Em adeus ao Cine Veneza, escrevi um artigo, impublicável talvez, que tinha por título uma frase de Guimarães Rosa: "Deus mesmo, se vier, que venha armado".
Mas vamos falar da "sétima arte". Gostaram? Pois é, chegou a ter esse nome. Arte que, excessivamente otimistas para muitos, o filósofo Walter Benjamin e o dramaturgo Bertolt Brecht proclamavam como a mais democrática de todas. Em "A obra de arte na época das suas técnicas de reprodução", Benjamin faz o elogio do cinema.
Mas se quiserem sabê-lo maldito, leiam "As palavras", do francês Jean-Paul Sartre. Além de como aprendeu a ler e a escrever um dos maiores pensadores do século XX - é claro, antes de ter vindo a Araraquara! -, o leitor saberá que ir ao cinema já foi uma forma de transgressão social. As boas famílias burguesas não queriam seus filhos misturados à ralé que, no escuro, se entregava a deleites mundanos desprezíveis. Menino, Sartre já era um transgressor de marca. Estimulava-o uma criada.
O cinema - como o conhecemos, desde a primeira multidão se escafedendo aflita à chegada de um trem à estação até o momento em que esses espaços democráticos passaram a ceder espaço às práticas religiosas ou a outras, declaradamente comerciais - está em vias de desaparecimento.
Em criança, muitas vezes fui proibido de ver certos filmes. Nas locadoras, hoje, tropeço em proibições de antanho. Para a família católica, no fundo o cinema era coisa do demônio. Contra ele pregavam os padres em suas homilias. Havia filmes desaconselhados para menores de 14, 16, 18 ou 21 anos. E havia os de todo desaconselháveis a qualquer ser humano que não quisesse ir pro céu das cabras.
Hoje, quando as salas de exibição dão lugar a igrejas, só posso concluir: Deus está de volta. E para adquirir todos os antigos antros do pecado. Daí, o título daquele meu artigo talvez impublicável.
Dia desses, quis rever um clássico: "A última sessão de cinema", de Peter Bogdanovich. Ao me ver com a fita nas mãos, o Caçulinha [dono da locadora] transbordou: "Esse é um sonho!" E me contou que ele e o Nivaldo Chade tiveram um cinema em Américo Brasiliense. Nos anos 60, três mil almas, se tanto. Com "Os Dez Mandamentos", de Cecil B. de Mille, um grande triunfo, o CINE SÃO JOSÉ passou a perna em todos os cinemas de Araraquara e região. E um filme a ser relembrado com tristeza: "O Pescador da Galiléia", com Anthony Quin. Foi a última sessão de cinema naquele município.
Em criança, anos 50, morei em Maracaí, São Paulo. Tinha a rua que subia, a que descia (poeira ou puro barro), o jardim, a igreja matriz e, pasmem, um cinema. E sempre lotado. Era precário, sim. É com espanto, e às vezes com decepção, que hoje revejo, coloridas, películas que pensava fossem em p & b.
Mas, e o título deste artigo? Bem, Rafael - da geração de Elenira, a garotinha de "A baleia assassina e o efeito de distanciamento" -, ao retornar de sua primeira ida a um cinema, estava entusiasmado, mas também cético. Perguntei: "E aí, Rafa, como é o cinema?" E ele: "É igual a uma televisão, só que do tamanho de um teatro".
Genialmente, ele sintetizava décadas de um debate que pretendo rever, de quando em quando, neste meu "zinema".
No jornal Tribuna Impressa, de Araraquara, todas as quartas-feiras eu assino a coluna OXOUZINE. O texto acima, afora algumas pequenas correções e adendos que acabo de introduzir, está na edição de hoje, 06/02/02, que permanece online até a terça-feira seguinte. O endereço: www.tribunaimpressa.com.br. Clicar em colunistas . Ilustração: "A lanterninha", de Edward Hopper.