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Erotico-->AS AVENTURAS DO PADRE DEODORO EM CAMPOS ETÉREOS — IV -- 21/07/2003 - 12:50 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Ao juntar o gesto às palavras, notou que se formaram naquele exato momento as suas mãos e os seus braços. Ficou abestalhado e se perdeu de novo nas reminiscências da infância, quando, bebê, nos braços carinhosos de sua mãe, ia tomando jeito para utilizar-se de seus membros. Estranhamente, perpassou os dias em que não dominava os movimentos dos dedos, sendo apenas capaz de agarrar, fechando a mão. Súbito, interrogou o amigo:

— Que raio de abraço eu lhe dei, se não tinha braço algum?

— Era sobre isso que falávamos.

— Eu me lembro que você me deve uma resposta a respeito de minha existência antes do nascimento. Mas permito que faça uma digressão a respeito dos fenômenos físicos. Devo dizer que muito me admirei de haver procurado os óculos sobre o criado-mudo e de não ter tocado em nada. Agora estou vendo que não me encontro no mesmo quarto, mas estou numa cama e aqui do meu lado existe um criado-mudo. Não existem óculos alguns, mas, antes, eu não consegui tocar em nada. Aliás, como não senti nenhuma pressão atmosférica, nenhum peso, nenhuma dor, não sofri com a desdita do vazio. Achei que era natural. Mas, vendo que existem móveis e que tenho mãos, será que sou capaz de sentir pelo tato a existência que meus olhos comprovam? Ou estarei iludido através da visão, como a gente pensa estar vendo coisas no deserto que são apenas miragens?

— Pois eu não lhe disse que aqui o que importa são as experiências? O nosso conhecimento parte sempre de uma atitude contingente, empírica. Sendo assim, permita-me sugerir-lhe que estenda o braço e que toque onde quiser, ao seu alcance, e depois me traduza a sensação.

Deodoro quis apalpar o espaldar da cama que se fechava sobre ele, gracioso dossel em que só agora punha reparo. Era um luxo de rendas, no cortinado que estava suspenso, preso por fivelas douradas. Alçou as mãos e pegou as franjas pendentes, acariciando-as longamente.

— Mas este tecido tem a textura igualzinha dos da Terra. Nenhuma diferença no contato da epiderme. Será que a madeira da mesa-de-cabeceira também vai me causar o mesmo frêmito de alegria?

Estendeu a mão e verificou que não alcançava o móvel. Precisou locomover-se no leito. Foi então que se percebeu preso ao colchão, impossibilitado de se deslocar. Mas a sensação de inutilidade durou alguns segundos, até constatar que precisava impulsionar o tronco com as pernas.

— Quer dizer que estou reinventando o meu próprio corpo?

— Não se admire, porque, aos poucos, você verá crescer-lhe a musculação torácica e abdominal, para poder sentir-se como se possuísse um corpo igual ou muito próximo daquele que tinha quando vivo. Você morreu de velhice. Noventa e sete anos de idade. Exauriu todos os recursos biológicos. Se estivesse preparado para enfronhar-se neste plano, através da aceitação de como as coisas realmente são, não teria sofrido a pequena angústia de ver-se completamente inoperante. A bem da verdade, devo dizer que são muito raros os sacerdotes que aqui aportam dominando um corpo perispirítico, porque não se deixaram iludir pelos coros de anjos que deveriam conduzir os recém-chegados diretamente ao Paraíso.

Eufrásio falava pausadamente, dando tempo a que o amigo se inteirasse das novidades que ia descrevendo, sabendo que muito mais interesse demonstrava na formação da figura ou da imagem com que iria se apresentar na sociedade etérea.

— Eufrásio, quer dizer que estou refazendo o meu corpo, segundo o padrão ou o formato daquele que deixei aos vermes? Se eu quiser modificar, eu posso?

— Perfeitamente, mas para isso haverá de dominar uma técnica que só se adquire através do estudo, do exame ou da compreensão de quem a gente é, em função da realidade existencial a que pertencemos. Enquanto você, renitentemente, contesta as minhas informações, irá postergando as facilidades de impregnação fluídico-energéticas que só intensivo treinamento e muito exercício lhe facultarão.

