Enquanto aguardava, Fernando pôs-se a observar a multidão. Após a prece, a alma estava mais leve e a mente mais clara. Era como se tivesse recebido o influxo energético de poderosas entidades de plano elevado. Sentia-se abençoado.
Foi capaz de verificar a presença de amigos da espiritualidade. Reconheceu Roque, mas não viu a Tia Ana. Quis saber quem eram as outras entidades.
— Ali está Irineu, cuja comunicação você ouviu no Centro. Acompanha sempre o amigo Francisco. Como se fora anjo da guarda. Existem outros protetores dos médiuns presentes. (Esclarecia-se que fora o contador quem trouxera a gente simples.) Se você quiser, poderei dar-lhe a ver espíritos brincalhões. São sofredores em estágio na Crosta, para aprendizagens diversas. Não sabem, mas estão acompanhados dos guardiães espirituais. Se desejarem prejudicar inocentes, serão afastados incontinênti.
A proposta era tentadora. Arriscou aceitar. Começou a ter visões estranhas. Havia dois ou três, tentando fazer cócegas, para provocarem o riso em desconcentrados na solenidade. De fato, trocavam palavras furtivas, como se comentassem aspectos ridículos.
— Será que os encarnados estariam sentindo-lhes a presença?
— Negativo. Estão dando azo a serem obsidiados. Note que a ação física é meramente efeito visual. O que as entidades estão fazendo é imantando, com suas baixas vibrações, as mentes dos humanos que lhes dão chance, por desejarem abstrair-se do clima religioso. Acima do conjunto em desarmonia, existe um dos nossos, isolando-os com cordão vibratório. Não irão perturbar as orações dos verdadeiros amigos.
Fernando notou maior movimentação junto aos familiares.
— Quer definição sobre o que se passa?
— Por favor.
— O sofrimento desvairado gera fortíssimas vibrações. Há pessoas em estado de crise nervosa, especialmente a viúva. Neste momento, alguns encarnados tiveram notícia da verdadeira doença do Jeremias e, por via inconsciente, emitem rajadas fluídicas contra o desencarnado. Aproveitam-se disso os malignos, concentrando as péssimas energias para ferir o recém-chegado. Agem gratuitamente. Se lhes perguntarmos, vão dizer-se vigilantes das leis ou oficiais das hostes do Senhor. Querem passar-se por feitores da divina justiça. Mas não têm boa-fé. Na verdade, desejam-lhe os mesmos pesares que sentem nas “vítimas”. Transferem também as próprias dores, como se compensassem as pesadas cruzes que carregam. Esses não são fanfarrões. Você não poderá visualizar os benfeitores, mas sinta como os daninhos não alcançam ofender nem Jeremias (de relance, viu-lhe o espírito em prantos), nem as pessoas que verdadeiramente o amavam, particularmente os filhos e a esposa.
Tudo era novidade para Fernando. O interessante é que não precisava endereçar o olhar para a sepultura, para perceber o que se passava. Era como se visse com os olhos da alma. Sabendo que era uma graça especial, esforçou-se por agradecer o contacto telepático ou mediúnico.
— Você tem muito que aprender. Saiba, contudo, que esta disposição mental fluiu dos sentimentos legítimos de consideração e boa vontade para com o amigo desencarnado. Foi assim que se abriu o campo magnético, através do qual o influenciamos. O local não é propício para muitas explicações. Fiquem-lhe estas impressões como resíduo sobre que aplicar os estudos doutrinários, nos aspectos técnicos.
Acordou-o João da imersão consciencial:
— Esperamos você, hoje, no Centro.
Fernando advertiu que era quinta-feira, dia em que prometera voltar com Jeremias, para a sessão de aprendizado mediúnico.
— A sorte destinou-me uma decisão solitária...
— Solidária, caro chefe, que todos nós estamos resolvidos a atendê-lo nos reclamos espirituais. No que nos for possível, pois todos estamos aprendendo. Como diz o Chico Xavier...
João suspendeu o discurso. Havia muita gente solicitando-lhe os préstimos.
— Desculpe-me. Tenho de remeter de volta o povo do Centro. São carentes a quem damos assistência material e espiritual. Quiseram comparecer, para cercarem o companheiro de bons fluidos. Caso não saiba, Jeremias praticamente mantinha sozinho o departamento. Anonimamente. Não se imiscuía na gerência dos trabalhos, mas... Depois conversaremos. Tenho novidades quanto à sua firma. No Centro...
Com a retirada daquela turma e dos empregados, ficaram os parentes e os amigos. Estes também foram despedindo-se. Fernando considerava-se íntimo. Eram compadres. Isso valia créditos emocionais. Mas ali estava Timóteo, a açambarcar a atenção da família.
Ao aproximar-se, Fernando pôde perceber que estava assinalando as providências religiosas. Não se preocupassem. Reservaria o melhor horário para a missa de sétimo dia. Toda a ornamentação de flores correria por conta da paróquia. Era o mínimo que poderia fazer, depois de Jeremias ter tanto contribuído para as obras assistenciais.
