Durante o lauto repasto, entrevistei a exímia cozinheira responsável pelo festival de pecaminosas guloseimas, fabricadas à base de frutas muito frescas, colhidas ‘in situ”, vez que ‘in locu”: manga, mamão e goiaba. Como eu não mais, também ela ambiciona estudar História no futuro próximo. Enquanto a aurora deste dia não lhe chega, dedica-se ela a devorar – com casca e tudo – tudo, tudo que suas mãos alcançam sobre tal ciência.
E não foram só os doces - que provei e aprovei! Não poderia deixar de citar, também, o afrodisíaco frango assado e as panquecas de ricota – coloridas de espinafre e regadas ao molho de gorgonzola e passas. Capazes, portanto, de satisfazer os mais requintados paladares, como o dela. O meu entra aí porque, verdade seja dita, gordo psicológico ainda sou “a nível de DNA”.
Explico: a minha cabeça ainda está mais para “gourmand” do que para “gourmet”, conforme testemunham os 13 ou 31 quilos – a menos ou a mais - que já carreguei neste corpaço de coroa saradão. Ou é a minha balança que não presta - perfeccionista, honesta, desatualizada politicamente e neurótica a mais não poder? Deve ser, deve ser!
Afinal, ninguém é de ferro. Eis, prumodiquê, se recomenda a interrupção de qualquer regime por um dia na semana! Essa douta prescrição, eu a levo a sério – e caio na esparrela! Seis dias por semana de regime severo que são desbaratados – impiedosamente, posto que num domingo só - por uma simples macarronada à italiana.
Senão, vejamos: de um dia (digamos, uma segunda-feira) para outro, terei, fácil, engordado um quilo. De acordo com a rigorosa e precisa equação matemática que bolei, para que o peso médio da semana corrente se reduza em meio quilo, terei de emagrecer 3,6 quilos até o domingo que a encerra.
Inviável, claro. Mas, o que sobra? Qual Sísifo, renovar o esforço e ter paciência – a de de Jó, o Magro (e não do Jô, o Gordo), que, malgrado a sua fama de estóico (em que deitou e rolou), reclamou à beça contra as injustiças a que fora exposto pelo Demo (não o Pedro!).
Em meio a este “rebu” para ninguém botar defeito, Toninho, meu neto, exigiu história mais que nova, isto é, que fosse inédita. Uma história qualquer estava fora de cogitação. Consegui conciliar – ou ludibriá-lo? –, oferecendo-lhe relatos poucas vezes dantes ousados. Primeiro, foi a história de João Preguiça, de que não gosto. O protagonista mais parece um deficiente mental que outra coisa. Ainda bem que tem bom coração – o que o salva dos suores infernais!
A segunda história é brasileira – “Por que o mar tanto chora” -, que colhi numa famosíssima praia de Sergipe, onde, claro, jamais me aventuraria a vir, careta de marca maior que sou. Possui ela lirismo na dose certa e chama a atenção para o sentimento da gratidão. Além disso, é meio delirante, o que contribui para excitar os meus cansados, porque insones, neurônios.
Findo o almoço, emborquei no sofá, enquanto Tatiana, minha filha, se esborrachava no chão, em cima do tapete. Pois, depois, digo, assim que consegui abrir, lateralmente, o meu terceiro olho – o da sabedoria, que sempre me foi escassa -, pus-me a provocar, descaradamente, a imaginação do meu famoso e querido neto.
“Toninho, você gostaria de morar no fundo do mar?”
Acorrentado à concretude da realidade, ele recusou: “Ninguém mora lá!”
Retruquei: “Tem gente que mora, sim. Lembra-se de Urashima, o pescador japonês, que morou em Ryu Kyu, no palácio do rei dragão?”
Quase que de imediato, lembrou-se ele da história: “Sim, mas o bom pescador foi logo embora”.
“É verdade”, concordei - cordato etimológico que me tornei. “Mas a princesa dragão, namorada dele, continuou morando lá”.
“Como as pessoas fazem para comer, nesse caso?”
“Fácil”, expliquei. “Fritam os peixes que estão por toda a parte. E para beber água, basta abrirem a boca.”
Desperto e esperto, ele “tirou o ponto”, como antigamente, e me argüiu: “Mas entra água pelas janelas, não é !?”
Respondi: “Não, se você fechá-las todas e também as portas.”
E continuei, provocativo: “E em cima das nuvens, você viveria lá?”
“E, e, e” – gago que “fui, fui’ - fui logo expliquando-lhe as dúbias vantagens da minha proposta: “A paisagem lá de cima é muito bonita, verde, ecologia pura!”
Será que ele se convenceu? Não muito, acredito. Mas acredito também que sair um pouco, vez por outra, da realidade, faz bem a qualquer Homo Sapiens, ainda que não necessariamente a todos os hominídeos. Daí que baixou no hipocampo do meu pobre cocoruto a idéia de iniciar a escrita, no próximo dia-de-são-nuca, de uma espécie de rosário de estórias de Sheherazade – um impacto, talvez, do exercício de criatividade em que fui reprovado na aula de teatro do dia anterior.
Fiquei surpreso – e contente – notando a Aninha, minha neta, chamar-me de vovô. Estava vestida de forma engraçada, quase toda de vermelho, com alguns estampados de florzinhas. Depois do almoço, mascou e deglutiu, furiosamente, um bombom inteiro de chocolate. Toninho – o mais grego dos dois irmãos – limitou-se a mastigar, sem engolir, um pedaço pequeno e, criança que é, pôs-se a brincar com o restante.
E assim se foi – para nunca mais voltar – a agradável cena familiar do quadro holandês que acabei de pintar. Por 400 paus, vendo-a ao primeiro incauto que surgir à janela do meu quarto, que, por dever de ofício, esclareço que fica no vigésimo andar de um prédio situado em plena avenida W3-Sul, em Brasília, DF.
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