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	Foi ainda antes da entrada do Che em cena, ou em Cuba, que o Edinho e eu nos
 tornamos companheiros. Não subíamos nenhuma Sierra Madre mas de ladeira em
 
 ladeira fomos forjando juntos aquele caminho para a escola - e a volta pra casa,
 
 vizinhos que éramos.
 
 Companheiros. Não diria que chegamos a construir uma amizade, dessas despojadas,
 
 de base sólida e duradouras. Não nos sentávamos juntos ou nos reuníamos para fazer
 
 um dever de casa, ou mesmo bater uma bola no beco-sem-saída que
 
 compartilhávamos, ele numa casa até meio imponente à esquina, e eu mais pro fundo.
 
 Seu pai, homem da Rede, o Seu Mário tinha muitos filhos já adultos uns e um deles, o
 
 mais brilhante e brigante, o Deusdete, formou-se Advogado em Beagá. E até nos
 
 mandou uma participação, bem cuidada impressão. Na relação dos doutorandos,
 
 daquele ano que devia ser 60 ou 61, constava também um nome difícil de ser
 
 esquecido: Natalino Natalício do Nascimento.
 
 Mas no meio tempo, íamos o Edinho e eu, batalhando com coisas mais basilares
 
 naqueles surrados bancos escolares do Grupo Escolar Professor José Valadares, o
 
 popular `grupo véio` e que a meninada do grupo novo, o Francisca Botelho, quase
 
 vizinho e inimigo feroz, resolveu apodar, por causa da sigla JV de José Viado.
 
 Edinho havia-se juntado à nossa classe de segundo ano, provindo de umas tais
 
 Classes Anexas, ligadas ao ginásio e à elite do burgo, que não admitiam repetência. E
 
 como pau ele havia levado, passou para o nosso lado.
 
 Brigão feito ele só, não perdia a oportunidade de travar uma luta com quem quer que
 
 lhe aceitasse o desafio, ou que o recusasse mesmo, tal curto o seu pavio, assim a
 
 esmo. Estranhamente poupado desses desforços, ainda que nem obeso nem
 
 incapacitado, eu às vezes ficava assistindo aos embates, vigiando sua pasta, ou seguia
 
 em frente, sem dizer parabéns, ou basta.
 
 Parece que estava no sangue, ou nos hormônios do Edinho aquela impulsão à porfia. E
 
 nem desatada chegava a ser a sangria. Uns arranhões, a roupa suja ou rasgada e
 
 decidida tava a parada.
 
 Sangue mesmo jorrou uma vez em que numa brincadeira, ou numa reação à alguma
 
 caçoada, virei-me de costas em plena sala de aula e pretendendo fingir apenas que
 
 reagia e o esmurrava, acertei-lhe o nariz que jorrou feito um chafariz. A mestra que
 
 adentrava o recinto, dona Zinha, não minto, passou-me uma senhora descompostura
 
 e me hizo limpiar, com um pano de chão toda aquella basura. Edinho não chorou nem
 
 revidou. Vai ver que com pena de mim ficou. Mas não se pronunciou. E o incidente,
 
 passou.
 
 Continuamos a andar juntos e já mais para adiante, no terceiro ou quarto ano, com
 
 sua família progredindo, já não lhe faltavam alguns cobres para uma merenda. E na
 
 nossa volta da escola, que passara a ser matinal, já esfaimados de tanta sopa de letra,
 
 passou a ser quase ritual sua passagem pela padaria de um Perdigão e comprar duas
 
 bolachas. Sem que eu lhe pedisse, ou tentasse esconder minha fome, partia uma delas
 
 ao meio e ma dava, como um ministro da eucaristia ministrava. E como era bem-vindo
 
 aquele naco, ainda que se dissolvesse na boca com rapidez tamanha à hóstia nada
 
 estranha.
 
 Mas essa nossa comunhão um dia chegou a um fim. Sem razão muito clara, a não ser
 
 uma peleja minha com seu irmão menor - e ainda mais brigão - o Sebastião.
 
 E já próximo da diplomação do quarto ano primário nos cindimos, muito embora as famílias
 
	continuassem a cordialidade costumeira. Seu Mário passou lá em casa para anunciar a 
	mudança iminente da família para  Belorizonte, após `o deproma` do Edson. 
	E se foram. Quando o Edinho voltou à cidade natal, uns meses depois, éramos
 
 estranhos um ao outro, apesar de brincarmos com a mesma turma. Mas estive quase
 
 tomando a iniciativa de dizer que, mesmo estranhas, achava simpáticas aquelas suas
 
 meias azul-claras.
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