O que podem esperar duas pessoas grisalhas? Penso isso ao lembrar de Vênus, que se estiver viva, deve estar com sessenta anos. Nunca um pai deu um nome tão certo a uma filha
quanto Vênus. Saindo do Obervatório Nacional do Rio de Janeiro, eu a vi
chorando na amurada. Era uma lágrima discreta, silenciosa.
Clara com seus vinte anos, os cabelos castanhos claros, encaracolados,
deliciosamente branca, os olhos nos confundindo
se eram castanhos, se verdes.
Olhou-me, com os olhos expressivos, muito expressivos, fez-me um gesto
com as mãos que não ouvia, nem falava.
Fiquei com isso, sensibilizado.
Ela pegou na bolsa um bloco e uma caneta azul, estendendo-me.
Então começo nossa comunicação por escrito.
Eu escrevia "qual seu nome" e ela respondia "Vênus Polidoro".
"Porque voce tá chorando"
"È muito bonito lá em cima, os planetas, tudo".
"Voce mora perto"?
"Em botafogo".
"Vem sempre aqui"?"Minha mãe trabalha na Coordenação Geral. E voce, como chama"
"Eduardo" - escrevi fazendo a leitura lábial para ela.
Ela riu, de olhos brilhantes.
Aos poucos, fui descobrindo a linguagem dos seus gestos e eles me traziam uma felicidade e uma
harmonia tão fatal quanto inexplicável. Vênus estava me sugando para o seu mundo
silencioso, cheio de mistério e mitologia.
" Você tem namorado?"
"Não."
"Já teve?"
"Sim. Não sou mais virgem, se quer saber."
A resposta dela deixou-me um pouco encabulado.
Ficamos assim, conversando por escrito e falando por olhares, até que a mãe dela
a viesse chamar.
Mas ela já tinha me dado o que eu mais queria, que era o número de seu apartamento
na Voluntários da Pátria. De volta pra casa,
eu sentia-me surpreso com que ansiedade a esperava encontrar de novo. Começamos a trocar correspondência, até que chegou um dia
o momento, depois de uns tres meses,
que ela me escreveu com sua letra redonda.
" Minha mãe vai passar o fim de semana em Curitiba, vou ficar sozinha em casa.
Me leva ao cinema, depois você fica comigo."
Claro que na cartinha ainda estava escrito que ela gostava de mim, que eu sou uma coisa importante
na vida dela, que ela estava feliz, mas foi a idéia que íamos ficar juntos na intimidade
é que já era uma espécie de obsessão do meu pensamento.
Mandei o telegrama na manha do dia marcado, que estaria em frente a porta dela
as dezesseis horas em ponto, sem atraso.
Não adiantava tocar o interfone, mas para minha surpresa, ela estava já no saguão
com umvestido comportado, todo verde, com um lacinho no cabelo
combinando e ai, pela primeira vez,
ela me beijou, primeiro rapidamente, e mal refiz-me
da surpresa, recebi outro beijo, profundo, feminino,
úmido, divino. Todo meu corpo se alarmou e ali, acabaram-se minhas dúvidas, se ainda, as tinha,
estava apaixonado. Pior,eu amava aquela mulher.
Abracei-a fortemente, como se abraçasse a própria vida, e dentro
de mim, no fundo, duvidava se aquela verdade era verdade.
Eu tinha uma namorada chamada Vênus, que era linda e surda muda.
E que tinha uns olhos que pareciam cheios de água e de sonhos dentro.
Outra coisa que dói-me agora, mais de trinta anos depois, recordar,
é o quantidade de cinemas que tinha a Cinelândia e como aquilo
tudo era romântico e histórico.
Peguei-a pela mão e chamei o primeiro táxi.
Naquela época, eu não estava bem resolvido na área financeira ainda, era um
jovem e começava a me juntar a alguns livreiros no Rio, mas
eu estav disposto a não deixar minha Vênus nem dar conta
que meu dinheiro era curto.
Peguei-a pela mão e chamei o primeiro táxi.
Naquela época, eu não estava bem resolvido na área financeira ainda, era um
jovem e começava a me juntar a alguns livreiros no Rio, mas
eu estav disposto a não deixar minha Vênus nem dar conta
que meu dinheiro era curto.
Sentei com ela no banco traseiro e pedi ao motorista
que nos deixasse no passeio.
Nossas mãos já pareciam casadas, deixadas unidas sobre o colo dela
e eu tinha daqueles joelhos delicados ciúmes e cuidava
que o motorista não tivesse olhos para ver tudo
que eu via e mais adivinhava.
As lembranças daquele tempo, interessante, me chegam com ela
de verde e o mundo em preto e branco.
Foi no velho Rex que entramos, para ver
"A Garota do Adeus".
Ela ria com o desencontro dos personagens, não se importando
que minhas mãos alisassem seu sexo por cima da calcinha.
Ela toda se dava a mim, de uma maneira tão suave se sem pudor,
como se nunca ouvisse falar de pecado, de fato ela não ouvia,
e aquilo as veze me deixava com a vaga fantasia de que ela era uma garota de outro mundo.
Quando o filme acabou, já era noite.
Combinamos de fazer um lanche
e me diverti com o bigodinho de morango
que ela ficou nos lábios.
Ria com os olhos, ria com o corpo,V& 7869;nus era toda ela um sorriso,
nunca uma gargalhada. Não havia nada grosseiro, sobrando ou faltando nela.
