Enquanto aguardava o convite – que, de tanto tardar, afinal nunca me chegou - para substituir o Lula na Presidência da República, dispus-me, na contramão da minha inacreditável agenda cheia de aposentado, a sair do meu palácio mesopotâmico para entregar um prato, soi-disant “pirex”, a uma cozinheira de escol, cuja central de operações descobri que ficava na Asa Sul.
Empenhava-se ela, então, em preparar uns quitutes para o almoço de aniversário do meu filho El Rafa. O problema é que lá surgi com a mente muito alerta, isto é, com vários dos meus parcos, porque poucos, neurônios ainda acesos, devido a um 100 % improvável embate lúdico-espiritual que abalou um dos cartórios da cidade.
A localização do prédio é excepcional para quem trabalha no centro do Cerrado. Nada em sua aparência exterior o destacava, porém. E por que deveria? Àquela hora, final de tarde, foi fácil encontrar estacionamento em que coubesse o meu carrinho de então, que, aliás, está mais é para carrão, em matéria de consumo de combustível nos tempos ecológicos de agora.
Por alguma razão, a porta do elevador já estava aberta (me esperando) quando lá aportei antes de nele embarcar e, por isso, claro, não vacilei em adentrá-lo. À porta (quanta porta nesse prédio, meu Deus, parece mais um labirinto cretense!) do apartamento recebeu-me uma “senhôra”, cuja idade esqueci - cavalheiro que me tornei depois de treino assíduo durante todo o meu primeiro centenário de vida.
Moderadamente sorridente, “comme il faut”, foi-me permitido, pela segunda fez, adentrar o recinto (do apartamento, esclareço por questão de moralidade pública e privada), sem que os seus proprietários receassem um assaltozinho que fosse – esta, uma das raríssimas vantagens que obtenho por pintar meus cabelos de cor branca com freqüência hebdomadária.
Aqui, uma, e só uma, dúvida anglo-excruciante – para Shakespeare, não para mim: seria ela, a cozinheira, era a dona Tal? A respota que aparei foi um taxativo “não!” (chamava-se Qual), mas permitiu-me entrar assim mesmo, isto é, desde que me comportasse. Obedeci-lhe.
Segunda dúvida dilaceirante: por que deveria eu entrar; se apenas viera trazer-lhe o “pirex”? A razão é que, relembro ontem, pareceu-lhe que o tamanho do recipiente que eu lhe trouxera era maior do que o matematicamente necessário e suficiente.
Não resisti e lasquei: “Quod abundat non nocet!” (Em minha defesa, devo argüir ter passado ao largo de mim qualquer veleidade de escandalizá-la com citações latinas de sonoridade e conotação dúbias.)
Esperta, quis logo conhecer o autor da sentença. “Napoleão Bonaparte”, respondi, rápido como um cágado e sem pestanejar:
“Como a senhora talvez ignore, ele “era assim” com o almirante inglês Nelson Gomes, vitorioso na famosa batalha de Trafalgar (assim denominada em homenagem a Trafalgar Square - parquezinho de Londres onde ele, o próprio, costumava brincar de escorrega quando adolescente travesso), que, justo por brincadeira, não vexou-se em ordenar o empalamento de todos os prisioneiros franceses.
A começar pelo próprio Napoleão, com o fito de puni-lo por sua imprópria conduta no passado mais que pretérito. Este, nada solidário com a tropa, teria então protestado - altissonante, aos berros - uma expressão chula, que omito por exagerado pundonor.
Não sei o que pensou disso – se é que pensou algo! - a distinta cozinheira. Mas a realidade é que ela não “deu bandeira”. Em nada alterou o seu enigmático sorriso diplomático-comercial – a um só tempo Giocondês e não menos Búdico (ainda que me parecesse mais Mahayana que Hinayana) e conduziu-me, sem mais delongas, à porta.
Que eu retornasse no dia seguinte para receber a torta, que, com certeza, estaria, na porta, à minha espera. Oh, God, mais torta às portas da minha entortada vida!
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