Enquanto conversavam, Deodoro conseguiu erguer o dorso e aproximar-se da mesinha ao lado da cama. Com os dedos trementes, tamborilou sobre a superfície plana, causando o mesmo som que provocaria se encarnado estivesse. Em riso franco misturado a lágrimas de muita alegria, tocou um rataplã militar, conforme fazia quando tomava as refeições sozinho, com o breviário aberto.

Eufrásio respeitou-lhe a descoberta, como se estivesse vendo uma criancinha a executar a sua primeira harmonia.

Passada a fase das emoções à flor da pele, Deodoro voltou a questionar os fatos em que se via envolvido:

— Diga-me lá, meu bom Eufrásio, em vida, bem no finzinho, as pessoas me olhavam de soslaio, como se eu estivesse demorando muito para morrer. Não me respeitavam os trabalhos nem os estudos e não vinham colher conselho algum, como se me constituísse em mera carta fora do baralho. Você saberia dar uma sábia explicação para o fato?

— O que leio em seu espectro energético é o seu interesse em saber se irá ser bem recebido deste outro lado, se irá ter as mesmas mordomias do tempo em que era dono de uma paróquia muito rica, quando nadava em dinheiro e possuía tudo do bom e do melhor, em vida regalada. Estou certo?

Pego meio de surpresa, acostumado a expender raciocínios mais complexos quando instado a proclamar alguma falha sua, Deodoro procurou não ser surpreendido:

— Eu tenho para mim que as coisas devem vir em partes, como é natural que ocorram com as pessoas que se querem bem. Se eu lhe peço pão...

— Sem sermões, por favor. A minha pergunta é simples: estou certo em avaliar a sua questão, não como um tópico do passado, mas como um item do futuro?

— Em outros tempos, você não me provocava as reações desagradáveis. Contornava os assuntos e vinha com outras observações, para não me ferir os brios. Por que mudou?

— Quem não mudou foi você, que continua a buscar uma saída, já que se viu encalacrado, embora em tema de nenhuma importância.

— É verdade. Reconhecer que estava interessado em manter a minha condição de dirigente espiritual junto à comunidade a que você se referiu tem muito com o fato de eu ter vivido noventa e tantos em absoluta atividade física e intelectual.

— Agora, sim, posso responder...

— Não precisa mais. Seja como for, terei de aprender a agir de acordo com as novidades que se apresentarem no momento oportuno. Não é isso mesmo?

— Até parece que você conseguiu ler em minhas emanações fluídicas.

— Não li mas estou embasbacado com a facilidade como você está expondo a minha alma para mim mesmo. Então, é certo que a verdade está acima de tudo nesta região?

— Pode dizer esfera, círculo, plano, que não correrá o risco de ofender aos seus princípios religiosos.

— Pelo que pude entender de suas afirmações, não tenho como argumentar, porque você colocou um ponto final nas especulações, quando disse que aqui se parte da realidade concreta para as deduções filosóficas.

— Não foi bem isso que eu disse. Na verdade, eu me referi ao fato de que a interpretação desta dimensão existencial (eis outra expressão conveniente) não deve ser feita a partir dos conhecimentos hauridos na carne, que é como nós costumamos referir-nos às conclusões fundamentadas nos raciocínios ditos lógicos, a partir da configuração terrena. Se você está recordado de Platão, do mito da caverna, ele expôs, com muita inspiração, que o mundo apenas refletia a existência espiritual, onde a perfeição...

— Nem precisa ir mais longe. Se estou habituado aos vultos e às sombras, devo caminhar agora em direção da luz.

— Muito bem colocado, querido sacerdote.

— Por que você faz questão de me chamar assim, quando, ao mesmo tempo, vai colocando pedras de tropeço em meu caminho, escandalizando-me a cada momento, obrigando-me a reconhecer as falhas de interpretação dos textos sagrados, porque eu não acredito que as inverdades estejam neles presentes, senão que eu é que não fui sagaz o suficiente para entender o que dizem.

