Nisto, Crisóstomo apareceu sozinho, deixando a porta aberta.
— Deodoro, meu amigo, venha comigo para orarmos com a congregação. Eu sei que tudo pode estar parecendo muito pouco familiar para o companheiro, mas acredito que você, perdão, que Vossa Reverência irá acostumar-se com os nossos hábitos dentro de muito pouco tempo.
Ato contínuo, sem esperar qualquer manifestação de Deodoro, o cardeal pegou-o pelo braço e puxou-o muito mais do que lhe deu amparo. O velhinho trançou uma perna na outra e foi ao chão.
— Santo Deus, amigo, deixe de ser patético! Se você não tem coragem para enfrentar simples caminhada até o local das preces, como é que pretende chegar ao Paraíso? Força, homem, que eu não tenho tempo a perder, porque os cantos não se iniciam sem mim.
Crisóstomo abaixou-se, pegou Deodoro pelas costas, passando os braços sob as axilas do outro e levantou-o facilmente.
— Você está muito leve. Não tem se alimentado direito nos últimos tempos. Que é que davam para você no hospital?
Deodoro não alcançava seguir os pensamentos que se cruzavam, através das diferentes referências. Enquanto o outro lhe enfiava a batina, tentou dizer que não estivera em nenhum hospital, que passara os últimos cinco anos no convento, mas achou inútil, porque a Eminência deveria saber muito bem sobre o que falava.
— Vamos lá! Ontem você chegou carregado. Quer que eu chame uns noviços?
Sem esperar resposta, como se estivessem ocultos em nuvem de camuflagem, surgiram dois irmãos menores, vestidos de marrom, com os cabelos tosados formando uma coroa em torno da cabeça.
— Vamos levar Vossa Reverência conosco. Agüente firme que nós é que vamos arcar com o peso.
— Ele está muito leve, informou o cardeal. Vocês não vão esfalfar-se.
De fato, Deodoro de repente se viu sentado sobre os braços dos dois jovens, que formaram uma espécie de cadeira em que ele se acomodou, segurando-os pelos pescoços. Ao passar pela porta, raspou a cabeça na moldura, quase acidentando-se. Enquanto ia sendo levado, observava os corredores escuros, com janelas redondas e vitrais coloridos enegrecidos pela fuligem.
Enquanto caminhavam, os dois que o carregavam iam cantando em latim uma ladainha, repetindo sempre três únicos nomes de santos, no “ora pro nobis” obrigatório.
Pareceu a Deodoro que a caminhada não tinha fim. Levaram um tempo enorme para percorrer os meandros intermináveis. Houve um momento em que supôs que andavam em círculos, tão parecidas eram as paredes e as janelas. O chão era de terra batida e levantava uma película escura, ao ser varrido pela batina de Crisóstomo que ia adiante.
Ao dobrar mais uma vez para a direita, começou a ouvir vozes abafadas de uma multidão impaciente. Os ruídos foram crescendo até que, finalmente, entraram os quatro num recinto bastante amplo, onde se acotovelavam padres, noviços, frades de todas as ordens, do lado direito, e freiras, madres, irmãs, enfermeiras, vestidas de todo jeito, do lado esquerdo. Como eles chegaram pela porta principal e o altar se erguia no fundo, foi preciso abrir caminho à força. O cardeal portava um báculo que utilizava como um bastão, afastando os que não lhe percebiam a aproximação. Mas Deodoro não ouviu nenhum protesto. Antes, quem sofria o impacto do golpe, agradecia reverentemente ao algoz, com expressões às quais Deodoro não estava afeito:
— Deus lhe pague, Irmão Superior, pela lição que as minhas costas receberam!
— O galo de minha cabeça haverá de cantar hosanas em louvor ao meu benfeitor, que me dá a chance de aceitar os sacrifícios em nome de Jesus!
Ao chegar mais perto do santuário, Deodoro pôde ver que as autoridades eclesiásticas estavam sentadas ao longo das paredes na nave secundária, portando vestes marrons, pretas e vermelhas, com as mitras enfeitadas em fios dourados e prateados. Os que se situavam mais próximos da ara dos sacrifícios espirituais se distinguiam pelos barretes mais ornamentados e mais altos.
Naquele ponto, Deodoro foi largado pelos noviços, sem que Crisóstomo tivesse tido a preocupação de se voltar para ver se estava acomodado.
