Sábado era dia de feira naquela cidadezinha do interior, esquecida no tempo. Há muitas cidades mortas, como essa, espalhadas pelo vasto sertão deste país, cuja vida rotineira, comum e modorrenta, arredonda a barriga e estreita o cérebro. Aquele sábado não seria diferente, pensou o delegado, assistindo o nascer do sol, como sempre fazia, da varanda de sua casa, comendo o seu inhame com carne de sol e ovo estrelado, como fazia desde que o mundo começou. Satisfeito, espreguiçou-se, apanhou o chapéu de couro, passou um pano nas botas enlameadas e partiu para a delegacia a dez passos da sua casa. Não havia presos, como sempre. Tirante um capiau, que de vez em quando abusava da caninha, ningúem cometia infrações nesta cidade; crimes, então! o último fora um assassinato em 1926, quando um paraiba, arranchado por lá, passou na peixeira um cabra-da-peste, que fugiu com sua mulher. É, seria um dia tranquilo. Os tabareús chegariam dos arredores, trazendo seus "trens"para vender: burros, cavalos, hortaliças, carne fresca, farinha de copioba, feijão, jabá e as donas de casa alvoraçadas, corriam para a praça onde a feira se desdobrava em mil barracas para atender a freguesia.
- ...aqui, iaiá, a mió farinha desta feira.
- olha os imbú, madame, prá doce e umbuzada.
- sene, prá fazê chá, pro mode curar dor de barriga.
- espinho cheiroso, pros problema das muié.
- pau da resposta, pra impotença, expromenta ioiô.
O delegado passeou pela feira, viu que estava tudo nos conforme, cumprimentou conhecidos, parou um pouco para ouvir o cego Anacleto, tocar sanfona e com ar e pose de "otoridade", voltou prá delegacia. Por volta do meio dia veio a noticia. Um cara tinha atirado num desafeto, no meio da feira; foi uma tolice, um queria ter um burro melhor que o outro, a discussão esquentou e lá vai bala. O cara morto estendido no chão, o corre-corre, mulheres gritando, o delegado chegou com um praça, mas, o matador já tinha desaparecido, aproveitando a confusão. De volta á delegacia, chamou o escrivão e mandou lavrar o auto: "Ao meio-dia, um desconhecido que se evadiu, matou a tiros de garrucha... e, aí começou a encrenca, com a pergunta do escrivão:
-Dotô, garrucha se escreve com dois rê ou com um só?
O delegado, que de "dotô" só tinha a pose, pois, nem tinha completado o primário, coçou a cabeça, engoliu em seco, sem saber o que responder; mas, não podia perder a moral com o escrivão, pensou, pensou e por fim, respondeu do alto da sua sabedoria:
- com dois RÊ, menino, a garrucha não tinha dois cano?