— Vamos deixar a exegese bíblica para um momento mais avançado de suas pesquisas do etéreo (outro termo para o local onde estamos). Por enquanto, pretendo levá-lo a entender que deve esquecer o prisma de análise fundamentado nas premissas de céu, de inferno e de purgatório, com as conseqüentes entidades que as religiões aí localizaram. Existem, para confortá-lo, moradas (mais um nome para estas paragens) que os espíritos (fugindo do vocábulo seres), unidos pela proximidade vibratória, quer dizer, semelhantes em adiantamento, freqüentam, podendo estar mais próximos do que você chamaria de inferno, se são sofredores, inferiores (eis aí o termo), infelizes, malévolos, vingativos, raivosos, permanecendo com os mesmos impulsos malfazejos que trouxeram de vidas absolutamente agressivas em relação aos dispositivos cristãos. Se os espíritos são mais evoluídos, não merecem sofrer, porque compreendem as virtudes e buscam tudo fazer em função de amenizar as dores alheias, aliviando-se do sentimento de culpa pelo trabalho e pelo estudo, realizando os mandamentos do amor ao Pai e ao próximo, exercendo o direito de perdoar para serem perdoados. Esses existem em moradas amenas, que construíram por esforço próprio, segundo sua capacidade de sacrifício, conforme nos foi apregoado nas aulas de moral. Você está lembrado?

— Você já explicou a razão das nomenclaturas, mas devo insistir em que muito do que você está dizendo está bem próximo das teses da Santa Madre Igreja.

— Sem dúvida nenhuma. Eu não questionarei jamais os pontos sagrados estabelecidos pelos ensinos de Jesus. Nem aqui os mestres nos ministram conhecimentos nesse setor que não estejam embasados nas anotações dos evangelistas, embora, como frisei há pouco, haja o que discutir a respeito. Mas são tópicos menos importantes, questões periféricas. O essencial se mantém rigorosamente: não façais aos outros o que não quereríeis que vos fizessem.

Neste momento, Deodoro fez um esforço para sentar-se no leito. Com a ajuda de Eufrásio, conseguiu. Aí volveu a preocupar-se consigo mesmo:

— Será que minha aparência está se recuperando, conforme estou notando no seu aparato... como é mesmo o termo?

— Perispirítico ou perispiritual. Posso responder, mostrando-lhe a sua imagem no espelho. Não era isso que você queria?

— Preciso aprender a dizer exatamente o que desejo, senão vou passar por...

— Não se utilize das palavras de caráter negativo. Neste setor da espiritualidade, sói acontecer muito freqüentemente que os pensamentos se cristalizam, por força de que os fluidos são trabalhados e os objetos confeccionados pela energia que se concentra nos indivíduos. Quem não domina esse poder quase sempre constrói anomalias de imagem, segundo a malformação de seu intelecto e o vezo de dar vazão aos maus sentimentos. Anote estes dizeres como a minha primeira lição prática. Eis que estou dizendo-lhe que este fato é importantíssimo e, através dele, muito irá explicar-se em suas reflexões. De qualquer modo, você está resguardado nesta instituição hospitalar, em torno da qual se postam muitos equipamentos de defesa...

— Sei que você está bem intencionado. Mas não acumule conhecimentos. Mostre-me a minha imagem refletida, simplesmente. Agora chegou a minha vez de dizer que você está fugindo do tema.

— Antes, devo advertir para um fato característico, isto é, você poderá estranhar a sua figura, porque o seu reflexo não será exatamente o mesmo que você se acostumou a ver nos espelhos. Agora você vai deparar-se com a sua imagem real, qual se fora o resultado de uma fotografia.

— Deixa ver se entendi: quando olhava para a minha imagem refletida, o lado direito estava à esquerda e vice-versa. Do jeito que vou ficar, cada lado estará do mesmo modo como você está me vendo.

— Exatamente. Outro ponto que precisa considerar é a sua expectativa. Estou percebendo que não gostaria de ver-se do jeito que foi enterrado, ou seja, com o rosto macilento, a pele flácida, os olhos sem brilho. Sua figura, de modo algum, será a de um defunto, mas também não espere aparentar menos do que noventa anos.

— Dou-me por esclarecido.