Mas houve quem se espremesse no longo banco para ceder lugar ao Monsenhor:
— Fique aqui comigo, Reverência, que a solenidade é de ação de graças pela chegada de cinco companheiros, entre os quais o irmão com quem tenho a honra de tratar.
— Muito obrigado, Monsenhor...
— Aprígio, Excelência.
Mas os dois não tiveram tempo de entabular conversação. Do fundo, vieram os sons de uma espécie de gaita de fole desafinada, com que se dava início aos cantos de louvor a Deus. A assembléia toda se levantou, os maiorais tiraram os barretes, exibindo solidéus vermelhos no alto do cocuruto, e o coro elevou-se acima das colunas, atravessando a abóbada em vibração de grande potência, como se a comunidade quisesse demonstrar solidamente que estava preparada para as bênçãos que requeria.
Um cutucão do gentil colega ao lado lembrou a Deodoro que deveria cantar o hino, para o que lhe passava um libreto aberto na página em que se lia a letra e onde se desenharam os símbolos musicais.
Deodoro ajeitou os óculos e se esforçou para entender o que estava escrito, entretanto, antes que atinasse com o ponto em que deveria entrar, o canto cessou e a multidão silenciou. Silenciou em parte, é verdade, porque muitos tossiam, espirravam e se ouviam mesmo murmúrios de lamentações e preces isoladas, de quem não obedecia ao sentimento geral.
Assomou o púlpito lateral imponente figura totalmente de branco. Deodoro levou um susto:
O Papa! Sua Santidade em pessoa!
Tentou reconhecer qual dos últimos pontífices de Roma é que se postava para a pregação.
Não me lembra a fisionomia de Sua Santidade nenhum dos últimos herdeiros do trono de São Pedro. Será...
Antes que supusesse se era um dos Pios, dos Inocêncios ou dos Leões, ouviu a advertência geral:
— Irmãos, consagramos o dia de hoje para a palavra do Senhor. Vamos lembrar o que São João escreveu, no capítulo XIV, versículos de um a três de seu Evangelho: “Que seu coração não se inquiete jamais. — Vocês crêem em Deus.; creiam também em mim. — Existem muitas moradas na casa de meu Pai.; se isso não ocorresse, eu já lhes teria dito, pois eu vou para preparar o lugar.; — e, depois que eu tiver ido e lhes tiver preparado o lugar, eu voltarei e os levarei comigo, a fim de que lá onde eu estiver, vocês estejam também.” Quando Jesus nos prometia, lá na Terra, que Deus reservava muitas moradas para seus fiéis adoradores, certamente estava se referindo a locais de grande felicidade.; não a este antro em que agora convivemos.
O povo olhava assombrado para o atrevimento do sacerdote, mas ninguém ousou contestar, como que na expectativa de um torneio inteligente que levasse a conclusões morais de superior entendimento evangélico.
Prosseguia o orador:
— Se o vosso coração se turbar com as minhas palavras, como haverá de ficar, se vós duvidardes de que Jesus nos falava a verdade? Eu sei que muitos de vós estais com os corações apertados, antevendo o momento em que devereis buscar os confessionários para contar os vossos pecados, a vossa ganância de justiça, porque sempre afirmais que tudo fizestes para honra e glória do Pai, do Filho e do Espírito Santo, cumprindo os mandamentos do Decálogo de Moisés e das Leis da Santa Madre Igreja. Mas é preciso confirmar os sentimentos que vos levaram aos votos sagrados, tantas vezes rompidos pela vossa ignorância, porque desejáveis o conforto material, a boa vida das dioceses, o repasto da comadrice das religiosas, o bom tecido das vestes sacerdotais, o luxo das festas, para a atração dos mais abonados, para as oferendas da riqueza, para o regalo da carne. Agora estais entristecidos, dizendo-vos esquecidos do Pai, que vos impede de adentrar a Terra da Promissão Celestial, como Moisés foi impedido de pisar o solo sagrado de Canaã. Por certo, esperáveis ser recebidos pelos coros dos Serafins, sob os acordes das harpas dos Querubins, enquanto os Anjos e Arcanjos trombeteavam em homenagem às vossas indiscutíveis virtudes. Bendito seja Deus, irmãos!
O orador conclamava a assembléia a repetir a bênção e o povo não se fez de rogado:
— Bendito seja o Criador do Céu e da Terra. Bendito seja o Criador desta Região Purificadora. Bendito seja o Criador da Vida no Além.