Nem me passava na cabeça que um dia pudesse ter outra mulher
e assim unidos mais do que nunca, suportados mais vinte e cinco minutos
contados no taxi da volta, eu agora esperava ela sair do banheiro de casa, na sala do apartamento,
e ela já voltou de toalha cobrindo até os seios, os cabelos presos
no alto da cabeça. Fez um gesto com as mãos me chamando.
Não tive o prazer de ver ela tirar mais do que a calcinha
cor de rosa.
os seios médios, perfeitos, se ofereciam a mim
em silêncio. O quarto todo, porém,
parecia imerso num ritual.
Ainda havia a porta aberta, dando para o aquário do corredor, onde os peixes coloridos
compunham aquele cenário mágico.
Sem uma palavra, sem um som, estavamos e eramos perfeitos.
Todos os seus líquidos e cheiros eram todos mulher, eram todos perfumes - eu vivia completamente enfeitiçado. Come ela, eu esquecia que falava.
Ela me retribuía com os olhos cheios de felicidade, aqueles olhos que eram alma pura, que nunca mais depois vi outro igual.
Dormimos juntos e no domingo, passeávamos de mãos dadas pela praia de Botafogo;
almoçamos juntos ainda, pizza e arroz de forno. Ela ria do queijo derretido e eu retribuia cada sorriso dadivoso dela.
Nossa relação era canção, uma canção redundante de felicidade.
Ela e a mãe eram vegetarianas.
Foram tres meses eternos e ainda entramos juntos em livrarias da zona sul,
ficamos num motel do centro uma vez
e por fim, ela me deixou no mesmo lugar
que nos conhecemos, o Observatório Nacional.
Recebi uma carta na terça
e um telefonema na quinta, confirmando o encontro na sexta.
Era a mãe dela;
--- Voce que é o namoradinho da V& 7869;nus?
--- Sim.
--- Olha, ela disse para voce ir na sexta no Observatório que ela tem uma noticia para te dar. Aqui é a mãe dela.
Na amurada, eu ficava vendo os pássaros cantando naquele dia nublado.
No jardim, parecia que o verde exalava uma estranha melancolia.
Eu estava inquieto, será que V& 7869;nus engravidara?
Nunca tomamos precauções e do jeito que nosso romance começou, seria uma ofensa
pensar nisso, e naquele tempo ainda não havia essas doenças causadas, talvez, pela promiscuidade humana.
Eu nunca pensaria me apaixonar por uma mulher surda-muda, mas devo admitir que
achava ela bem mais interessante que as outras quase dez namoradas que já havia tido.
A porta do elevador abriu e meu coração disparou. Vênus estava com um vestido amarelo florido, sapatinho amarelo
e uma bolsinha vermelha, linda e feminina como sempre. Quando me avistou, porém, senti que ela deu um sorriso diferente.
Tristonho. Já estava claro para mim que havia algo errado. Ela caminhava em minha direção, ao mesmo tempo que eu ia a seu encontro;
era clara minha ansiedade. Abraceia-a. Assim ficamos , por alguns minutos. Beijei-a e ela
tirou os lábios antes de mim, coisa que nunca fazia. Abril a bolsa e mostrou-me
o que estava escrito.
"Querido, vamos ter que terminar tudo. Estou indo embora para morar em Curitiba.
Não tem volta, minha mãe já pediu a transferência e já alugou uma casa.
Já estaremos lá no próximo fim de semana. Podemos continuar amigos, vou te escrever, mas
nesse momento temos que nos afastar. Sinto muito se te magoo.
Minha mãe tem planos e um namorado de lá. Desculpa".
Por um instante, fiquei atônito, depois exclamei:
-- Que porra é essa, Vênus?
Ela me olhava com os olhos cheios dágua, e dei-me novamente conta que ela era surda, embora entendesse
que ela leu minha expressão por inteiro. Era estranho, ela tinha o poder
de ser uma coisa minha, dentro de mim, ao mesmo tempo que fora, e isso
me deixava louco; eu queria a fusão total, completa; na verdade, o amor dela
era para mim a única coisa indispensável e agora eu iria perdê-la.
Ela me olhava como se seus olhos me pedissem perdão e tudo aquilo era muito doloroso.
Ela abraçou-me, beijou-me no rosto e me deu adeus, com as mãos.
Eu sofria ali, mais ainda havia em mim um resto de filósofo e aceitei que ela se fosse, sem brigar, sem lutar.
Afinal, era apenas uma menina surda-muda, que ia embora da cidade e da minha vida.
Isso iria acontecer uma hora, não é mesmo?
Ela me olhava como se seus olhos me pedissem perdão e tudo aquilo era muito doloroso.
Ela abraçou-me, beijou-me no rosto e me deu adeus, com as mãos.
Eu sofria ali, mais ainda havia em mim um resto de filósofo e aceitei que ela se fosse, sem brigar, sem lutar.
Afinal, era apenas uma menina surda-muda, que ia embora da cidade e da minha vida.
Isso iria acontecer uma hora, não é mesmo?
Mas não foi assim que aconteceu. Os anos passaram e os líquidos e sonhos
dela continuaram a viver em mim, a me percorrer.
Uma parte de mim se misturou a ela, ao seu olhar, ao seu mistério.
E agora ,dolorosamente, imagino que nós dois sejamos dois grisalhos
e me vem a pergunta, se a procurasse e a achasse, o que poderíamos fazer? O que podem fazer dois grisalhos?
A verdade é que Vênus foi, com todo seu singular destino, a poesia e o punhal