe-se a proposta dos autores ampliando o escopo dos atores no sistema para além dos estados. No entanto, minha preocupação se volta para outros corpos políticos que não são estados, nem deles derivam (União Européia, OIs), cujas ações tem resultados não-desprezíveis no plano internacional. Caso, por exemplo, das Organizações Não-Governamentais (ONGs) que atuam internacionalmente, como Anistia Internacional e Greenpeace:
“Relacionamentos duradouros, vinculantes e voluntários estabelecidos entre indivíduos, destinados a produzir um resultado através de técnicas específicas” (GORDENKER, Leon & WEISS, Thomas. “Pluralizing Global Governance: analytical approaches and dimensions” in GORDENKER, Leon & WEISS, Thomas (editores). NGOS, THE UN, AND GLOBAL GOVERNANCE. Londres: Lynne, 1996, p.17)
Não obstantes dotadas de ordenamentos normativos internos, capazes de formular políticas e buscar implementa-las via uma série de instrumentos, dois critérios, se tomados de forma estrita, impediriam às ONGs o estatuto da subjetividade. Não sendo ONGs entidades reconhecidas pelo Direito Internacional (diferentemente das OIs), elas teriam dificuldades para satisfazer o item ‘c’. Sendo as ONGs entidades transnacionalmente organizadas que não derivam dos estados, teriam elas como “legitimar domesticamente” suas ações (item ‘e’)?
Assim, poder-se-ia concluir que ONGs não seriam atores internacionais. No entanto, os autores fazem colocação relevante no início do artigo:
“Não podemos inferir a subjetividade meramente das características internas de uma unidade política, entretanto; devemos também considerar os padrões de constrangimento e oportunidade associados com as estruturas políticas e econômicas nas quais a União Européia está situada” (BRETHERTON, Charlotte & VOGLER, John, obra citada, p. 16)
Torna-se, pois, necessário precisar o “ambiente internacional” no qual o (hipotético) ator se situa, para nosso veredito não configurar análise insatisfatória. Nesse sentido, considero oportuno expor a caracterização que James Rosenau faz do contexto internacional hodierno.
Rosenau caracteriza o sistema internacional hodierno pelo que denominou “incoerência estrutural” (ROSENAU, James N. Studying Structures – The Two Worlds of World Politics in ROSENAU, James N. TURBULENCE IN WORLD POLITICS: A THEORY OF CHANGE AND CONTINUITY. Princeton: Princeton University Press, 1990, p.244), não com o significado de inexistência de estrutura, mas referido à coexistência de lógicas diferentes num mesmo sistema, utilizadas por múltiplos atores em interação, dando “forma” irregular, complexa e dinâmica ao sistema. Dois processos são fundamentais: descentralização dos “locais de ação”, gerando diversos sub-sistemas que se opõe/sobrepõe continuamente; centralização das “iniciativas de ação”, resultado da emergência de “temas globais”, cuja solução demanda coordenação e cooperação entre os diversos sub-sistemas e seus respectivos atores.
Rosenau confere ao sistema internacional uma estrutura bifurcada, compreendendo duas esferas distintas, inter-relacionadas. A esfera estatocêntrica corresponde ao sistema internacional descrito pelo Realismo. Os atores por excelência são os estados nacionais soberanos – territorialmente organizados, racionais, maximizadores de suas preferências (associadas à auto-preservação, daí a primazia das questões de Segurança nessa esfera). Além dos estados, esta esfera abriga as OIs, que deles derivam. Inexiste um poder regulador acima dos estados. A relação entre estes se baseia em atributos de poder (capabilities) desiguais, colocados a serviço da maximização do “interesse nacional”. As ações de cada estado influem nos resultados das ações dos demais, configurando um mecanismo regulador, a “Balança do Poder”. O chamado “Dilema de Segurança” é a questão mais fundamental nessa esfera – estados, buscando maximizar suas preferências (auto-preservação), colocam em risco a auto-preservação dos demais estados pois suas ações incidem sobre estes, levando-os à ação. Forja-se assim um mecanismo de retroalimentação, resultando numa situação de constante tensão e precário equilíbrio entre os estados (com a qual as OIs têm que lidar).
A outra esfera – multicêntrica – derivou de um conjunto específico de acontecimentos no pós-Segunda Guerra Mundial – a Revolução Microeletrônica, a Ordem Pós-Industrial e diversas “transformações demográficas” relacionadas ao acesso à informação (Idem, p.100). Compõe-se de atores com diferentes motivações, recursos e funções – corporações transnacionais, ONGs, grupos guerrilheiros, grupos étnicos, elites burocráticas etc. Traços comuns entre eles são seu caráter não-soberano e a capacidade que possuem de se “evadir” ou “ignorar” as demandas dos estados (aos quais estão formalmente submetidos) quando atuam na esfera multicêntrica. As relações nesta esfera se baseiam no reconhecimento mútuo da “autoridade de iniciar e sustentar ações” (Idem, p.261).