Eufrásio concentrou-se por instantes e fez aparecer um quadro grande, o que pareceu mágico para o companheiro, mas a surpresa da realização insólita cedeu à vista da pessoa que se punha diante do interno. Era o retrato em cores vivas de alguém que se movimentava dentro de um jardim, com dificuldade, apoiado num braço amigo. Deodoro imaginava-se andando pelas alamedas e via-se pelas costas. Desejava descobrir a fisionomia e a figura se voltava para ele, aproximando-se, de forma a expor apenas o busto. Pôde observar que os cabelos estavam mais cheios, os sulcos da pele menos profundos, os olhos menos cavados e a cor da tez menos esquálida. Não era alguém que pudesse agradá-lo, porque se queria pronto para ingressar nos Campos do Senhor. Mas também não estava tão depauperado, tão esquelético ou escaveirado como nos últimos tempos de vida. De repente, desapareceram a representação visual e a própria tela.

Demorou para Deodoro recuperar-se dos estímulos visuais. Enfim, curiosamente, quis saber:

— Já que devo sempre dizer aquilo que estou pensando, quero que você me diga se terei oportunidade de recuperar meu aspecto mais sadio, digamos, dos oitenta ou dos setenta anos.

— Qualquer destes dias, você irá contemplar-se no vigor dos seus quarenta anos, se for essa a idade limite a que está aspirando.

Deodoro não foi capaz de sofrear algumas lágrimas. Mas não disse nada a respeito das emoções que o desequilibravam. Apenas queria fazer valer o direito de conservar alguma área da consciência que ficasse resguardada da acuidade interpretativa do parceiro. Queria manter algo de sua intimidade, porque estava sentindo-se vasculhado, descoberto e exposto à crítica. Lembrava-se das confissões que dera e das que ouvira e julgava que apenas Deus deveria conhecer os refolhos mais sutis das almas.

Passado algum tempo, notou que o ambiente estava totalmente silencioso. Nem aquele chiado natural de seu ouvido era capaz de sentir. Da mesma forma que nenhuma sensação desagradável lhe vinha de nenhuma articulação dolorida, assim também o ambiente lhe parecia isolado do mundo exterior. Pensou em ouvir a própria respiração, porque houve um momento em que pareceu ofegante, mas nada percebeu. No entanto, molhara a manga da camisola com as lágrimas. Aí é que lhe ocorreu que algo muito estranho estaria acontecendo:

— Eufrásio, como é que, sem ar nenhum na atmosfera, nós pronunciamos tão audivelmente as palavras, como se o aparelho fonador estivesse habituado a esta natureza? Por outra, como é que a vida aqui se mantém sem oxigênio? E como é que o som se transporta em ondas, para ser captado pelos seus ouvidos, porque estou vendo que orelhas você tem, como também que as minhas estavam refletidas perfeitamente, grandes, como desde há algum tempo vinha acontecendo, como você diz, na carne?

— Em geral, os que desencarnam em sofrimento, porque abusaram do livre-arbítrio na prática de maldades, quando descobrem a ausência do ar, ficam sufocados, como peixes fora da água. Se você está apenas curioso, é um belo sinal de que está se adaptando rapidamente. Na verdade, o mistério se resolve de modo muito simples, ou seja, do entendimento de que é através do pensamento que nos relacionamos.

— Espere aí! E como se explica que todo o meu aparato lingüístico está sendo exercitado, palavra a palavra, frase a frase. Eu tenho a exata sensação de que estou falando, tanto que meus lábios, a minha língua, o meu palato, as minhas cordas vocais e os meus pulmões estão em plena atividade. Não distingo nenhuma diferença entre esta maneira de manifestar-me da que possuía na Terra. Digo mais, agora que estou entusiasmando-me com a facilidade desta minha alocução, sinto-me como nos melhores momentos no púlpito, durante os sermões em que pregava a resignação, a fé, a confiança na divina misericórdia, o poder de intervenção da Santíssima Virgem Maria, a benevolência de Jesus para com os seus carrascos, solicitando ao Pai que os perdoasse. Veja que me estendo de propósito, para demonstrar cabalmente que falo em linguagem dita vernácula, que outra língua não empregaria, embora conheça algumas, por haver vivido fora do país durante alguns anos. Sei que estou perplexo e que não seria capaz de descobrir sozinho o que se passa. Afinal de contas, parece que você tem por missão ajudar-me a exaurir as novidades, até me tornar afeito à natureza especial destas paragens metafísicas.

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