— Bendito seja o Criador por permitir que a nossa colônia subsista em paz, quando tantas almas penadas erram pelas sombras, amaldiçoadas e amaldiçoando quem se resguarda do ódio, atrás destas muralhas de sabedoria e de verdade. Bendito seja o Criador por conduzir a nós mais cinco irmãos devotados à Religião, para nos ajudarem a compreender os seus desígnios. Peço aos cinco que se levantem, para que todos possam conhecê-los.
Deodoro não estava afeito a tão violenta manifestação eclesiástica, estranhando sobremodo que se desrespeitasse o ambiente sagrado em que, com certeza, Deus assistia, porque se lembrava claramente da passagem em que Jesus prometera: “Em qualquer lugar em que se encontrem duas ou três pessoas reunidas em meu nome, eu aí me encontro no meio delas.” (São Mateus, XVIII: 20.)
Mas não houve jeito. Precisou erguer-se, ajudado pelo Aprígio e pelos dois da tonsura. Inexplicavelmente, a multidão fez absoluto silêncio, todos voltados para a observação dos recém-chegados. Deodoro buscou ver os outros quatro mas o seu raio de visão não alcançava nenhum deles, de modo que ficou restrito a ser o centro das atenções, pelo menos no que concernia ao círculo dos graduados.
O orador prosseguiu:
— Esperamos que os amigos, dentre os quais um digno Monsenhor, Reverendo Deodoro, que permaneceu na Terra até a idade dos noventa e sete, venham a ajudar-nos a melhorar o nosso desempenho evangélico, para lograrmos a salvação.
Fez um gesto para os cinco se sentassem e passou a relatar os fatos do dia anterior:
— Os mensageiros da Terra vieram com novidades. As Nações Unidas aprovaram o envio de tropas norte-americanas para o Vietnã, de sorte que teremos mais uma guerra, bem diferente das que chamávamos de santas, quando foi ameaçada a Pátria do Senhor pelos infiéis. Muitos daqui se recordam das Cruzadas, nossas gloriosas campanhas, onde deixaram as vidas e desde aquela época aguardam sua ascensão aos Céus, porque julgam que defenderam o berço do Filho de Deus, merecendo, portanto, entrar em sua Santíssima Glória.
Deodoro não conseguia concatenar a lógica das observações. Sempre rejeitara a violência, apesar de haver abençoado os pracinhas da cidade quando partiram para combater na Europa, sob a bandeira da Força Expedicionária Brasileira. Lembrava-se bem de haver aconselhado a um temeroso de morrer em combate que não desertasse, tanto que, depois, retornou honrado com algumas condecorações e medalhas, entre as quais a da Ordem do Mérito Militar, porque se distinguiu nas lutas.
É bem verdade que, no confessionário, me disse que sofria os remorsos de ter matado vários soldados inimigos, uma vez que, na infantaria, não tinha como deixar de defender a própria vida. Na artilharia, se esconderia nas sombras da camuflagem e da distância. Dei-lhe a absolvição, porque senti que se arrependera de fato...
Parou para meditar a respeito da atitude eclesiástica.
Todos os pecados são perdoados. O soldado matou e foi reconhecido pela Pátria como herói. Foram seus atos de coragem e de descortino, na defesa dos direitos da humanidade, que lhe deram o relevo social, porque os alemães dizimaram os judeus, utilizando o argumento de que foram eles que crucificaram Jesus. Será que o Cristo aceitaria a justificativa do emprego de seu sacratíssimo nome? Agora Sua Santidade está argumentando que os povos estão atravessando os oceanos para estabelecer a paz em zona dominada por povos de outra raça, de outro credo, de outra civilização. Quem voltar e for católico, vai pleitear a absolvição dos pecados. Que saberá o sacerdote da ira de quem ofendeu o semelhante, porque Jesus não fez nenhuma distinção entre os filhos do Pai? Mesmo ignorando o que se passou, vai dar o perdão em nome de Deus e solicitar que o outro se arrependa e que não volte a pecar. E se estourar outra guerra? Será que o soldado irá desertar, para não ofender a promessa que fez aos pés do representante de Deus na Terra? E se desertar e for executado, de que lhe valerão as medalhas anteriores?
Foi interrompido nas divagações pelo término da prédica. Sua Santidade desceu do estrado e dirigiu-se ao altar. Iria oficiar a missa. Tudo em latim, como nos bons tempos. Deodoro recordava-se de que lhe disseram no leito que os textos da consagração do pão e do vinho e das demais liturgias seriam transladados para o vernáculo. Ficou sabendo que houve quem se insurgisse (os padres de Holanda — passou-lhe pela mente), o que definia uma dupla postura perante o sacrossanto dever sacerdotal.