A complexidade e a ausência de uma autoridade capaz de regular as relações entre os atores (mais pronunciadas do que na esfera estatocêntrica) fazem da esfera multicêntrica um complexo arranjo de relações cooperativas ou competitivas entre atores diversos, que lutam para manter sua coesão interna e para obter os recursos necessários à consecução de seus objetivos. Tal complexidade não impede a tomada de decisão e o início da ação, mas incide sobre o controle dos acontecimentos e a obtenção dos resultados. A iniciativa da ação de um ator na esfera multicêntrica impõe constrangimentos à tomada de decisão e ação dos demais, influindo ainda nos resultados destas. Há, portanto, na esfera multicêntrica, um “Dilema de Autonomia”.
Aparentemente apartadas e sumamente diversas, as esferas estatocêntrica e multicêntrica apresentam similaridades e mantém estreito relacionamento (ambas são caracterizadas pela anarquia e por atores racionais, maximizadores). Atores soberanos e não-soberanos transitam de uma esfera para a outra, estabelecendo entre si relações ad hoc complexas (muitas vezes, tendo as OIs como “arena” de negociação, outras vezes em parceria com as OIs para atingirem objetivos comuns) criando “áreas de contato” entre as esferas, configurando a “turbulência na política mundial” (Idem, p. 270).
Uma vez caracterizado o sistema internacional – reafirmando OIs e estados como atores – não caberia dúvida às quanto a se considerar ONGs e outras entidades como atores internacionais. Entretanto, faz-se necessária uma releitura dos critérios de Bretherson & Vogler à luz do sistema internacional de Rosenau, para confirmar tal constatação.
Dado que, na interseção das esferas estatocêntrica e multicêntrica, atores soberanos ou não estabelecem coalizões ad hoc complexas, é relaxado o critério da “legalidade estrita” como indicador de subjetividade do ator. Nesse sentido, oportuno reafirmar os autores:
“Decisões políticas no plano internacional...são, na sua maioria, uma função de negociações formais entre entidades legalmente reconhecidas” (BRETHERTON, Charlotte & VOGLER, John, obra citada, p. 40)
ONGs, muitas vezes, negociam com estados via OIs, com as quais mantêm estreita “simbiose” (caso da ONU – o artigo 71 de sua Carta confere às ONGs caráter consultivo nos trabalhos da organização). Exemplo de “coalizão ad hoc” ONGs-estados teve lugar em 1963, na Comissão de Direitos Humanos (CDH) da ONU, referente à criação de um órgão executivo para violações dos Direitos Humanos (o atual Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos). Nessa época, uniram-se ONGs (formuladoras da proposta) e o governo da Costa Rica, que a apresentou na CDH (DIAS, Clarence J. “The United Nations World Conference on Human Rights: Evaluation, monitoring and review” in SCHECHTER, Michael G. (editor). UNITED NATIONS-SPONSORED WORLD CONFERENCES: FOCUS ON IMPACT AND FOLLOW-UP. Toquio: United Nations University Press, 2001, p.67). ONGs, ainda, negociam indiretamente com estados, através da “formação de agenda” em foros internacionais (caso das conferências mundiais organizadas pela ONU na década de 1990) (SCHECHTER, Michael G. “Making meaningful UN-sponsored world conferences of the 1990s: NGOs to the rescue?” in SCHECHTER, Michael G. (editor). UNITED NATIONS-SPONSORED WORLD CONFERENCES: FOCUS ON IMPACT AND FOLLOW-UP. Tóquio: United Nations University Press, 2001). Assim, as ONGs, capazes de negociar com outros atores (estados, OIs) atenderiam ao item ‘c’. E quanto ao item ‘e’? Teriam as ONGs algum “lastro de legitimidade” similar ao plano doméstico dos estados?
Alguns autores apontam as ONGs como “ponta-de-lança” da formação de uma “sociedade civil internacional”. A sociedade civil seria caracterizada como:
“...domínio da sociedade situado imediatamente acima do indivíduo e abaixo do Estado, sendo constituída por complexas redes baseadas em interesse, família, ideologia e afinidade cultural, através do qual as pessoas buscam diversos objetivos” (WAPNER, Paul. Governance in Global Civil Society in YOUNG, Oran (editor). GLOBAL GOVERNANCE: DRAWING INSIGHTS FROM THE ENVIRONMENTAL EXPERIENCE. Massachussets: The MIT Press, 1997, p.108).