Também ali? Quem era esse filantropo que ele não conhecia? Desde quando seus rendimentos eram tão elevados, para sustentar tanta benemerência?
— Eis que chega o nosso rebelde.
Fernando notou que o padre queria envolvê-lo na aura de hostilidade do grupo. Não se incomodou. Naquele instante, o que mais queria era reconciliar-se com todos. Imaginou as entidades a fazerem cócegas no padre, mas viu também os protetores atuando. Daria o testemunho da verdade:
— Padre Timóteo, tenha por mim a consideração do confessionário, por favor. Poucos aqui sofreram mais que eu a dor da perda dessa pessoa que me era tão querida. Os nossos laços de amizade não se romperão com esse transe natural para o além. A eternidade espera por todos nós. Dentro de alguns átimos de segundo, encontrar-nos-emos reunidos no etéreo. Sob o manto misericordioso de Jesus.
Ele mesmo não acreditava que fora capaz de realizar semelhante discurso. Dolores estava impressionada. Timóteo julgava-se na necessidade de complementar de forma gloriosa:
— Deus abençoa a todos nós, os seus filhos, pelas palavras santas do nosso leal paroquiano. O filho pródigo sempre há de regressar à casa do Pai.
Elevando a mão, fez um amplo sinal da cruz, obrigando a todos a se persignarem. Leonel não hesitou. Fernando encarava o sacerdote, enquanto sutis lágrimas lhe escorriam, sem que fizesse menção de recolhê-las. Que Deus faça que tais sentimentos sejam honestos! Mais que nunca, estava resolvido a comparecer ao Centro, naquela noite.
Aproveitando-se de seu destaque dentro do grupo, aproximou-se de Maria, apanhou-lhe as mãos e depositou carinhoso beijo. Era o pedido de perdão. Era a evidência de que não se magoara. Se estivesse observando a esposa, talvez atenuasse a demonstração sentimental. Buscou o afilhado e o abraçou ternamente. Estendeu o braço e agasalhou o irmão. Todos se comoveram.
Maria entendeu que o compadre queria volver ao seio familiar, mas não se deixou abalar por afeto tão palpável. Esperava pelas ações. Além de Timóteo, fora a única que constatara que Fernando não se benzera. A vida estava sendo muito dura para com ela, para que se deixasse levar por emoções banais. Ninguém tinha o direito de representar maior sofrimento.
Dolores acercou-se do marido. Queria o seu quinhão de emotividade. Sentira-o distante o dia todo. Fugira da obrigação rude de permanecer junto ao cadáver. Desejaria ganhar de volta a consideração de todos, sem esforço algum? Lembrou-se da figura do filho pródigo. Era bem significativa. Aquele que fica sacrificando-se nunca é reconhecido. Será que o marido tinha arquitetado a volta triunfal? Seria inspiração demoníaca.
Todos estavam sentimentalmente exaustos. Necessitavam de descanso. Convidaram o casal para ligeira refeição na casa da viúva. Aceitariam, se não houvesse tanta gente a atender. Dolores agarrava-se ao braço do marido. Iriam para casa. Amanhã, ligaria para combinarem o que se julgasse oportuno. Amigas são para essas coisas.
À porta do cemitério, discretamente, Leonel atraiu Fernando para um canto, enquanto a mulher se despedia. Precisavam pôr a família a par de tudo.
— Dolores está sabendo. Vamos perguntar-lhe o que acha que devamos fazer. São tão amigas que talvez deseje compartilhar desse momento de dor.
Foi buscá-la, procurando não despertar atenção. Contudo, a muitos não passou despercebida a manobra. Ainda lhes deviam explicações.
— Querida, como você pensa que devamos dar a notícia da doença?
— Não se preocupem. Já tivemos uma conversa de mulher para mulher. Ela está ciente de tudo. E tem certeza de que não está contaminada. Já ligou para o médico do convênio e marcaram os exames. Quando me referi às providências para amanhã, era sobre isso que falávamos. Fiquem sossegados. O mais vai correr por conta de vocês, em relação aos familiares. Por que não aproveitam a oportunidade de estarem todos aqui? Deixem Maria ir na frente, para não constrangê-la. Eu cuido disso.
De fato, não demorou para o carro levar a viúva, os filhos e os pais.
Ao ouvirem a palavra AIDS, os interessados no diagnóstico empalideceram. Houve quem quisesse duvidar. Mas os comentários a respeito da vida sexual do morto fizeram-no calar-se.
Em pouco tempo, o grupo dispersou-se, cada qual levando na alma a aflição da viúva.
Fernando estava admirado da fortaleza moral das mulheres. Estimava-as mais por isso. Mas, em sua mente, avolumava-se negra sombra de temor. Quais seriam as lutas que deveria enfrentar para emancipar-se espiritualmente, religiosamente? Conseguiria sem querelas, sem resistências, sem manobras sorrateiras, sem sacerdotes “entrões”, sem espiões sagazes? Conseguiria, sim, se se mantivesse fiel aos orientadores espirituais. A ida ao Centro, naquela noite, seria a pedra de toque dos relacionamentos futuros. Intimamente, pedia a proteção dos benfeitores.