Pelo menos aqui preservaram o costume antigo. Mas, também, são estes que estão chegando agora que vão, se for o caso, postular as alterações que se verificaram na Terra.
Avaliou as reflexões muito próximas da ansiedade corpórea, como se estivesse estimulado ainda pelas ideologias da vida terrena.
Se Eustáquio estivesse presente (deveria ter mencionado Eufrásio), iria demonstrar-me que os valores nesta comunidade deveriam ser outros. Será que vou demorar muito tempo para entender que este mundo é superior àquele? Devo estar bem mais perto do Senhor, no entanto, ajo, ou melhor, raciocino como se encarnado estivesse.
Notou que empregara vários termos novos, decorrentes das explicações do antigo companheiro.
Se der ouvidos apenas ao que me diz Crisóstomo, irei ficar na penumbra das idéias que trouxe de lá, porque ele repete, ao que me pareceu, todas as fórmulas da igreja estabelecida, como posso observar neste ambiente meio selvagem, a considerar que todos estão ou pedindo por si mesmos, ou acusando os desvios de conduta dos demais.
Não pôde prosseguir nessa linha de pensamentos, porque sentiu que estava a emocionar-se.
Falo deles quando deveria falar de mim mesmo. Que foi que solicitei desde que cheguei a estas paragens? Esclarecimentos, atenção, auxílio. Mal-e-mal passou pela minha lembrança que deveria oficiar e ajudar aos que sofrem. Margarida, apesar de ranzinza, está muito mais próxima de merecer que Jesus venha buscá-la.
Pela primeira vez, aproveitando-se daquele momento de respeito da consagração do vinho e do pão, elevou o pensamento com notável antevisão do que lhe iria suceder em futuro próximo:
Senhor, fazei de mim um mero servidor dos meus semelhantes. Se o meu destino for ficar por várias eternidades neste ambiente, que eu seja capaz de reconhecer onde foi que falhamos todos nós, para rogar por vossa piedade e misericórdia, pela sabedoria e pelo amor, que nada nos haverá de faltar. Que eu venha a ser útil, é o que vos peço de todo coração. Para tanto, suplico-vos que me deis maior vigor físico, retemperando-me a determinação de sofrear os impulsos negativistas, a fim de enfrentar o trabalho que me cabe, porque sei que o vosso jugo é suave.
E repetiu de cor o texto evangélico, sem se esquecer de quem o escreveu e onde se encontrava:
“Venham a mim, vocês todos que estão aflitos e oprimidos, e eu os aliviarei. — Tomem meu jugo sobre vocês e aprendam comigo, porque eu sou pacífico e humilde de coração, e vocês acharão repouso para suas almas.; — pois meu jugo é suave e meu fardo é leve.” — como está em São Mateus, XI: 28-30.
Parou para refletir sobre a palavra almas:
Eis que até Jesus fala em almas referindo-se aos mortais. Mas esse descanso não virá depois da morte? Ou o descanso se dará durante a vida, pela mansuetude, pela paz que a certeza do amor do Pai dá a quantos tenham fé, tenham esperança e pratiquem a caridade, as três colunas mestras dos homens virtuosos.
O seu pensamento se desviaria para o étimo da palavra virtude, qual seja...
... que é próprio do “vir”, em latim, “varão” (“As armas e os barões assinalados...” — como cantou Camões em seu poema). Quer dizer que as mulheres estariam isentas da prática das virtudes decorrentes dos padrões masculinos. Afinal de contas, o mundo feminino é especial, tanto que até nesta região sem sexo, estão separadas dos homens...
Sentiu que transgredia os preceitos básicos do respeito ao ambiente sagrado do templo.
E eu que censurei os que desrespeitavam a presença prometida pelo Cristo! Agora fico desconcentrado no ato de religação dos homens com a Divindade, para pairar no insólito de meus pensamentos pueris.
Novamente se viu enredado pelo sentimento embutido no significado da palavra.
Vivi noventa e sete anos para me acusar de puerilidade? Bem afirmam os mais experientes que as pontas da vida se unem no final, tornando à infância aqueles que mais tempo permanecem...
Ia dizer vivos, encarnados, incorporados, mas acabou optando por embalsamados. Continuaria a meditar sobre a sua condição de inferioridade, quando foi despertado pelo “ite missa est” do celebrante, pondo um ponto final no culto da manhã.