Dada a existência de temas transnacionais interpenetrando questões domésticas, torna-se crescentemente difícil separar grupos nacionais e transnacionais que defendem os mesmos interesses e através dos quais indivíduos, unindo-se voluntariamente através de redes transnacionais, buscam determinados objetivos. A esse amálgama, cada vez mais autores se referem como “sociedade civil internacional” (WEISS, Thomas, FORSYTHE, David & COATE, Roger. The United Nations and Changing World Politics. Boulder, Westview, 1994, p.163). Esta seria uma fonte de ordem no sistema internacional “através dos esforços deliberados de ONGs politicamente motivadas” (WAPNER, Paul, obra citada, p.79).
Tal consideração (compatível com a exposição de Rosenau) nos permitiria pensar as ONGs lastreando sua legitimidade de ação na “sociedade civil internacional”. Elas se assemelhariam mais aos estados do que à União Européia, pois não estariam em busca de um fundamento secundário de legitimidade, mas de um fundamento primário. No entanto, mantenho para as ONGs, de forma análoga, as ressalvas que os autores têm quanto à problemática do “déficit democrático” europeu (a sociedade civil internacional ainda não se consolidou); não obstante, sendo o problema superável, não há por que se negar o estatuto de subjetividade às ONGs com base nesta constatação. Elas poderiam ser consideradas “atores sui generis”.
Assim, as ONGs satisfariam o item ‘e’, podendo enfim ser consideradas atores internacionais nos termos de Bretherson & Vogler, uma vez efetuada contextualização dos critérios no marco de uma caracterização do “ambiente internacional” no qual se situam as entidades políticas sob exame (necessidade apontada pelos autores) e, ainda, trabalhando com os critérios não de forma estrita, o que permitiu caracterizar a União Européia como “ator sui generis”. Isto ocorreu visto que os critérios foram construídos contra o “pano de fundo” das abordagens tradicionais, estatocêntricas, tomando o estado soberano como “padrão a ser atingido”.
À guisa de conclusão, cabe a pergunta se não seria desejável construir critérios que estabelecessem uma relação não-especular com os estados, enfatizando as peculiaridades de atores não-soberanos. Esta é possibilidade deveras relevante – que minha análise não deve, de forma alguma, desautorizar. Apenas afirmo que não foi o rumo aqui adotado. Busquei aplicar os critérios dos autores da forma como estes foram aplicados para a análise da União Européia, buscando lançar luz sobre a situação de outras entidades políticas, sem questionar a priori a acuidade ou não dos referidos critérios.
BIBLIOGRAFIA
BRETHERTON, Charlotte & VOGLER, John. The European Union as a global actor. Routledge, 1999.
DIAS, Clarence J. “The United Nations World Conference on Human Rights: Evaluation, monitoring and review” in SCHECHTER, Michael G. (editor). United Nations-sponsored World Conferences: Focus On Impact and Follow-Up.Tóquio: United Nations University Press, 2001.
GORDENKER, Leon & WEISS, Thomas. “Pluralizing Global Governance: analytical approaches and dimensions” in GORDENKER, Leon & WEISS, Thomas (editores). NGOS, the UN, and Global Governance. Londres: Lynne, 1996.
KEOHANE, Robert O. “Theory of World Politics: Structural Realism and Beyond”. In: KEOHANE, Robert O. (ed.). Neorealism and Its Critics. New York: Columbia University Press, 1986.
NYE JR., Joseph S. & KEOHANE, Robert O. “Introduction” in NYE JR., Joseph S. & DONAHUE, John D. (editores). Governance in a globalizing world. Washington: Brookings Institution Press, 2000.
OSIANDER, Andreas. Sovereignty, international relations and the Westphalian myth. International Organization 55:2, 2001.
ROSENAU, James N. “Studying Structures – The Two Worlds of World Politics” in ROSENAU, James N. Turbulence in World Politics: a theory of change and continuity. Princeton: Princeton University Press, 1990.
SCHECHTER, Michael G. “Making meaningful UN-sponsored world conferences of the 1990s: NGOs to the rescue?” in SCHECHTER, Michael G. (editor). United Nations-sponsored World Conferences: Focus On Impact and Follow-Up. Tóquio: United Nations University Press, 2001.
VELASCO, Manuel Diez de. Las Organizaciones Internacionales. Madrid: Tecnos, 1990, 7a ed.
WAPNER, Paul. “Governance in Global Civil Society” in YOUNG, Oran (editor). Global Governance: Drawing Insights from the Environmental Experience. Massachusetts: The MIT Press, 1997.
WEISS, Thomas, FORSYTHE, David & COATE, Roger. The United Nations and Changing World Politics. Boulder, Westview, 1994.